Curtas

Brincando com o tempo

TEXTO Manu Falcão

08 de Abril de 2019

Fotos Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 220 | abril de 2019]

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Ciência e arte, mistura do povo
Dos fortes, do fumo, do açúcar
E algodão
Das grandes batalhas a ferro
O fogo
Vidas lançadas da sorte
À ilusão
(Diário de Nassau, Flor de Cactus)

Não há voz nos sete primeiros minutos do disco Brincando com o tempo, mas o som de um violão acústico. Aos poucos, a este se juntam percussão e crescentes notas de teclados, que vão tecendo uma melodia cujo ritmo, afável, evoca familiaridade, sobretudo para os pernambucanos. Trata-se de Maracatu bonito, primeira faixa desse trabalho de imersão, beirando o experimental, em que as narrativas regionais surgem a todo vapor em ritmo e lirismo. Mas é na canção que a segue, Boi da boa hora, que o disco anuncia a que veio: em meio às flautas, Zeh Rocha nos conta a história do Boi Voador, resgatando a memória lendária dos tempos de ocupação holandesa.

O álbum em questão, idealizado há pelo menos 38 anos, foi concretizado agora pela sua gravação em CD. O grupo musical Flor de Cactus, conta, em sua formação original, com o já citado Zeh Rocha, Cacá Barreto (atual líder do grupo), Lenine, André Lobo, Sérgio Campello, Plínio Santos e Mário Lôbo. Amigos desde a adolescência, nos idos de 1970, os musicistas reuniram suas destrezas para versar o Nordeste e o homem nordestino. Do imaginário do sertão às vivências do litoral, culminando no Recife, lugar onde a maior parte dos integrantes do grupo está radicada e berço de suas trajetórias musicais, iniciadas nos tempos de Ensino Médio, onde se conheceram.

O Flor de Cactus surgira, afinal, de uma ideia para a Semana de Arte do Colégio de Aplicação, em 1973. Apresentaram-se na escola, e o fizeram continuamente ao longo dos anos em eventos da cidade, muito embora, nesse meio-tempo, a configuração da banda tenha mudado diversas vezes, dissipando-se diante dos projetos pessoais de cada integrante, e das dificuldades para gravar suas canções em um álbum de estúdio. Uma vez que a concretização desse projeto se tornou viável, levado adiante e produzido por Cacá Barreto, foram gravadas, pela primeira vez, as 16 faixas que compõem o disco, da forma que haviam sido pensadas desde que foram compostas, com letras e melodias autorais de cada um de seus membros.

Brincando com o tempo resgata sonoridades daquela temporalidade e contexto, buscando também trazer frescor a essa memória. É um álbum que se reconhece nas variedades rítmicas que compõem as sonoridades de Pernambuco, aliadas aos gostos específicos de seus músicos. Enaltece a viola, a percussão e as flautas, suas forças motrizes; conjura a ciranda, o baião e o forró. Mas também perpassa o jazz e uma sutil psicodelia.

Contou com o retorno de seus membros, incluindo Lenine, que levou adiante – no Rio de Janeiro, onde se radicou – a própria carreira musical, e participações especiais de amigos e admiradores que adquiriram no decurso de sua trajetória, como os músicos Lula Queiroga, Gennaro, e o flautista Cesar Michiles (cuja presença é marcante em muitas das canções, tornando-se seu instrumento um dos principais traços do disco).

A identidade visual de Brincando com o tempo expressa sua variedade musical, no projeto gráfico de Débora Cabral, Paulo Rocha e Germana Freire, ao reunir coloridas ilustrações, xilogravuras, signos da cultura popular e fotografias dos membros ao longo dos anos.



“É um disco que parece com tudo e nada”, comenta o instrumentista (cordas) e produtor musical Cacá Barreto, em conversa com a Continente. “Enquanto unidade, é uma obra regional, mas seu processo criativo foi realizado por sete homens de formações musicais e conjunturas diferentes. Eu, por exemplo, sempre busquei me aproximar do rock progressivo, inspirado pela Yes, minha banda predileta. Já o André Lôbo é muito ‘mineiro’, adora as melodias suaves do Milton Nascimento, e o Zeh Rocha gosta da MPB, da Elis Regina. E assim vai. Tudo isso está presente ali, e esteve presente em nossa juventude”.

A familiaridade desvelada por essa reunião de afinidades se faz presente também nas temáticas. “Evocamos narrativas ancestrais, que aludem à história de Pernambuco, e também cantamos os costumes de nossa terra. O Carnaval, o São João. Mas gostamos, acima de tudo, de confabular sobre o mundano, sobre o homem trabalhador, coisas que continuam muito próximas a nós e com as quais todos podem se identificar”, reflete Cacá. “Esse é um disco que foi trabalhado por muito tempo, aos trancos e barrancos. Ao longo dos anos, cada um de nós seguiu com seus projetos paralelos e pessoais, mas é um trabalho que reúne tantos afetos, e afetos antigos. É gratificante tê-lo concluído agora, como deve ser”.

O álbum foi dedicado à memória do percussionista Sérgio Campello, o único membro que não esteve envolvido nas gravações, mas que teve participação significativa na composição percussiva das faixas. Sérgio faleceu em 2016, não chegando a vê-lo pronto. Brincando com o tempo pôde, enfim, ser realizado em 2018 em parceria com a Companhia Editora de Pernambuco. Nesta edição da Continente, o leitor recebe como presente o CD, encartado na revista.

MANU FALCÃO é estudante de jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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