Curtas

O cravo no Rio de Janeiro do século XX

Um resgate de ágil leitura sobre o cravo

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Março de 2021

O cravista e professor Marcelo Fagerlande é um dos autores do livro, que compila pesquisa realizada entre 2014 e 2020

O cravista e professor Marcelo Fagerlande é um dos autores do livro, que compila pesquisa realizada entre 2014 e 2020

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[conteúdo na íntegra | ed. 243 | março de 2021] 

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A primeira coisa a ser dita a quem se depare com O cravo no Rio de Janeiro do século XX (Rio Books, 2020) na estante de uma livraria é que ele pode comprar o livro sem medo e terminará a leitura havendo não só aprendido muito sobre o instrumento, mas também sobre os maiores intérpretes de ponta e respectivas gravações dos últimos 150 anos. Organizado em grandes capítulos divididos por décadas, o estudo escrito pelos cravistas e professores universitários Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira e Maria Aida Barroso entre 2014 e 2020 tem como principal trunfo os respectivos subcapítulos – breves, objetivos e bem- ilustrados –, que permitem a ágil leitura das quase 390 páginas da publicação.

A própria introdução tem a virtude de explicar, em meras duas páginas de texto emolduradas por cinco figuras, o que são um cravo, uma espineta e um virginal (pois os três costumam ser chamados indistintamente de cravo, por aqueles que não têm tanta familiaridade). Os mais interessados encontrarão explanações sobre a mecânica do cravo e do piano em duas notas de rodapé na página 37. Já os pesquisadores estrangeiros têm a fortuna de, pelo menos, contar com uma tradução do epílogo para o inglês.

“A princípio, a redação foi dividida como mencionado no livro: Marcelo, de 1900 a 1979; Mayra, a década de 1980; e eu, a década de 1990. Após essa redação inicial, trabalhamos juntos a finalização do texto completo. No final, foi uma tarefa a seis mãos, coordenada brilhantemente pelo Marcelo, que soube dividir e compartilhar tudo conosco, igualitariamente. Uma bela parceria com momentos muito especiais durante a pandemia”, conta Aida, professora do Departamento de Música da UFPE e orientanda de Fagerlande no doutorado em Música pela UFRJ.

O primeiro dos grandes achados da pesquisa foi desconstruir a opinião corrente de que o cravo ficara em obscuridade, no Rio, entre meados do século XIX e meados do século XX. O compositor Leopoldo Miguez (1850-1902), então diretor do Instituto Nacional de Música, adquiriu um cravo da marca Pleyel em Paris, já em 1900, muito possivelmente para utilizá-lo na instituição. No entanto, não há registros de que o instrumento tenha sido despachado para o Brasil, pois sequer integrou a lista de bens deixados pelo músico. Naquele mesmo ano, fora escrita a primeira obra para cravo por um brasileiro, o Ballet regence, de Carlos de Mesquita (1864-1953), estreada na capital francesa. E, em 1904, aconteceram os primeiros recitais de cravo em solo carioca após o fin de siècle, com a intérprete belga Elodie Lelong (1869-?), de passagem pelo Rio.

O papel dos veículos de imprensa recebe especial atenção no livro. Inclusive, as considerações técnicas demonstradas por alguns críticos, antes de o cravo ser mais difundido pelas salas de concerto, atestam que eles conheciam bem o instrumento graças a gravações fonográficas. Os autores também direcionam o olhar ao comportamento do público após a popularização do cravo no Rio, nos anos 1960, perpassando o crescente interesse da juventude, incluindo crianças, sob estímulo de concertos didáticos; os ingressos disputados com cambistas; a ampliação, mesmo que discreta, do gosto popular (como reproduzido em um perfil jornalístico sobre um motorista de táxi que costumava ouvir música barroca no trânsito); a presença em filmes e nas igrejas históricas. 

Vemos também como personalidades importantes da música brasileira militaram, cada um a seu modo, pelo cravo – entre elas, Mário de Andrade (1893-1945), Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) e Edino Krieger (1928).

Entre parênteses, é preciso citar a colaboração de Marcelo Portela Nunes nos tópicos referentes a Karl Richter (1926-1981). O regente e instrumentista alemão especializado em teclados (cravo, órgão e piano) foi a principal estrela das oito edições dos Ciclos Bach, realizado na capital fluminense entre 1966 e 1978. Contudo, se há duas figuras proeminentes em O cravo no Rio de Janeiro do século XX, estes são Wanda Landowska (1879-1959) e Roberto de Regina (1927), ambos a quem os autores dedicaram a pesquisa.


Em 1933, o Trio Schneider veio realizar uma turnê no Brasil, trazendo o cravo Neupert. Foto: Divulgação

A primeira, embora tenha passado pelo Rio em 1929, não logrou um concerto em solo brasileiro, por receio de falta de público (por parte dos empresários organizadores). A expectativa por um recital de Landowska, alimentada vez ou outra, nunca se concretizou, mas a cravista polonesa foi uma constante na imprensa carioca, antes e depois daquela passagem, graças às suas gravações e performances na Europa e nos Estados Unidos. Por seu turno, diversos de seus alunos e ex-alunos atuaram no Rio, dois dos quais impulsionaram sobremaneira a vida cravística por lá: a argentina Lucila Machuca de Garcia (1897-?) e a brasileira Gabriella Ballarin (?-?), de cuja vida pouco se sabe.

Já Regina tem sua trajetória abordada desde o capítulo dedicado à década de 1950. Se Landowska foi o farol para instrumentistas do mundo inteiro, de Regina, que chegou a se aperfeiçoar com o construtor de cravos norte-americano Frank Hubbard em Boston, tornou-se essa luz-guia em escala nacional, promovendo (e vivendo) a denominada música antiga. O prestígio do cravista e lutiê carioca é tanto, que os ingressos para concertos na Capela Magdalena – edifício que ele construiu em seu sítio, no Bairro de Guaratiba, Zona Oeste do Rio – são oferecidos até em pacotes turísticos. E os espectadores são recebidos pelo anfitrião a caráter, vestido em trajes imitativos do século XVII.

A professora Maria Aida ressalta que a UFPE possui um exemplar assinado por de Regina – e o Conservatório Pernambucano de Música, um Wittmeyer, ambos atualmente sem utilização. “Há ainda um cravo no Instituto Ricardo Brennand e dois instrumentos modelo Taskin de dois teclados, construídos por William Takahashi (SP), no Conservatório e na UFPE, respectivamente”, acrescenta. De modo geral, os recifenses conhecem o cravo desde os anos 1970, quando a Orquestra Armorial de Câmara o utilizou em seus concertos e gravações. Tais dados são um bom indício para a realização de pesquisa semelhante à do Rio, focada na capital pernambucana. E a docente já está encampando essa missão, que certamente resultará em novo livro. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.

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