Curtas

A noite não adormecerá

Artistas mulheres ocupam a galeria Amparo 60, no Recife, com exposição coletiva a partir deste mês

TEXTO Luciana Veras

09 de Fevereiro de 2018

A guatemalteca Regina José Galindo, única estrangeira na exposição, apresenta o vídeo 'Terra' (2003)

A guatemalteca Regina José Galindo, única estrangeira na exposição, apresenta o vídeo 'Terra' (2003)

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 206 | fevereiro 2018]

Vem de um verso da escritora mineira Conceição Evaristo o título da primeira exposição do ano da Amparo 60, que traz, em si, diversos marcos simbólicos: A noite não adormecerá é uma coletiva composta exclusivamente por artistas mulheres, sob curadoria de uma mulher, a jornalista e mestra em Artes Visuais Julya Vasconcelos, e supervisão de Lúcia Santos, a diretora proprietária da Amparo 60, e é, ainda, o episódio inicial das celebrações de duas décadas de atividade da galeria.

E vem da curadora a escolha pelas palavras de Conceição para servir de mote e título à exposição, que abre no dia 1º de março, na sede da Amparo 60, no Pina, e segue até 21 de abril – período no qual haverá também um ciclo de debates. “O poema se chama A noite não adormece nos olhos das mulheres e de certa forma expressa o tensionamento das emoções das mulheres, essa insônia e estado de vigília, de olhos que não fecham. A partir daí, entendemos que a exposição seria uma tentativa de mostrar o que esses olhos entreabertos, sempre em alerta, estão vendo”, descreve Julya, também envolta em um aspecto icônico no redemoinho de artistas, temáticas e estéticas distintas por ela alinhavados: assistente do artista Jonathas de Andrade, ela está prestes a descortinar a sua primeira experiência curatorial.

“Toda vez que a Amparo 60 abre uma exposição, fazemos uma foto com os artistas e, ao colecionar essas imagens, percebemos como é visível a falta de artistas mulheres”, comenta Lúcia. Em diálogo com algumas delas, que viriam a integrar o corpo de baile dessa mostra, como Juliana Lapa e Gio Simões, surgiu a ideia de reunir “uma geografia feminina”, nas palavras de Lúcia. Julya foi escolhida e, com o aval, começou a montar um percurso de “total liberdade”, como define, um processo curatorial “muito coletivo”, longe do encastelamento e perto de uma construção “conjunta e dialógica”.

Assim, as obras de Amanda Melo da Mota, Clara Moreira, Gio Simões, Alice Vinagre, Juliana Lapa, Marie Carangi, Regina José Galindo, Regina Parra, Maré de Matos e Virginia de Medeiros surgem enfeixadas pelo tema, porém distintas em suas propostas e formatos. São artistas diferentes, com repertórios e manifestos variados, mas há algo entre elas que repercute o que Lúcia considera “um mundo feminino de contradições em um momento bem adequado para se falar sobre isso”. O que uniria, portanto, Espartilho, obra da baiana Virginia, que pertence ao espectro de Jardim das torturas (2012/2013), e Linha de corte, uma instalação da pernambucana Marie Carangi em que cabelos aparecem comprimidos numa estrutura de madeira, apresentados quase como se evidência de um crime?

“Acredito que parte da emergência dessas artistas mulheres vem da necessidade de mostrar que elas exploram uma sensibilidade que não está predisposta a fabricar ou ratificar o clichê, e, sim, a ampliar um espectro profundo, político e existencial e propor uma espécie de sensibilidade-combate. Cada corpo é um universo e, como território posto em segundo plano dentro de uma sociedade patriarcal e violenta, ressurge nessas obras como corpos que resistem à naturalização da violência e à relativização da subjetividade”, observa Julya.

Ela cita Judith Butler e sua visão de “corpos abjetos”, dos “corpos que não importam”, para ilustrar por que o projeto de A noite não adormecerá se ancora em um grupo de artistas que transcendem “expectativas rasas”: “Elas são violentas, anárquicas, irônicas, poéticas, elas buscam a complexidade para tratar de temas urgentes e desses corpos de mulheres contemporâneas mergulhadas em uma crise de ordem política, econômica e moral. Como elas se expressam? Qual o som dos seus gritos?”.

Para Virginia de Medeiros, associar submissão no universo BDSM (sigla para bondage, dominação, submissão e masoquismo) ao feminismo é essencial. “A ideia de prazer através da dominação sexual não tem a ver com ser submisso na vida. Muito pelo contrário: existem muitas mulheres submissas e feministas. Toda a prática BDSM funciona com base no diálogo, alteridade e consenso. Os papéis não têm a ver com gênero – qualquer um pode desenvolver a submissão ou a dominação ou transitar entre os dois. Tudo se dá através de uma negociação. E, justamente por poder negociar seu próprio prazer, as mulheres se empoderam. Isso em si é libertador, porque o universo fetichista segue o fluxo de um desejo que escapa à moral”, detalha a artista.

Única artista estrangeira, Regina José Galindo emerge com Terra, um vídeo de 2013 em que ela se coloca em cena para falar dos corpos esquecidos, enterrados, vilipendiados por uma ditadura que durou décadas na Guatemala. Em Manter-se aterrorizada – Tornar-se terrível, Regina Parra parece dar uma pista das possibilidades de reação. É preciso ser “combativo e político”, nas palavras de Julya Vasconcelos, para criar uma “possibilidade de revide”. Em tempos de extrema violência de gênero, de assustadoras estatísticas de feminicídios, isso é essencial, afinal, como transforma Conceição Evaristo, “pois do nosso sangue-mulher de nosso líquido lembradiço em cada gota que jorra um fio invisível e tônico pacientemente cose a rede”. Nenhum a menos e assim não estaremos sozinhas, na arte e na vida. 

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