Curtas

O livro dos monólogos

O escritor e curador de fotografia Diógenes Moura lança, no Recife, sua sétima obra literária, que traz suas crônicas pessoais como uma resposta inquieta à vida incansável das cidades

TEXTO Olívia Mindêlo

20 de Março de 2019

Diógenes Moura em seu gabinete, onde o livro nasceu

Diógenes Moura em seu gabinete, onde o livro nasceu

Foto Alê Ruaro/Divulgação

De verbo e imagem é feita a escrita de Diógenes Moura, que volta ao Recife, sua cidade natal, para lançar O livro dos monólogos (recuperação para ouvir objetos) (Vento Leste, 200 páginas, bilíngue), o sétimo de sua trajetória como escritor. Essa escrita particular – também vista em sua atuação consagrada como curador de fotografia (ver Uma terra que arde) – resulta aqui em crônicas pessoais nascidas de dentro do seu gabinete, em São Paulo. Pessoais, porém fruto de uma relação sempre intensa e alerta com a cidade, sobretudo a região central, onde mora há cerca de 30 anos – embora intercale a escrita com referências ainda do Recife, onde viveu até os 15, e de Salvador, para onde se mudou em seguida. Não por acaso, ele escolheu o Hotel Central, na capital pernambucana, para apresentar seu novo trabalho, em noite performática nesta quinta (21/3), às 19h.

Cumprindo seu destino, o do abandono, os centros das cidades brasileiras concentram vida real em seu estado bruto e disso nutre-se o olhar e a criação de Diógenes Moura. A ele interessam os moradores de rua, os bêbados, as travestis, os pedintes, a dona da banca de jornal, o vendedor de controle remoto, pois “a classe média não tem absolutamente nada a dizer” – suas palavras à Continente. “O livro dos monólogos (recuperação para ouvir objetos) é uma tentativa de aproximar a cidade e seus transeuntes; os dias e as noites; a solidão e o seu contrário; as palavras e os músculos do tempo; a procura e uma resposta que nunca poderá ser encontrada. Todos os personagens estão um dentro do outro. Procuro entendê-los entre vida e morte, entre público e privado, na janela das suas casas, numa notícia de jornal, na tela de um computador ou celular, nos gritos das ruas, na esquina mais próxima. Às vezes a palavra vence a imagem. Outras, a imagem silencia a palavra. Apenas mais um detalhe e a cidade avançará sobre nós (...)”, escreve o autor em suas páginas.



A escrita solta, em fragmentos, costura-se por esse tecido, cujo ponto de partida (e chegada) é seu próprio apartamento, no Campos Elísios, bairro que viu nascer a Cracolândia em seu entorno. Imagens de dentro do imóvel – arrombado em fevereiro de 2017, segundo ele próprio narra no livro – perpassam os monólogos, por meio de um ensaio feito pelo fotógrafo Alê Ruaro. Dessas fotografias emergem outras, que compõem o “infinito particular” do curador e aparecem ao longo do livro. Elas fazem a ponte entre o público e o privado que habita Diógenes Moura; o sagrado e o profano, a loucura que é viver.

“A literatura sempre fez parte do meu cotidiano. Escrevo todo dia, pelo menos uma frase. Eu anoto muito, porque continuo indo pro submundo, pro underground. Desses lugares, volto cheio de palavras”, conta Diógenes, que, em 2010, ganhou o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA) pelo livro Ficção interrompida. Ele que fez graduação em Letras e Jornalismo transforma essas palavras “de bolso” em reportagens literárias, em cenas tão reais que parecem inventadas, em cenas também imaginadas a partir de suas imagens – e há ainda no livro fotografias tiradas por ele com o celular (a série Fashion abandono, com pessoas dormindo nas ruas enroladas em cobertores estampados), embora ele mesmo faça questão de dizer: “Eu não sou fotógrafo”. As imagens são sua forma de reagir ao mundo. E nos ensina a ver também por aquilo que lemos (e relemos).

A sua autobusca é sobre nós.




Ensaio do fotógrafo Alê Ruaro no apartamento do autor. Fotos: Divulgação

***

Cenas do livro:

“'Você pega e joga uns dois litros de Quiboa no corpo, depois dá um mergulho no mar. Tira todas as bactérias', anuncia o vendedor de controles remotos em frente à galeria onde fica a primeira escada rolante da cidade. Um pouco mais à frente, na praça deserta onde tudo está árido, uma tenda de plástico começa a ser erguida. É o anúncio descartável de que mais um carnaval irá passar. 'Se você começar a relinchar outra vez te dou uma sandalhada', diz a mulher, puxando pela mão a menina que chora.”

“O dia está cinza. A luz da sala, opaca, do lado de cá da cortina transparente. Os dois entraram no prédio com uma chave mestra/falsa. Subiram pelas escadas para evitar as câmeras dos elevadores. Estouraram a porta do apartamento 44 algumas horas depois que o dia havia amanhecido e o 'povo' do crack, cansados de serem tangidos de uma rua para outra, partiu em disparada pelas ruas do bairro: degolaram a cabeça da Nossa Senhora que protegia a banca de revistas, quebraram os vidros da porta de frente da padaria da esquina, arrombaram os carros nos acostamentos, saquearam o supermercado do homem chinês: aos mulambos, aos berros, aos nacos, aos dentes. Sangravam entre loucura, delirium tremens e abandono.”

“Por trás da imensa película de plástico azul transparente, o homem muito magro, cerca de 70, parece despencar sobre a avenida saído do ventre da mãe de Gregor Samsa. Acaba de nascer e já está em coma. Chove fino. Ele olha para baixo, por dentro da fotografia. Está protegido pela película que ali foi colocada para que outros homens possam, pendurados pelo lado de fora, lavar a fuligem de mais de três décadas naquele edifício onde nenhum passarinho pousa na varanda.”

“Marco Antônio Abraão fuma com o seio esquerdo nu ao lado de uma pantera negra. Prestem atenção no significado dessa imagem: quem sabe realmente o que a atriz, cantora, performer e militante transexual Claudia Wonder significou e significa para o Brasil nesse diário onde cada um escreve à sua maneira o tempo em que vivemos diante das mazelas sociais e políticas? Claudia Wonder é um retrato guardado para sempre, desde os tempos do show underground Vômito do Mito, quando tomava banho de sangue numa banheira no inferninho Madame Satã, até o dia em que foi velada na Secretaria de Justiça, no Pátio do Colégio, naquela terça-feira, 26 de novembro de 2010.”


Foto: Alê Ruaro/Divulgação


Da série Fashion abandono, por Diógenes Moura. Foto: Divulgação

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