Entremez

Recife tão Síria tão Iraque

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

08 de Maio de 2018

Imagem do centro do Recife (Avenida Conde da Boa Vista)

Imagem do centro do Recife (Avenida Conde da Boa Vista)

Foto Gabriel de Lima Pontual/Site Modulação

Cheguei atrasado ao encontro com Abel Menezes. Da Rua do Hospício liguei pedindo que ele descesse do apartamento. Abel havia sugerido almoçarmos um cabrito no Mercado da Boa Vista. Fiz a contraproposta de comermos língua ao molho madeira, no Leite. Era sábado 21 de abril, um feriado que não se definia como o tempo, ora chuva ora sol de rachar. O calor tirava o fôlego. Desde o carnaval eu não caminhava pelo centro do Recife, agora vazio de carros e gente, silencioso, apenas os miseráveis e drogados habituais ocupando ruas e praças, as paredes dos edifícios um palimpsesto de pichações, sujeira sobre sujeira.

– Suba, insistiu Abel.
– Melhor, não. São quase duas. Se começamos a ver livros e a conversar, perdemos o almoço.

Depois dos abraços, seguimos pela Rua da Aurora até a ponte de ferro. Ao rés da calçada, ninguém avista o Capibaribe, correndo ao lado. Mandaram plantar vegetação de mangue às margens do rio, roubando a paisagem. Rimos por nada. Quantas vezes fizemos o mesmo trajeto ou esperamos juntos nas portas dos teatros e cinemas, falando aos borbotões? Parecemos os mesmos de anos atrás, com pouco cabelo, mais gordura, porém sempre esbanjando animação.

– O Leite fecha aos sábados, esquecemos disso.
– Que tal comermos no Paço Alfândega?
– Não tem restaurante bom, Abel me informa.
– E no Dom Pedro?
– Ainda funciona?

Agora caminhamos pela Rua Nova, esbarramos nos tapumes cercando a igreja fechada de Santo Antônio, lemos faixas no edifício Sul América, na Praça da Independência. Ocupado por mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, batizaram o ato de Marielle Franco, em homenagem à vereadora carioca recém-assassinada. Observo constrangido, à direita e à esquerda, o equívoco de outras administrações, a Avenida Dantas Barreto, resultado de um desastroso projeto de modernização do centro da cidade. Começado em 1930 e concluído em 1970, se estendeu pelo Bairro do Recife e teve nos prefeitos Pelópidas Silveira e Augusto Lucena os principais reformistas. Demoliram ruas, prédios, igrejas e monumentos históricos, expulsaram as pessoas de Santo Antônio e São José, esvaziaram os bairros dos seus moradores tradicionais, tornando-os inabitáveis. A deserção maior viria com os shoppings, lugares de convivência insípidos como os hambúrgueres da McDonald's. As lojas tradicionais, situadas nos pontos por onde a cidade começou, foram todas à falência.

Há 50 anos caminho pelo Recife, me extasio, morro de tristeza, cheiro becos, fuço o lixo com os cães. Abel reclama da via sacra, dos staccato que agravam sua fome. Na esquina da Rua do Imperador, uma mulher pinta o quiosque com um compressor. A tinta se espalha no ar, incomoda, tinge de azul uma larga faixa das pedras portuguesas, orgulho recifense no passado. Mesmo que o poeta Carlos Pena Filho tenha desejado pintar as ruas de azul, me sinto incomodado.

O Dom Pedro encontra-se aberto, a mesa na entrada repleta de sacos de compras, largados ao acaso. Há três clientes. O garçom nos atende, o paletó branco impecável, os dentes cheios de cáries. Pedimos bolinhos de bacalhau fritos, uma cerveja de qualidade média, servida gelada. Almoçamos pernil de cabrito com arroz, farofa e feijão. Comida caseira deliciosa. A segunda cerveja de marca ruim chega quente. Decidimos tomar o café à beira do rio, no Delta. Ótima escolha, a vista para o Cais da Alfândega deslumbra, sentimos calor, estamos comovidos com a cidade. O lixo amontoado na Praça Dezessete, os cães dormindo nos degraus da Igreja do Divino Espírito Santo, erguida desde o segundo século da descoberta, não comprometem nosso astral. Leio apressado uma inscrição: Dormem nas pedras sonhos do amanhã. Quem terá escrito?

Não somos o poeta Fernando Pessoa, não há moços de frete em torno da mesa, mas percebemos o piscar de olhos e o riso indisfarçado dos garçons, assistindo à euforia dos dois senhores de mais de 60, falando alto e desbocado. Ouvimos o toque de um celular, Abel quase se despe para extrair o telefone da pochete de couro.

Fazemos o percurso de volta à Rua da Aurora. O Edifício Santa Alice, construído na década de 1960, ao lado do Cinema São Luiz, mantém relíquias de antigo charme parisiense, que os engenheiros e arquitetos trouxeram ao Recife. Rive Gauche. O apartamento de Abel se abre numa paisagem de rio e cidade. Amplo, bem dividido, iluminado e com brisa – quando ela sopra –, o imóvel provoca saudade de um tempo em que era agradável viver na Boa Vista, as pessoas chegavam aos cinemas e lojas, tomavam soverte na Confiança, Gemba e Estoril. O que aconteceu à cidade, ao país e ao mundo? Talvez o movimento dos que não tinham direito a tomar sorvete na Confiança, Gemba e Estoril, e apenas olhavam de longe os de sempre se saciarem.

Abel quer fazer um brechó com 3.000 livros de sua vasta biblioteca, vendê-los ao preço simbólico de dois reais cada. Uma festa na pracinha do Diario, em meio ao caos e ao som da Rural de Roger. Põe três livros sobre a mesa, um deles A Epopeia de Gilgamesh, poema mesopotâmico do século 13 a.C., traduzido diretamente do acádio por Jacyntho Lins Brandão. Abel e eu apreciamos investigar a cultura e a mitologia do Oriente Médio, ele com bem mais conhecimento do que eu. O poema se compõe de 12 tábuas de argila, cada uma possui 300 versos. Alguns são apenas fragmentos, recompomos com a imaginação. Vou até a janela, contemplo o Recife devastado. O legado da Síria e os tesouros da Mesopotâmia sofrem ataques de radicais islâmicos e bombardeios de americanos e europeus. Culturas antigas tão importantes quanto a grega se fragmentam como as tabuinhas de Gilgamesh. Dói. Sinto vontade de chorar. Abel chora. O que podemos fazer? Nada? O que podem os sírios e os iraquianos? Nada? Contra a força não há mesmo argumento, como na fábula do cordeiro e o lobo?

Abel corta ao meio uma pitaia de cor rosa inebriante, miolo branco e sementinhas pretas. Lembra o fruto do mandacaru. Eu como sem paixão. Retorno à janela, Abel se distrai com os livros. Os taxistas jogam dominó, os carros parados, à espera de passageiros. O dia se encaminha para a tristeza. Peço um carro da Uber. Mais tarde recebo e-mail dizendo que tratei mal o motorista. É possível?

As coisas nesse país andam tão estranhas, tão imprevisíveis.

------------------------------------------------------------------------------------
*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

Publicidade

veja também

Eu nasci naquela terra, não me leve para o mar

São João dormiu, sua festa não viu

O câncer da política brasileira