Curtas

Essa gente

Chico Buarque lança seu sexto romance

TEXTO Erika Muniz

03 de Fevereiro de 2020

Chico Buarque costura narrativa a partir de cartas, e-mails, diários e bilhetes

Chico Buarque costura narrativa a partir de cartas, e-mails, diários e bilhetes

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 230 | fevereiro de 2020]

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Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2018. Assim começa essa história. Diante dos acontecimentos – e seus desdobramentos – mais recentes da política brasileira, um escritor vive uma intensa crise afetiva e financeira. Morador do Leblon, mais precisamente do Edifício Saint Eugene, com vista para a praia, ele já teve dias bem melhores. Sua vizinha, uma juíza federal – cargo que ela faz questão de pontuar –, anda bastante incomodada com as movimentações de mulheres em seu apartamento (e em sua vida particular). As reclamações, ela garante, são “apenas” em nome da moral e dos bons costumes de todos os condôminos. Não há nenhum tipo de preconceito, diz a moradora do 201. Uma das ex-esposas do tal escritor cuida do filho do casal praticamente sozinha. Antes da separação, ela era a principal responsável pela revisão e correção de seus textos, inclusive o best-seller, que por muito tempo o sustentou financeiramente. Um dos amigos do escritor é um advogado, que só trabalha defendendo gente errada. Ganha muito dinheiro com esse negócio e, por isso, nem cogita parar. Mas o advogado não suporta ver morador de rua encostado no muro do Country, clube da alta sociedade carioca que costuma frequentar. Por isso, se acha no direito de gratuitamente agredir o homem a pontapés. Uma moça que trabalha em casas de famílias cariocas decidiu largar a macumba para cantar os hinos na igreja…

Esses e outros fragmentos narrativos poderiam facilmente ser histórias do cotidiano atual do Brasil. No entanto, são algumas das estórias que se entrecruzam em Essa gente (Companhia das Letras, 2019), mais novo romance de Chico Buarque. Nessa, que é a primeira publicação literária do autor desde que venceu o Prêmio Camões, em 2019, Chico renova seus experimentos acerca de linguagem, marcando mais uma vez na forma em que os textos capitulares se apresentam.

Num olhar prévio, ao folhear Essa gente, o leitor já pode perceber algo visualmente distinto de outros romances do artista. A narrativa parece ser escrita pelos próprios personagens. Ou seja, se dá através de cartas, e-mails, bilhetes, diários, alguns documentos oficiais e outros suportes. Intercambiada entre o protagonista e seus interlocutores, a história vai se desvelando ao leitor. Essa estratégia narrativa oferece-nos uma sensação de participação e aproximação mais íntima com a narrativa. Diante do recurso, o autor nos sugere reflexões sobre como a escrita vem, cada vez mais, conduzindo nossas relações pessoais, profissionais, políticas e de outras ordens.

Também, a escolha por um escritor em plena falta de lampejos criativos e dificuldade de exercer seu ofício como protagonista parece algo repleto de significados, neste momento em que escrevemos bastante, nas formas mais triviais, como em mensagens de WhatsApp.

Quem conhece a obra do compositor, dramaturgo e romancista carioca, sabe de sua sensibilidade cortante em torno de questões sociais e culturais em contextos históricos diferentes do país. Algumas de suas criações – sejam elas na música, no teatro ou na literatura – ajudam a recontar a história do Brasil, a partir da defesa do povo brasileiro, liberdade de expressão e direito à democracia.

Exemplo disso são o musical Calabar – O elogio da traição (1973), escrito em parceria com Ruy Guerra, e seu álbum Chico Buarque (1978), com canções como Apesar de você e Cálice, com participação de Milton Nascimento. Em ambos, lançados durante a ditadura militar, com maestria e inteligência, Chico Buarque conseguiu driblar a censura artística. Agora, já consagradíssimo, ele retoma sua capacidade de observar os contextos e seus detalhes para apresentá-los de maneira subjetiva, mas acompanhando a revolução digital, as angústias de um país fragmentado e diante de uma conjuntura política complexa e violenta.

Na visão de Alexandre Faria, crítico e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora, que desenvolve pesquisa sobre a obra literária de Buarque, trata-se de um romancista experiente, que, desde seu quarto livro, Leite derramado (2009), tem escolhido escrever a partir de discursos mais fluidos, não fixados em uma estrutura como a do romance. “Acho que isso tem a ver com a maneira que ele passa a manipular a noção de tempo das narrativas. Passa a ser um tempo mais caótico”, pontua.

Em Essa gente, a questão temporal toma atenção durante a leitura, visto que é um elemento crucial para o entendimento sobre qual contexto está se falando – ou melhor, se escrevendo. Mesmo sendo uma obra ficcional, a cada página, são apresentados o local, dia, mês e ano, que se sobrepõem constantemente. “Isso dá mais abertura para quem lê a narrativa. No Benjamin (1995), essa estrutura é mais fechada. No Budapeste (2003), por conta da necessidade de tempo e espaço, isso também é fechado. Tem a ver, então, com a estrutura de romance que ele conta e vem desde o Leite derramado, passando pelo anterior, O irmão alemão (2014)”, comenta o crítico literário.

À primeira vista, essa temporalidade parece ser desordenada. Mas, à medida que a história vai sendo conduzida, a compreensão acontece, mesmo que, na estrutura narrativa, o tempo permaneça em movimento, entre voltas ao passado e presente recentes.

O recurso, na ficção buarqueana, de ausência de cronologia potencializa um “tempo caótico”, como mencionado mais acima, o que converge com o que experimentamos no Brasil de 2020. Por conta das datas de Essa gente serem próximas às da atualidade brasileira e suas tragédias diárias, nesse romance, Buarque nos aponta olhares possíveis sobre este tempo, seus personagens e costumes. Ele mostra, ainda, como a violência simbólica – e também física –, muitas vezes, dá o tom às relações. Essa gente talvez sejamos todos nós.

ERIKA MUNIZ é jornalista e bacharel em Letras.

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