Curtas

História, memória e o Brasil de 2018

Após o incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, na noite de domingo (2), pesquisadores, artistas e museólogos buscam refletir sobre os signos simbólicos e literais da tragédia

TEXTO Revista Continente

03 de Setembro de 2018

Edifício do Museu Nacional em chamas na noite de domingo (2/9)

Edifício do Museu Nacional em chamas na noite de domingo (2/9)

FOTO Tânia Rêgo/Agência Brasil/Divulgação

As cinzas viajaram a quilômetros de distância. São pedaços de livros, pesquisas e documentos que um dia integraram o valioso acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, Zona Norte carioca. A longa viagem percorrida pela "chuva cinzenta" é uma metáfora precisa do clima de melancolia que se apossou do país. Uma nação que, nesta segunda-feira, acordou em luto. O incêndio teve início após o fechamento para visitação, devastando uma história que completava duzentos anos, e que há pelo menos três temporadas funcionava com orçamento reduzido, chegando ao ponto de a administração do museu anunciar uma campanha de financiamento coletivo para arrecadar recursos junto ao público.

É possível quantificar uma catástrofe como essa? O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, optou por resumir tudo a "um trágico incidente que destruiu um palácio marcante da nossa história". Sua nota oficial prosseguia: "É um dever nacional reconstruí-lo das cinzas, recompor cada detalhe eternizado em pinturas e fotos e ainda que não seja o original continuará a ser para sempre a lembrança da família imperial que nos deu a independência, o império, a primeira constituição e a unidade nacional." 

Após receber milhares de críticas nos comentários da sua postagem no Facebook, Crivella adotou a estratégia de um "esclarecimento": "Na nota acima, o trecho '...reconstruí-lo das cinzas, recompor cada detalhe eternizado em pinturas e fotos e ainda que não seja o original...' refere-se ao prédio do Museu Nacional e não ao acervo, como pode ter sido interpretado equivocadamente por alguns. Itens de valores inestimáveis foram perdidos, como bem sabemos todos, e jamais poderão ser recuperados. O Palácio Imperial foi o que nos restou desta tragédia. Vamos tentar recuperá-lo sim, em apoio ao governo federal, para salvar, ao menos, esta obra arquitetônica de valor incomensurável para o Brasil."

Enquanto o prefeito discutia questões de semântica, alunos, professores, museólogos, militantes da cultura e historiadores como a carioca Leu Cruz se dirigiam, na manhã desta segunda, ao lugar onde funcionava o Museu Nacional para protestar contra o desmanche direcionado à cultura e à ciência no país e para "dar uma materialidade", como disse Leu à Continente, ao fato. "Estava marcado um ato, então as pessoas começaram a chegar. Houve muita tensão com a polícia, que, na verdade, tem pouca habilidade para lidar com tudo isso, e jogaram spray de pimenta num contingente que era formado basicamente por pessoas das artes, da museologia, gente que amava o museu", conta Leu.

Polícia e manifestantes no museu. Imagem: Tomaz Silva/Ag Brasil/Divulgação. 

E, embora ainda esteja a se calcular a dimensão do estrago no museu, e o que restou das cerca de vinte milhões de peças que pertenciam ao acervo, já se sabe que a perda simbólica é maior. O que foge à mente dos que, a longo prazo, foram responsáveis pela pulverização do museu, bem como de parte considerável da população, é que a identidade de um povo constrói-se a partir do imaginário. Com memórias, com história. Ao apagá-las, literal e figurativamente, reiteramos a tendência cíclica de repetirmos os mesmos erros, e também de ignorarmos os acertos. Uma perda como a de ontem é – ou deveria ser – inerente a um sentimento unânime de dissociação.

O que nos resta, se desde 2004 o perigo do museu ser engolfado em chamas já vinha sendo alardeado? Esperar o compromisso de algum dos candidatos à presidência do Brasil? Levantamento da Agência Lupa, divulgado nesta segunda, dá conta de que apenas dois entre treze programas das chapas que concorrem ao cargo mais importante do país mencionam "proteção aos museus".

Se o porvir está em aberto, e nublado pela melancólica "chuva cinzenta", o presente é alvo de discussão. Veja como o episódio agora já enfeixado pela hashtag #LutoMuseuNacional vem repercutindo desde então.

ALEXANDRE FORTES
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFRRJ
Na guerra, não há tempo para chorar. Estamos assistindo à destruição do maior e mais importante acervo científico do país e os golpistas já estão querendo responsabilizar a UFRJ pela tragédia de hoje. O Museu Nacional, além de tudo que significava como patrimônio e como instituição de pesquisa era o ponto natural de concentração das Marchas pela Ciência, o berço ao qual sempre regressava nossa maltratada e aguerrida comunidade científica. O porto seguro de todos que teimam em acreditar que esse país pode ser soberano e usar nossa imensa capacidade de produção de conhecimento para oferecer uma vida digna ao seu povo. A perda é imensurável e irreparável. É verdade que ela expõe nossa incapacidade de fazer investimentos estruturais mesmo nos momentos favoráveis. Mas, acima de tudo, escancara o caráter criminoso das políticas de "austeridade" transformadas em emenda constitucional. Para que nunca mais se repita a "aventura" de gastar com educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia. Especialmente depois que se comprovou que esses gastos podem fazer a economia girar em favor do desenvolvimento e da redução da desigualdade. Um país que deixa de vacinar suas crianças, que assiste ao crescimento da mortalidade infantil, que assassina 60.000 pessoas por ano, que vai colocar um psicopata imbecil que ensina crianças de colo a atirar no segundo turno, vai por acaso investir em cultura e ciência? A gente séria e responsável do país certamente ficará aliviada de continuar a visitar o Louvre, o Metropolitan e British Museum sabendo que a gentalha não terá mais nem o gostinho de ver uma múmia ou um dinossauro por oito reais num lindo espaço público da Zona Norte. E o aparato político, midiático, policial e judiciário golpista já dá todos os sinais de que vai se apropriar dessa calamidade para lançar uma nova ofensiva contra as instituições públicas de ciência e tecnologia, seus servidores e dirigentes.

CLÁUDIO PRADO DE MELLO
Diretor do Instituto de Pesquisa Histórica e Arqueológica do Rio de Janeiro/Ipharj
Com a perda do Museu Nacional, naturalmente ninguém conseguiu dormir. Esse é como um 11 de Setembro que abalou, chocou a todos. Para o Brasil, descemos a ladeira... como destabacado em uma escadaria ao estilo de Hollywood. Coleções que nos pertenciam e outras de povos como gregos, romanos, egípcios, nascas, incas, Chancay, africanos, esquimós ...
Todas as cabeças de índios Munduruku perdidas!
Luzia, o fóssil de mulher de 13 mil anos, acabou.
As múmias egípcias, que sobreviveram milênios, não resistiram ao Brasil. 
Também se foram as milhares de caixas da reserva técnica de Arqueologia com o material dos sambaquis de Lina Kneip que não se chegou a estudar. E se foram as ossadas de um sem-número de índios brasileiros. 
Os mais preciosos artefatos da Arqueologia brasileira estavam naquelas salas, bem como os rolos de tergaminho com a Torah doada a Dom Pedro II. Já não veremos mais os quadros de Taunay, o estojo de toilete de Dom Pedro II e o quarto do imperador não mais precisará de restauração, bem como a sala do trono e dos embaixadores...
Enfim, perdemos uma parte nós, nossa infância, nossa memória e da memória de tantos outros povos que o Museu tentava preservar.
Lembro também que a Capela de São Pedro de Alcântara, tambem aos cuidados da UFRJ, se foi tomada por um outro incêndio anos atrás.
Agora não vale lamentar: nosso mais precioso PATRIMÔNIO se foi!

GLEICY KELLY HEITOR
Professora do Departamento de Museologia da Universidade Federal de Goiás
O incêndio do Museu Nacional é uma lástima do ponto de vista cultural - sem dúvida. Mas não podemos deixar de mencionar que é também - e sobretudo - mais um capítulo da história de sucateamento da educação pública. Não é de hoje que a UFRJ padece, que vemos suas estruturas físicas caírem aos pedaços - literalmente. É mais um exemplar para nosso inventário de incêndios em museus. Sim! Mas é também mais um episódio na história de incêndios, desabamentos e condições precárias e perigosas com a qual a comunidade universitária tem convivido para manter a UFRJ funcionando. É sobre o perigo de perdermos anos de pesquisa, acervos, documentos. Mas é também sobre um projeto mais amplo, de acabar com as universidades e com as instituições públicas que ainda restam.


O horror no museu de duzentos anos. Imagem: Tânia Rêgo/Ag Brasil/Divulgação

KATARINA PEIXOTO
Doutora (UFRGS) e pós-doutoranda em Filosofia (UERJ)
Havia um quadro do Museu Nacional, em chamas. Bombeiros e civis tentavam salvar as peças da ruína, do esquecimento, do cinismo e da tortura simbólica. Bombeiros e civis estão por historiadores de todas as vertentes. Eles são a vanguarda da resistência. Havia um quadro que se foi em vilipêndio, mas insiste em não desaparecer. A vanguarda das coisas imateriais e já vividas, memoriais e esquecidas, vai nos redimir. Havia um quadro com uns anjos em reunião. Eles ainda não sabem. Não precisam imaginar. Os caídos que cá estão, em sacrifício. O que a usurpação chama de responsabilidade é este escombro que vai até o céu em cinzas e dor.

*Este post é um détournement, feito a quente, sem reflexão, quase, da Tese IX, de Walter Benjamin. A Tese IX é objeto de inúmeras interpretações. Eu apenas fiz um détournement ferido, como estou. A tese é esta, na tradução de Michael Löwy, para a Boitempo:

Existe um quadro de Klee intitulado 'Angelus Novus'. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade.

LEU CRUZ
Historiadora e uma das diretoras do Museu Vivo do São Bento
Sou da Remus – Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro e ontem à noite, quando soube da notícia terrível do incendio do Museu Nacional - um museu de grande representação não apenas para o Rio de Janeiro, mas para o mundo, vi logo uma avalanche de postagens, muita gente, incluindo muitos amigos meus, chorando. Nesta segunda de manhã, resolvi ir lá para ter uma certa materialidade: diante de tanta comoção e do meu sofrimento, eu precisava ver um pouco do museu.
Fiquei em um dos portões que dá acesso aos jardins, mas sem poder entrar. Não havia mais fogo, apenas uma fumaça residual. E muita emoção. Todas as pessoas que chegavam estavam muito tristes... Eu mesma tenho diversas lembraças ligadas ao museu. Com dois filhos adultos, um de 27 e uma de 23, que possuem inúmeras memórias da infância e adolescência daquele museu que é colado ao zoológico do Rio de Janeiro. Aquele era um lugar da infância dos meus filhos, que já não fará mais parte das novas infâncias.
Hoje, diante dos portões fechados, me lembrei também de que o Museu Nacional era, sobretudo, um museu dos pobres: um museu cujo acesso se dá via trem, um passeio para a população pobre da Baixada Fluminense, que pode entrar na Quinta da Boa Vista sem pagar ingresso para fazer piquenique. Aquele era um lugar de lazer possível para a população mais pobre. Nos outros museus do Rio de Janeiro, cobra-se entrada e muitos não podem ir. O Museu Nacional era uma referência e uma bela memória para quem nele podia entrar de graça. 

MARIANA LACERDA
Jornalista e documentarista
O anjo da História hoje deve estar tão cansado. É preciso estar na cabana, diante do incêndio. Foi como a queima de livros durante o nazismo. Certa vez, Stephen Jay Gould disse que nunca se esqueceu quando, em um museu, viu pela primeira vez o Tiranossauro Rex. Ele tinha cinco anos de idade. Tornou-se um dos maiores paleontólogos do mundo.

MOACIR DOS ANJOS
Curador e pesquisador
Alguém já viu um banco arder em fogo? O Museu Nacional acabou mas o teto dos gastos públicos está em dia. Fiquemos tranquilos. Para os recifenses: não me espantaria nada se, a qualquer hora, pegasse fogo o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM). Vez ou outra, aqui ou em reuniões e debates para os quais sou chamado, insisto em denunciar a extrema precariedade das instalações elétricas daquele museu, bem como o risco iminente do casarão ao lado (abandonado há décadas, sem telhado e totalmente arruinado) pegar fogo ou literalmente desabar sobre seu rico acervo. Venho me preparando para, um dia, escutar as declarações de profundo pesar das autoridades responsáveis.


Foto de Rodrigo Braga feita um dia antes do incêndio. Imagem do artista. 

RODRIGO BRAGA
Artista visual
A história, a cultura, a educação e a consciência do brasileiro ardem nas labaredas da negligência. Essa fotografia eu realizei ontem, com carvão e meu sangue; imagem que vem há tempos me atormentando, como quem sente tragédias se anunciando num tom de colapso insuportável desse país.

VALTER HUGO MÃE
Escritor
acordo com a insuportável notícia da destruíção do magnífico museu nacional do brasil, que é da ordem do absurdo. como pode ser descurada uma casa daquelas? uma casa que definia o brasil, defenia a história do brasil. o museu nacional do brasil não pode arder. só em tempo de guerra, no grotesco que a guerra pode ser, coisas assim acontecem. fico com a impressão de que o brasil está em guerra consigo mesmo.
meu abraço solidário a todos os que prestigiam o brasil e a sua cultura, e a todas as gerações futuras que se vêem impedidas de aceder ao melhor do seu próprio património e tanta da sua memória.
estou horrorizado.

VINÍCIUS WU
Historiador pela UFRJ e mestre em comunicação social pela PUC-Rio
O Iraque (ou o Afeganistão) é aqui
Quando você for convidado a apresentar sua participação inteligente sobre o obscurantismo do Estado Islâmico, pense no Museu Nacional.
Aqui não precisamos de ISIS ou Talibãs. Nosso desprezo à cultura, ao patrimônio histórico e à memória é bem mais eficiente. E ele se soma aos “ajustes”, aos cortes de verbas, ao corporativismo que suga os recursos públicos, à má gestão e ao cinismo de quem prefere apontar o dedo a assumir responsabilidades e enfrentar as razões de nossa miséria institucional.
Perdemos muito ontem. As chamas no Museu Nacional levaram um pouco de nossa alma e do sentido de existirmos enquanto nação. Talvez, este tenha sido mesmo um recado da História, um alerta a respeito de nossa profunda incapacidade de nos levarmos a sério ou, quem sabe, um prenúncio do que ainda está por vir.
O que mais dói é saber que nada trará de volta as coleções, as relíquias e toda riqueza que havia ali. Nem todo dinheiro do mundo trará de volta Luzia, a “primeira brasileira”, que resistiu por 13 mil anos e se vê agora vencida pelo irrisório orçamento dos museus brasileiros, pelo descaso, pelo abandono e pelo viralatismo de quem enfrenta longas filas pra visitar o Louvre, mas que nunca atravessou o túnel pra levar seus bem educados filhos pra conhecer o Brasil.
O incêndio no Museu Nacional deveria ser motivo de uma profunda reflexão nacional, de um recomeçar, se é que isso é possível. Mas, sabemos que nossa indignação momentânea, logo cederá espaço ao conformismo, ao esquecimento e o máximo que teremos é a transformação oportunista da tragédia em tema da disputa eleitoral. Talvez, arrumem um ou outro bode expiatório. E não iremos muito além disso.
Mas, o inferno são os outros. Ruim mesmo é viver no Iraque ou no Afeganistão. Quem destrói peças de museus, acervos históricos, monumentos e ameaça nossa civilização é o medievalismo do Estado Islâmico. Aqui estamos salvos de todo mal.
Só não estamos salvos de nós mesmos.

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