Crítica

O choque do cinema com a complexidade

A partir de perfil da polícia que reprime protestos na rua, 'Por trás da linha de escudos', novo filme de Marcelo Pedroso, que estreia neste mês em dois festivais, desvenda algo maior

TEXTO Carol Almeida

04 de Setembro de 2017

O diretor Marcelo Pedrodo é também um dos personagens do filme

O diretor Marcelo Pedrodo é também um dos personagens do filme

FOTO Lívia de Melo

A Revista Continente teve acesso, em primeira mão, ao mais novo trabalho do diretor Marcelo Pedroso, o filme Por trás da linha de escudos, produzido por Kika Latache e Lívia de Melo, com fotografia de Luis Henrique Leal, som direto de Rafael Travassos e direção de arte de Carlota Pereira. O novo longa de Pedroso estreia neste mês tanto no Cachoeira Doc (dia 9) quanto no Festival de Brasília (dia 21), evento que vamos mais uma vez cobrir. Confira abaixo a nossa revisão crítica do filme.

O choque é, por definição, o encontro violento de um corpo com outro. O atrito entre partes que, no momento do contato direto, se repelem energicamente.

O choque, na configuração espacial do Brasil, é também o nome que se dá a uma divisão de elite da Polícia Militar, treinada para conter e reprimir manifestações que desafiem a ordem do Estado.

O choque, na configuração temporal dos anos 2010, é igualmente um estado das coisas, a manifestação de um espírito do tempo em constante colisão, de intolerância e não-escuta.

O quarto longa-metragem de Marcelo Pedroso se coloca no exercício de entrar em choque com a alteridade para, nessa ação, questionar até que ponto a própria realização do filme é capaz de gerar aderência ou repulsa quando faz tocar dois corpos aparentemente tão impermeáveis entre si: a polícia e as pessoas sobre quem essa mesma polícia já despejou spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. Sendo uma dessas pessoas o próprio diretor do filme.

Seria fácil dizer que a chave de entrada em Por trás da linha de escudos nos leva a esse enfrentamento entre o filme e seu objeto, entre o diretor e aquela organização sem rosto que atuou na violenta retirada dos militantes do movimento Ocupe Estelita no dia 17 de junho de 2014. Mais fácil ainda seria afirmar que a proposta de Pedroso e sua equipe é apenas de reconhecer quem é essa polícia para tentar de alguma forma desmaterializá-la enquanto um objeto institucional e apresentá-la nas particularidades subjetivas por trás de cada farda. Seria tão fácil quanto presunçoso e condescendente.

Mais próximo da pulsação nuclear ao filme está, na verdade, a ideia de que quem precisa ser desmaterializado enquanto autoridade que aponta o dedo sobre o certo e o errado é o próprio cinema. Mais particularmente, o cinema que se dedica a pensar criticamente o mundo. Pedroso, que se mantinha longe do enquadramento em seus longas anteriores, agora se põe em cena como um dos personagens centrais e, com isso, se coloca como objeto a ser igualmente investigado. A pergunta “quem são esses policiais?” deve, assim, puxar outra questão igualmente importante “quem é o diretor e a equipe que filmam esses policiais?”

É na ação de virar a câmera para si mesmo que Pedroso exercita a potência de um dispositivo que tem sido bastante debatido na produção recente do cinema nacional: a filmagem de personagens que, ao desconhecer as convicções de quem seleciona e monta suas imagens, extrai dos sujeitos/objetos gestos e depoimentos sintomáticos da nossa sociedade. Mas essa prática, já utilizada anteriormente pelo mesmo Pedroso, é agora posta em xeque por um filme que problematiza o status de autoridade do olhar que o cinema tem.

Em um momento sociopolítico do Brasil em que se cultiva a bipolarização de ideias, Por trás da linha de escudos constrói toda uma tensão sobre esses aparentes polos opostos para, logo depois, tentar desconstruir todos eles. Eis então o grande choque, o de se colocar, ainda que por meio de uma ação performativa, na pele de quem, atrás da farda, da viseira e dos escudos gigantes, automatizou seu pensamento e seu corpo em nome do Estado, da ordem e do progresso. Há, portanto, uma premissa: não há vítimas quando todos são vítimas, do mesmo modo que são poucas as possibilidades de conciliação quando o gás lacrimogêneo cega e asfixia tanto quem o recebe quanto quem o dispara. Nessa zona de indiscernibilidade, cabe ao cinema tentar manter os olhos abertos.

Mais uma vez usando como recurso simbólico a bandeira do Brasil, aquela mesma que sobrevoava o mal-estar do projeto desenvolvimentista em Brasil S/A, seu longa anterior, Pedroso agora joga sobre esse lábaro as estrelas que o cabem: carrapatos.  Uma nação sugada pela ideia de que escudos nos empurram pra frente.

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