Entremez

A sensibilidade artística pode ser uma bênção?

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

06 de Junho de 2019

Ciça do Barro Cru entrega fotos a Ricardo Tilkian, fotógrafo paulista que fez o único ensaio sobre a artista

Ciça do Barro Cru entrega fotos a Ricardo Tilkian, fotógrafo paulista que fez o único ensaio sobre a artista

Foto Divulgação

Quando no Crato e em Juazeiro do Norte havia feiras de rua semelhantes às da Idade Média, as duas cidades eram tomadas por artesãos: ceramistas, flandeiros, tecelões, moveleiros, seleiros, pessoas que trabalhavam o couro, a palha do buriti e do babaçu, o agave e a lã vegetal. A região ainda não fora invadida pelos plásticos e eletroeletrônicos vindos do Paraguai, nem pelas quinquilharias importadas da China.

Muitos artistas populares sobreviviam de trabalhos manuais, úteis na vida diária, como potes, quartinhas, panelas, colchões, arreios e cordas. As cidades mudaram e esse tipo de artesanato perdeu sua razão de existir. Com a proliferação das motos, diminuíram os cavalos e os fabricantes de selas. As panelas de alumínio, os plásticos e acrílicos ganharam a concorrência com os utensílios de barro, que se transformaram em objetos decorativos.

O que era útil perdeu a função. Para que fabricar caixotes de madeira e malas de armazenar rapadura, se não existem mais engenhos nem consumo de rapadura como antigamente? A história do homem pode ser acompanhada pelo que ele fabrica ou deixa de fabricar. Máquinas de datilografia viraram peças de museu, da mesma maneira que vitrolas e câmeras super-8. Vez por outra encontram um novo uso para o que foi encostado. Os DJ reinventaram uma maneira de tocar os discos de vinil.

Escrevo esse preâmbulo para falar de uma ceramista de Juazeiro do Norte, conhecida pelo nome de Ciça do Barro Cru porque não levava ao forno os objetos de sua criação, deixando-os secar ao sol. Conheci-a quando fazia ponto de venda junto a um canal, construído pela Prefeitura do Crato para conter as águas do Rio Granjeiro.

Ela se apresentava como boa parte das romeiras do Padre Cícero: vestida de algodão colorido com pregas, cintura alta e saia cobrindo os joelhos. Um chapéu de palha na cabeça, guarda-sol, cabelo com bastante óleo de coco, preso por marrafas. Lábios pintados de vermelho e faces com bolas de ruge carmim.

Sentava num caixote de madeira, o mesmo em que transportava sua arte. A vida meio rural e meio urbana do Cariri era representada por mulheres costurando, fazendo renda, carregando trouxas de roupa ou feixes de lenha, com os filhos ao peito. Ou por homens com enxada no ombro, burrinhos, lagartixas de rabo de borracha, cobras, pavões com calda de papel laminado e areia prateada, rádios, panelas, galinhas e papagaios.

Não havia uma única coisa que o freguês imaginasse que Ciça não fosse capaz de executar para ele. Contemporânea, incorporava ao barro o lixo urbano, isso que hoje chamam de reciclagem. Performática, criava cenas, ambientes e falas para seus personagens. Ousada nas cores, nos materiais, nas invenções.

Certo dia, cheguei para comprar uns barros. Sentei-me no chão, em meio aos feirantes, temendo a cusparada de algum bêbado de passagem. O sol quente fervia meus miolos. Ao longe, um vendedor de cordéis lia versos de um romance conhecido. Mais longe, uma cega arranhava a rabeca e puxava a história chorosa da “Menina que se perdeu na Amazônia”. Fechei os olhos me imaginando num sertão antigo, prestes a desaparecer.

Depois de longa ausência sonhada, abri os olhos. Cícera se aproximara de mim e me cobria com o seu guarda-sol. Olhou-me risonha, complacente, cúmplice de minha loucura.

Acordei e vi a cerâmica de uma mulher faltando uma perna. Apoiada numa muleta, com uma trouxa de roupa na cabeça própria das lavadeiras, ela carregava um bebê no braço, mamando. Perguntei quem era a figura.

– É uma infeliz, me respondeu. O marido deixou ela com um menino de peito, e a coitada ganha a vida lavando roupa. Sustenta a família com esse ganho pouco. Como se não bastasse, foi atropelada por um carro e perdeu uma perna. Não é mesmo uma desgraça?

E se pôs a chorar. Tentei consolá-la e perguntei se era alguma conhecida sua, mas ela respondeu que não. Imaginara a história. Artistas criam um mundo de fantasias e mergulham nele, podendo se afastar da realidade.

Mas isso nunca aconteceu com Ciça, felizmente. Também não me vendeu a cerâmica. Confessou-me que, se pudesse, não venderia uma única peça de sua criação. O dinheiro que os compradores pagavam era bem pouco. Melhor ficar com tudo guardado, mesmo que passasse fome.

Lembrei o gravurista Gilvan Samico que, igualmente, não gostava de vender suas gravuras, mesmo sendo reproduzidas até a cópia de número 120. E de Van Gogh, que desejava vender um dos seus quadros, mas nunca alcançou a façanha em vida.

Sem chances de concorrer com os utilitários, o barro sobreviveu como arte, graças às Ciças e outros artesãos populares. As panelas de barro... As panelas de barro? Vocês conhecem os últimos lançamentos em teflon? E as panelas de aço? Ah, as de aço!...

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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