Entremez

O povo de Caim

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

08 de Janeiro de 2020

Foto Reprodução

– Há três maneiras fáceis de perder dinheiro: no jogo, comprando terra e com mulher.
– Que machismo!
– Pelo menos, com mulher se tira algum proveito.

O comentário é do meu chefe, diretor do hospital onde trabalho, um tenente reformado da Aeronáutica. Foi atirado em cima mim como praga ou anátema.

– Respeite as mulheres.

Eles não respeitam. As piadas grosseiras e imorais sobre o feminino ocupam o repertório dos machos.

Fiz a asneira de comentar sobre um sítio que adquiri no agreste pernambucano, no alto de uma serra, onde o brejo de altitude sobrevive a duras penas. Há outros semelhantes no estado, em Gravatá, Buíque, Bezerros, Pesqueira, Triunfo e Bonito. Devastados por repetidas secas, perdem a flora nativa e se transformam em sertão.

– Pensa que vai lucrar alguma coisa?
– Silêncio, sossego, clima agradável. Lá nunca se registra temperatura superior a 23 graus. Tenho água, café e frutas. Dá para encher um caminhão a cada viagem. Dizem que o café brasileiro entrou por Taquaritinga. Arábica típico, sabor achocolatado, a melhor semente do mundo, só tem parecida na Colômbia. Também é plantado à sombra, debaixo de bananeiras, ingazeiras e cajueiros. O proprietário que me vendeu tirava 70 sacas, todo ano. Custa caro, é exportado pro Japão.
– Derrubam a mata nativa e plantam café.
– Quando comprei, já estava plantado. Sou pela preservação, você me conhece. Tem pés de café com quase um século.
– Me conta essa história depois.

Não deu para contar. O chefe morreu de uma lesão na medula cervical, após queda no banheiro. Uma fatalidade.

Faz 30 anos da conversa. Na maior safra, desde que adquiri a propriedade, colhemos 17 sacas de café. Depois foi minguando, minguando, até chegar a quase nada. O mesmo aconteceu com os vizinhos. As sucessivas estiagens mataram ingazeiras, bananeiras, cajueiros, laranjeiras, limoeiros, jaqueiras, abacateiros e mangueiras. Uns poucos pés de pitanga, acerola, jabuticaba e graviola teimam vivos. O cafezal foi praticamente extinto, de nada valeram sucessivos replantes, não chove mais, a terra tornou-se pobre, as árvores que davam sombra não sobreviveram, as nascentes d’água e os poços secaram. Há cerca de 10 anos, a região entrou em colapso de abastecimento, não há água para beber, muito menos para irrigar a lavoura.

Um agrônomo me sugeriu plantar o caju anão precoce.

– Na encosta? – perguntei
– Na encosta.
– Mas no Ceará ele é plantado em terreno plano e arenoso.

Ouvi aula durante três horas e convenci-me. Gastei dinheiro e tive uma trabalheira infame. Das seiscentas mudas plantadas com as técnicas da agronomia – curva de altitude, covas largas e profundas, adubo, etc. – sobreviveram apenas três. Nunca produziram um caju. Depois veio a sugestão de criar carneiros, incrementar o plantio de bananeiras para o fabrico de banana passa, etc. etc. etc.... E o dinheiro sumindo pelo ralo. Até que surgiu a mais genial das ideias, deixar o mato nativo crescer: cedro, gameleira, chifre de bode, canafístula, munguba, jucá, ipê, freijó, sucupira, gameleira, jurema, barriguda, baraúna, mulungu e dezenas de outras espécies vegetais.

Trata-se de um terreninho nada comparável ao projeto de Sebastião Salgado, em Minas, ou ao de Roberto Viena, na nascente do Beberibe. Imaginei que replantar a terra com mudas nativas seria a minha contribuição ao planeta. Descendo de agricultores, a linhagem de Caim. Meus antepassados brancos chegaram ao Ceará, no começo do século XVIII, e os índios já viviam por lá, sobrevivendo de plantios. A partir da década de 1950, minha geração abandonou a terra, não enxergava mais futuro nela. Vez por outra algum primo acometido de remorso compra um sítio. Com o bolso saqueado, constata que o retorno às origens é puro romantismo. Raros projetos alcançam sucesso e as casas e os terrenos viram espaços de lazer.

Em Taquaritinga, o solo deixou de ser um brejo e aos poucos se desertifica. Ipês que em três anos ganham metros de altura no Recife, lá não crescem dois palmos. Sem verem futuro na agricultura familiar ou de subsistência, as pessoas migram para a periferia da cidade. O comércio da sulanca ocupa homens, mulheres, adolescentes e crianças. Rapazes que manejavam a enxada agora costuram jeans e lingeries femininas. O transporte se faz nas motocicletas, que ziguezagueiam iguais às máquinas de costura. O barulho cresce, os acidentes aumentam.

– E o silêncio, o sossego?
– Ah, desapareceram! Minifúndios de um, dois ou três hectares, dos quais os pequenos agricultores sobreviviam até a década de 60 e 70, foram abandonados e vendidos, tornaram-se improdutivos. Os compradores loteiam os terrenos em quadras de 200, 300 e 500 metros, onde não há água nem cobertura verde. Casas são levantadas, proliferaram os bares. Nos finais de semana e feriados, os novos posseiros ocupam os ranchos para beber aguardente e ouvir música ruim no último volume. A embriaguez termina em briga, tiro e facada. Há quinze dias, dois irmãos bêbados resolveram trombar com as motos. Um morreu no local e o outro ocupa um leito na emergência da Restauração.

A violência cresceu, o uso de drogas tornou-se alarmante. A sociedade patriarcal, que no Brasil formou-se baseada nas donatarias e capitanias hereditárias, alimenta o machismo, o feminicídio e a homofobia. Daí serem tão comuns os assassinatos de mulheres, a quem os criminosos homens escalpam e extirpam as mamas como se desejassem se livrar da consciência de que existe o gênero feminino. E de tão comum, a violência parece natural. É até estimulada por um governo que não esconde suas fobias e misoginia.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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