Curtas

Knulp

O andarilho que inspirou a contracultura é tema do livro relançado pela Todavia, após anos fora de catálogo

TEXTO Fernando Silva

05 de Novembro de 2020

Hermann Hesse escreveu a história de Knulp em 1905

Hermann Hesse escreveu a história de Knulp em 1905

Foto MARTIN ESSE ERBEN/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 239 | novembro de 2020]

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Um homem transformou a vida numa grande viagem e decidiu por isso logo na juventude, andando pela estrada e desbravando terras do país onde nasceu. Assim, fez amizades por todos os lugares, divertiu-se em festas, compôs poemas, canções e amou a natureza e as pessoas que cruzaram seu caminho. Sim, a descrição poderia ser de um hippie, mas o personagem em questão é Knulp, criado por alemão Hermann Hesse (1877-1962) e protagonista de livro homônimo, de 1915.

Relançado no Brasil em abril, após anos fora de catálogo, Knulp – Três histórias da vida de um andarilho (Todavia, 112 páginas) compõe o perfil de um espírito livre, que acreditava na beleza do efêmero e em aprender com as vivências do cotidiano. Muitas vezes considerado um vagabundo por quem o encontra, ele percorre a pé a Alemanha do fim do século XIX e começo do XX, em uma paixão arrebatadora pelo Wanderlust, o desejo de viajar, o prazer das caminhadas. A isso Knulp soma a busca pelo autoconhecimento.

Na jornada, passa as noites ao ar livre, entre rolos de feno ou sobre a vegetação, em alguma hospedaria e também na casa de velhos conhecidos, que o acolhiam. Um deles, o peliceiro Emil Rothfuss, reflete acerca do hóspede em meio ao trabalho de curtir peles, na primeira parte do livro, Início da primavera. “‘Ele tem sorte, na verdade’, pensou o mestre com uma pontinha de inveja. E, enquanto caminhava para seus fossos, pensava no amigo excêntrico que não queria nada da vida além de ser um espectador, e Rothfuss não sabia dizer se aquilo era uma atitude ambiciosa ou modesta.” A passagem faz pensar em subversão, no significado mais amplo, já que o andarilho não queria saber de criar raízes ou seguir convenções sociais.

Não é à toa que Hermann Hesse é considerado um dos precursores da chamada contracultura dos anos 1960 e 1970. Nascido em Calw, na região da Floresta Negra, o escritor retratou, em Knulp, uma Alemanha de vilarejos e de colorida flora, em vez de mostrar as grandes cidades e a arrancada industrial do país. Escreveu, inclusive, que não queria nada com esse tipo de modernidade. À época do lançamento da obra, ele já deixara o território germânico para morar na zona rural da Suíça, onde passou o resto de seus dias. Era crítico ao nacionalismo alemão do período (que culminou com a entrada da nação nas duas guerras mundiais) e interessado por religiões orientais, como o budismo e o hinduísmo – o avô materno, um missionário protestante, fora estudioso da cultura indiana e ele mesmo viajou até a Índia.


Capa da edição brasileira pela Editora Todavia.
Imagem: Reprodução

A narrativa do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1946 recebeu elogios do amigo e conterrâneo Thomas Mann (1875-1955), que, em um ensaio, argumentou que Demian (publicado em 1919) era “obra que, com uma precisão assustadora, acertou em cheio o nervo da época, arrastando toda uma juventude para um encantamento agradecido”.

Fez a cabeça ainda do psicólogo, professor em Harvard e guru da psicodelia e do LSD Timothy Leary (1920-1996), que adorava o livro Sidarta (1922), e inspirou o nome da banda americana responsável pelo sucesso Born to be wild (1968), o Steppenwolf, título original de O lobo da estepe (1927).

Essa geração abraçou algumas das temáticas abordadas por Hesse, como a procura pela liberdade, a crença num estilo de vida próprio e a inadequação. Os Beatles, por exemplo, cantaram a história de uma garota que fugiu da casa dos pais, um lar burguês de Londres (inspirados numa notícia de jornal a respeito do desaparecimento da adolescente Melanie Coe), em She’s leaving home, faixa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Já Lou Reed (1942-2013) nos fez flanar por uma Nova York “selvagem”, alternativa e com tipos que viviam à margem, fotografando-a na clássica canção Walk on the wild side (1972).

No Brasil, não foi diferente. Enquanto os Mutantes criaram uma trama típica do momento em Fuga nº II (1969), entoando versos como “Hoje eu vou fugir de casa/ Vou levar a mala cheia de ilusão” e convidavam o ouvinte a subir a bordo, o cantor e compositor Lô Borges caiu na estrada de verdade depois das gravações do álbum Clube da Esquina, feito em parceria com Milton Nascimento, e de seu primeiro LP solo, conhecido como Disco do tênis, os dois lançados em 1972. Ali, ele largava por um tempo a carreira que se iniciava para rodar o país de ônibus.

Tampouco o cinema ficou de fora da influência, seja no drama Sem destino (1969), com seus jovens que cruzam de moto os Estados Unidos e o retrato do incômodo causado por uma vida libertária em parte da sociedade, seja na comédia nacional Vai trabalhar vagabundo (1973), que mostrava – em plena ditadura militar, no contexto do “milagre econômico” e do “Brasil grande” – as aventuras do malandro Dino, um desempregado amante da boemia e da sinuca.

São todos herdeiros e camarada do andarilho alemão, cuja existência também se aproxima das de Sal Paradise, Dean Moriarty e Marylou, personagens de On the road – Pé na estrada (1957), obra igualmente repleta de poesia, rebeldia e poeira que se tornou um marco da literatura beat. Conhecer o enredo de ambas as histórias, aliás, nos remete àquele meme da internet; ou seja, Knulp andou para que o livro de Jack Kerouac (1922-1969) pudesse correr.

O enigma construído por Hesse, contudo, não ressoou apenas décadas atrás e sua história de peregrinação ainda diz bastante. Afinal, no mundo de hoje, em pandemia, quem não está com vontade de sujar as solas dos calçados por aí, reencontrar os amigos, conversar, farrear, viajar e conhecer gente nova quando tudo tiver passado? Além disso, o errante solitário encarna reflexões pertinentes a uma era na qual muito se vive de desfilar certezas, no ambiente virtual e no real. Para Knulp, ser livre significa observar e também questionar. Até mesmo as próprias ações.

FERNANDO SILVA é jornalista.

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