Curtas

Talhos, árvores e sementes: 10 anos da Kalouv

Grupo pernambucano celebra novo momento de sua trajetória, marcado pelo recente lançamento do single 'Talho', primeiro trabalho da banda que faz uso de palavras

TEXTO Thaís Schio

28 de Agosto de 2020

Basílio, Bruno, Túlio, Rennar e Saulo, formação antiga da Kalouv

Basílio, Bruno, Túlio, Rennar e Saulo, formação antiga da Kalouv

Foto Hannah Carvalho/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

(leia ouvindo as principais faixas)

Escutar Kalouv é viagem certa para dentro da própria existência – uma one way trip despropositada e introspectiva pela ambiência de nossos sentidos, lembranças ou sonhos. Sei bem que essa experiência é comum aos projetos instrumentais e experimentais, muito por causa da imprevisibilidade intrínseca aos processos de criação. Mas testemunhar a banda pernambucana Kalouv em palco traz ao público a rara sensação de se sentir indispensável para a composição daqueles instantes compartilhados.

Completando 10 anos de estrada neste ano nada usual, três álbuns, um EP e incontáveis apresentações, Kalouv celebra um novo momento de sua trajetória, marcado pelo recente lançamento do single Talho, primeiro trabalho da banda que faz uso de palavras. E pelo distanciamento breve do post-rock, abrindo brechas para o ganzá, garrafas e metalofone característicos da música “” brasileira dos anos 1970 e 1980.

As referências da banda, a propósito, são impossíveis de catalogar, como costuma ser em toda boa empreitada musical. Em seus primeiros momentos, que integram o universo dos álbuns Sky swimmer (2011), Pluvero (2014) e Planar sobre o invisível (2016), o grupo passa pelo post-rock, math rock, rock progressivo, MPB, jazz, afrobeat, entre tantos outros ritmos. Ao chegar à maturidade de Elã (2017), destaca-se a presença do synthpop e das trilhas sonoras de jogos digitais que acabaram ressurgindo durante o processo criativo amparado no Sítio Santa Fé, em Carpina (PE). Uma imersão importante para trazer reflexões sobre o fazer artístico do grupo, como Túlio Albuquerque, guitarrista da banda, nos explica: "Nós paramos para pensar 'quais foram as primeiras músicas instrumentais que escutamos?', chegamos nas músicas clássicas, que estão por todo lugar, e nas trilhas de videogames, que nos emocionam porque trazem de volta a infância".

Agora, nesta nova fase preenchida por um tom inédito de nostalgia, própria de quem completa aniversário e despede-se de um de seus integrantes, a Continente conversou com a banda – atualmente formada por Basílio Queiroz (baixo), Bruno Saraiva (teclado), Rennar Pires (bateria), Túlio Albuquerque (guitarra) e Matheus Araújo (guitarra) – sobre o lançamento mais recente, que contou com a participação especial de Dinho Almeida, vocalista da banda Boogarins, responsável por escrever e entoar os versos do single, e principalmente sobre partidas, caminhos trilhados e novos horizontes.


Capa do novo single Talho, feita por Maria Eugênia Franco

“A partir de Elã, fomos pensando em facilitar a comunicação. Porque a música instrumental tem esse desafio (maior) de comunicar sem fazer uso da linguagem verbal. E, cada vez mais, sentíamos a necessidade de contar uma história. Por isso, nos colocamos na produção de músicas com riffs que se repetem, partes que voltam. Causando maior identificação nas pessoas que gostam do nosso trabalho. Foi muito legal nos shows, porque percebemos que as pessoas estavam cada vez mais próximas”, comentou Túlio sobre as novas texturas assumidas nos anos mais recentes da banda.

Somado a esse desejo, a notícia da saída de Saulo Mesquita, que se despediu da banda para assumir novos projetos no final do ano passado, acabou catalisando todo o processo de composição de Talho, última faixa com a participação do ex-guitarrista. Talho é uma espécie de música-despedida que foi ganhando contornos imprevisíveis, como o metalofone encontrado por acaso no estúdio de gravação, a produção de Guilherme Assis (Mulungu e Barro) e a composição de Dinho Ferraz, “referências que vão chegando e somando”.

"Talho é um nome que remete a corte e faz paralelo justamente ao que passamos com a saída de Saulo, que foi atrás de novos rumos profissionais fora do país. A Kalouv é uma banda que manteve a formação desde 2010 e essa transição é algo novo pra nós. Mas o corte não é necessariamente uma ferida. Se você pensar na poda de uma árvore, é como se em cada parte cortada pudessem brotar novos ramos. Uma metáfora do que seriam novas histórias, novas ideias. Dinho nos surpreendeu com essa letra que bate com o momento de transição que vivemos, além de ter trazido toda essa brincadeira com samples de mensagens de Whatsapp. Tudo junto traz uma leveza que nos deixa muito felizes”, explicou Túlio em release enviado à imprensa. 

A “paquera” com o Boogarins é antiga, e foi durante uma oficina de imersão do Festival No Ar Coquetel Molotov que as relações foram estreitadas, para que, somente ano passado, acontecesse a parceria entre as bandas. O resultado é uma música que celebra as novas transições, e carrega o sentimento de saudades em suas entrelinhas. O próprio clipe, montado e editado por Luara Olívia e finalizado por Jão Vicente, remete ao sentimento. São colagens de imagens, momentos vivenciados pela banda, viagens, apresentações, entre tantos outros recortes carregados por afetos.



“A própria essência musical da Kalouv tem muito da questão afetiva. É o que a gente tem de resposta do nosso público e que, nesses 10 anos, renderam momentos muito bonitos. No primeiro release que escrevi em 2010, coloquei que a Kalouv fazia a trilha sonora da vida cotidiana. A gente faz música que a gente gosta e se emociona. Quando chegamos no ponto que a música consegue contar uma história, é quando vem a satisfação. Hoje, apesar de restrito, temos um público muito diverso e isso nos deixa feliz. Tem pessoas mais velhas e uma galera muito jovem”, compartilhou Túlio.

Quando questionados sobre os momentos mais marcantes da trajetória, a resposta é diversa, mas uma memória é quase unânime no discurso dos integrantes: a construção do álbum Elã, fruto de um financiamento coletivo, com apoio de 292 pessoas de diferentes estados do país, alguns, inclusive, onde a Kalouv nunca havia se apresentado. “Foi um grande abraço que recebemos, justificando o que a gente tinha feito até ali. Gosto muito de falar do e-mail de um cara que trabalhava embarcado em uma dessas plataformas petrolíferas. No e-mail, ele dizia que a Kalouv facilitava esses momentos, deixava tudo mais leve. Dois anos depois, durante o financiamento, ele prontamente comprou uma das maiores recompensas”.

De volta a 2020, o grupo afirma que, apesar de ter trazido novidades, Talho não dita os novos rumos estéticos da Kalouv. O lançamento da música, aliás, é apenas uma das iniciativas que estão sendo promovidas nas redes sociais da banda e que, sem dúvidas, estão servindo de alento para os dias solitários de isolamento. No Instagram da banda, a #KALOUV10ANOS reúne registros imagéticos dos bastidores desse longo trajeto em conjunto. Outra iniciativa é a série do IGTV Nós e a Kalouv, que criou um espaço para os depoimentos de cada integrante sobre o background estético e afetivo de suas faixas favoritas.


A primeira participação de Matheus (à dir.) no palco, substituindo Túlio durante o Festival de Inverno de Garanhuns 2019. Foto: Fernando Figueirôa/Fundarpe

Para Túlio Albuquerque, por exemplo, a quinta música do disco Elã (2017), Hotline Miami, acabou conquistando um lugar especial. Fruto de suas primeiras descobertas com o pedal de loop em 2014, a faixa acabou se tornando um divisor de águas na maneira de compor do grupo. Seu nome faz referência direta à estética neonoir do game indie de mesmo título, além de filmes como Drive (2011).

Já a faixa Es Muß Sein, do segundo disco Pluvero (2014), é a favorita do tecladista Bruno Saraiva e significa, em livre tradução do alemão, “tem que ser assim”. Apesar de traçar paralelos com a música clássica de Beethoven, Bruno conta que conheceu a expressão graças ao livro A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. “Eu estava lendo esse livro em uma época bem difícil da minha vida e um dia, indo para casa da minha companheira, a melodia começou a martelar na minha cabeça. Quando cheguei em casa, no outro dia, a música simplesmente saiu. Acho que as intensidades, emoções e memórias dessa época acabaram se inscrevendo nessa música”.

Uma boa síntese do fazer artístico da Kalouv – que durante o período de reclusão trabalhou em novos formatos através da série Sessões de Quarentena, trazendo ao mundo, de maneira remota, duas novas músicas, Bolhas e Cidades desertas, "embriões" do que pode vir a ser um novo projeto, também disponíveis nas redes sociais da banda.

THAÍS SCHIO é jornalista em formação pela Unicap e estagiária da Continente.

Publicidade

veja também

Adeus a Riva

“Mulher, Corpo, Território: Julieta presente!”

Ô, ô, ô, Saudade do Recife e de Antônio Maria