Curtas

Visível audível tangível

Livro do artista e professor da UFPE Eduardo Romero propõe reflexões acerca das diferentes possibilidades de criação na arte contemporânea através da performance

TEXTO Samanta Lira

05 de Julho de 2018

Performance 'Godot esperando Samuel Beckett' (2015), de Daniel Santiago

Performance 'Godot esperando Samuel Beckett' (2015), de Daniel Santiago

FOTO Eduardo Romero/Divulgação

"A arte é a mais controvertida das expressões humanas, e a performance é a mais controvertida das expressões artísticas." "Psicografado" por Daniel Santiago, o trecho integra o sermão do sacerdote português D. Pero Fernandes Sardinha, logo após ter sido devorado pelos indígenas. É assim que somos recebidos ao virarmos a primeira página da recente obra do artista e professor da UFPE Eduardo Romero. O livro Visível audível tangível – Mitos do corpo na performance em Pernambuco, lançado em junho deste ano, propõe reflexões acerca das diferentes possibilidades de criação, na arte contemporânea, por meio da performance.

Desde muito tempo, a arte assumiu formas distintas, democráticas, e libertou-se de representações clássicas, na medida em que o corpo passou a ser expressão estética de si mesmo. É nesse contexto que as ações performáticas o colocam em evidência, exprimindo uma intensa gama de significados, que vão além da configuração de um ideal de beleza ou de valores sócio-históricos. Um agente de provocação, que questiona, muitas vezes, a própria arte, para além do "racional".



O livro de Eduardo Romero observa a linguagem performática a partir da perspectiva da antropologia do imaginário, que considera a atitude simbolizadora como ação estrutural dos seres humanos. É uma forma de debater a performance pelo viés simbólico, uma vez que os artistas articulam sistemas de símbolos que são assumidos e manipulados consciente e inconscientemente, numa dinâmica que une o corpo como obra; a estética; a natureza e a cultura. “Ela oferece uma visão ampla e aprofundada do sujeito e sua condição universal de simbolizar. A antropologia do imaginário me aproximou desses sentidos do corpo, que são expressos pela arte da performance”, explica Eduardo em entrevista à Continente.

A OBRA
O termo “performance” é utilizado de diversas maneiras não só nas artes visuais, mas também no teatro e na dança, por exemplo, ou na própria antropologia. Desse modo, houve, para o autor, certa dificuldade em ancorá-lo, embora o situe no universo das artes visuais.

O livro é resultado de uma pesquisa de doutorado, feita através de entrevistas com artistas e curadores, consulta em acervos e levantamentos bibliográficos. No processo de edição, a tese foi “enxugada”, além de contar com algumas atualizações e partes do texto que foram refeitas, a fim de tornar a leitura menos acadêmica e mais fluida.

A ideia do artista ser criador e obra ao mesmo tempo, utilizando o corpo como suporte, o atraiu desde o início da graduação, ao ter contato com os movimentos artísticos e a própria arte contemporânea. Pouco depois, ao realizar algumas performances, buscou leituras e referências para fomentar seus pensamentos e projetos. A motivação de pesquisar sobre o tema com mais profundidade surgiu ao iniciar o doutorado. No entanto, Eduardo não enxergava um horizonte teórico que permitisse esse aprofundamento.



Apesar de haver uma tradição consistente da expressão no Brasil, onde figuram nomes influentes como o de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, e, no Recife, Daniel Santiago e Paulo Bruscky, o debate sobre a performance no país é recente, tendo pouquíssimas pesquisas em Pernambuco sobre o tema. Enquanto fazia o levantamento bibliográfico, o autor percebeu a ampla existência de documentação escrita e visual, mas de maneira fragmentada. “São textos críticos pontuais sobre determinadas ações, relatos de experiências dos próprios performers ou descrições técnicas sobre as obras. Assim, a pesquisa foi ganhando certa profundidade na medida em que eu buscava referências teóricas mais densas sobre o assunto”, acrescenta.

Por a performance reivindicar espaços urbanos e a interação com o público, foi necessário ainda um extensivo trabalho de campo, que contou com apreciações e registros em instituições de Recife, Garanhuns, São Paulo e Portugal, em Lisboa e Villa Nova de Cerveira.

Sobre a importância dessa aproximação do imaginário dos artistas e de suas obras, Eduardo observa que esse contato mais estreito o possibilitou perceber como a performance é multifacetada, como as suas ações associam tantas linguagens, como o público reage às exibições, como os artistas se preparam, o que eles pensam e como articulam a obra a partir de seus corpos. A performance é desafiadora porque aberta a múltiplas interpretações; assim, toda proximidade é uma forma de melhor apreendê-la. 

A discussão dos mitos do corpo na performance religa, ainda, o trajeto antropológico e a obra performática dos artistas visuais Daniel Santiago, João Manoel Feliciano e Izidorio Cavalcanti, recorte de seu trabalho. Nomes pernambucanos, cujas obras integram acervos espalhados no Brasil e no mundo, que tiveram a contextualização de suas trajetórias como meio de mapear cinco décadas das artes visuais no estado, que compreendem de 1970 até os dias de hoje.


O artista João Manoel Feliciano na perfomance Barca Capillus (2008).
Foto: Divulgação

Visível audível tangível não é um tratado sobre a performance, mas uma tentativa de aproximação com o universo complexo da arte, dos artistas no processo criativo e da riqueza que é a ação performática na sua condição de expressão artística e, consequentemente, humana. Afinal, na performance, confunde-se o que é cena e o que é vida. Uma se alimenta da outra. Estabelecer uma interpretação absoluta foge da própria lógica de ser arte.

O livro ainda será distribuído para comercialização, mas pode ser adquirido com o autor, via email (eduardoromero.lbarbosa@gmail.com), por R$ 20.

SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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