Entrevista

"'Tatuagem' tem um lado muito triste, que desemboca no 'Fim de festa'”

Um conversa em tempos pandêmicos com o realizador pernambucano Hilton Lacerda sobre seus dois longas ficcionais; 'Tatuagem' tem exibição neste sábado e 'Fim de festa' está no streaming

TEXTO LUCIANA VERAS

12 de Setembro de 2020

O diretor no set de

O diretor no set de "Fim de festa"

FOTO Victor Jucá/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Para mim, de alguma forma, Tatuagem tem um lado muito triste, que desemboca no Fim de festa”, me diz Hilton Lacerda em um diálogo transcorrido em algum lugar do planeta quarentena. Falo com este talentoso realizador pernambucano por telefone num fim de manhã desses meses de confinamento, isolamento & distanciamento social em que estamos a viver desde março de 2020. "Estou aqui nesse isolation/desolation", brinca, referindo-se a uma canção da banda inglesa Joy Division. Comentamos sobre Fim de festa (Brasil, 2019), seu mais recente longa-metragem, que foi lançado em festivais no final de 2019, mas que, ao chegar às telas comerciais justamente em 5/3, tornou-se uma espécie de símbolo audiovisual dos tempos de pandemia. Mas, claro, também discorremos sobre Tatuagem, filme que roteirizou e dirigiu em 2013, uma ode ao desbunde, ao amor e à picardia. 

Neste sábado, 12 de setembro, Tatuagem será exibido na Globo Nordeste, na faixa Pernambuco em cena, talvez para nos fazer recordar a potência do desejo entre Clécio (Irandhir Santos) e Fininha (Jesuíta Barbosa), talvez para nos lembrar da importância de prestigiar e defender o audiovisual brasileiro em um momento em que a arte, a ciência, a cultura e até mesmo o jornalismo parecem estar sob ataque da presidência da República e de seus asseclas e correligionários. Aliás, falando nessa claque, o que pensa Hilton, por exemplo, de quem estufa o peito para reclamar dos “artistas comunistas”? “Fico tão abusado que a volta dessa discussão, parece quase uma afronta à nossa inteligência. Qualquer pessoa com três neurônios sabe quem são os atores dessa tragédia que vivemos no Brasil. E não é o comunismo”, pontua.

Nessa entrevista à Continente, o assunto “viver no Brasil na pandemia de 2020” surge com naturalidade. Afinal, Fim de festa (Brasil, 2019) não se coligou, em assombroso encaixe, ao zeitgeist da vida sob o novo coronavírus? “Me lembro de que na pré-estreia, numa noite de sábado no São Luiz, João Jr estávamos juntos, lá atrás, e era aquele mar de gente tossindo, naqueles clássicos sintomas de doença pós-Carnaval... Comentamos: até parece uma orquestra”, relembra Hiltinho, como o diretor é conhecido. Naquela sessão, o público recifense conheceu o melhor filme do Festival do Rio 2019 (no qual essa produção da Carnaval Filmes, de João Vieira Jr. e Nara Aragão, também levou o troféu de melhor roteiro) e sua investigação sobre a masculinidade e contratempos afetivos e geracionais a partir da figura de Breno (novamente Irandhir, brilhando), detetive que interrompe suas férias para investigar a morte de uma estrangeira ocorrida no meio da folia. 

Sobre Fim de festa, Mateus Araújo escreveu um belo texto que publicamos aqui mesmo na Continente online, ainda em dezembro de 2019, quando não havia vislumbre algum do que 2020 nos reservava. "Acho que nem nos mais mirabolantes roteiros poderíamos imaginar que estaríamos assim agora", brinca Hilton, que antes codirigira o longa documental Cartola - Música para os olhos (2007), com Lírio Ferreira. Fim de festa está disponível em plataformas de streaming e VOD como o Now e também em um caprichado  DVD em blu-ray.  , lançado pela distribuidora Imovision. Falamos de tudo isso, claro, mas houve pausas para relembrarmos as delícias do Elã cafés especiais, parceria dele e do seu companheiro Leo Lincoln, e das pequenas loucuras e ternuras de estar em quarentena. “Estou eu aqui montando Chão de estrelas, à distância, com Natara Ney”, antecipava, aludindo ao seu mais novo seriado, também produzido pela Carnaval Filmes e pelo Canal Brasil como o primeiro, Lama dos dias.

No entanto, foi sobretudo sobre Fim de festa e seus vínculos com Tatuagem, bem como também sobre desfechos e recomeços, que se deu a conversa com este prolífico roteirista e exímio cineasta. "Talvez o preceito geral de Fim de festa não seja pintar o fim de alguma coisa, e sim o início de outra, mesmo quando nossas intimidades estejam expostas ao olhar de um drone", cristaliza Hilton Lacerda. Abaixo, uma edição com diversos trechos nossa conversa.


Cena de Fim de festa. FOTO: Victor Jucá/Divulgação

CONTINENTE 
Acredito que Fim de festa é um filme-símbolo desse 2020 pandêmico, pois teve suas pré-estreias logo após o Carnaval, entrou em cartaz no início de março e logo depois os cinemas fecharam.
HILTON LACERDA Pois é. E nossa primeira semana de exibição teve um resultado super bom, dentro da expectativa para os lançamentos daquele momento. Toda aquela ideia de lançar no pós-Carnaval era porque entendíamos, por exemplo, que queríamos lançar comercialmente sem prejudicar outros festivais que não precisassem de ineditismo no país de origem. A estratégia foi toda correta, mas esbarrou nessa questão da pandemia. Eu sentia que o filme queria falar com um momento muito específico, também muito interessante, e João Jr. e eu ficávamos preocupados para que Fim de festa não envelhecesse. Às vezes, sinto que os filmes envelhecem em matéria de conteúdo quando a data de lançamento é jogada para muito longe.

CONTINENTE O lançamento em VOD terminou sendo antecipado para maio, então.
HILTON LACERDA Sim, antecipamos por conta da pandemia. Fim de festa foi pensado, como estratégia, para ser lançado nos cinemas no mesmo tempo em que acontece o filme, naquele pós-Carnaval, para aproveitarmos o dado da realidade. E, apesar de um monte de gente ter ido ver, como os cinemas foram das coisas que primeiro fecharam, ficamos uma semana em cartaz, praticamente. E isso nos levou a ficar pensando na possibilidade de planejar para que o máximo de pessoas tivesse acesso ao filme. Bem, não sabíamos e ainda não sabemos quanto tempo isso vai durar e ficou muito claro para mim que havia essa urgência de que pessoas pudessem ver logo o filme. Até porque o cinema brasileiro estava em um momento muito ativo e fiquei pensando que a experiência de uma pandemia é interessante para que as pessoas possam ter uma ideia melhor do que é a produção de conteúdo, dos produtos culturais que foram feitos nos últimos anos, e da necessidade que temos, de fato, da cultura como elemento da própria identidade de um país.

CONTINENTE Se pensarmos na ideia de um universo criativo dentro da sua obra ficcional, de onde e como surge Fim de festa depois de Tatuagem? Para além de ter você à frente, de que maneira esses filmes estariam entrelaçados?
HILTON LACERDA Acho que, antes de pensar nesse lugar íntimo de onde transbordam e onde se transformam Tatuagem e Fim de festa, penso no que às vezes me leva a escrever. Primeiro, é preciso entender sobre o que se quer falar: o que te move, o que te chama atenção, o que é importante... O conceito do que falar, muitas vezes, vem antes do que a própria narrativa. Onde é que esse conteúdo cabe? Onde vou colocar essa ideia inteira? De que forma essas tuas ideias contribuem para essa narrativa? Ou seja, no desenvolver da história tudo isso pode te levar para um outro lugar. Se você pega Tatuagem, de maneira direta, o que se vê? A perspectiva de desbunde, positiva, colorida, pra cima... Mas para mim, de alguma forma, Tatuagem tem um lado muito triste, que desemboca no Fim de festa. A construção de uma melancolia tropical, que antes eu não sabia como fazer nem como descrever narrativamente, mas que me levou a pensar e a fazer essa passagem sobre a ideia de um país que vez ou outra experimenta esses instantes de felicidade. Quase como se sazonais, numa montanha-russa que sobe e desce. Então ali, no Tatuagem, estamos em 1978, numa provável abertura depois de anos sob o AI-5, com detalhes imbuídos dessa ideia de uma contracultura um pouco tardia, por conta desse isolamento brasileiro. Como se estivéssemos bebendo de várias fontes... Como Clécio, quando imagina as roupas dele, não bebe apenas no universo dos anos 1970 no Brasil, mas bebe de David Bowie também.

CONTINENTE Tatuagem estaria em uma volta “pra cima” da montanha-russa e Fim de festa, como o nome aponta, em um tom mais “pra baixo”?
HILTON LACERDA No final de Tatuagem, quando tem a exibição do filme em Super 8 do professor Joubert (personagem de Sílvio Restiffe), as pessoas se perguntam “o que vai ser do futuro?” e falam em um monte de pesquisa, ficção científica, filosofia, mesmo de uma máquina do tempo para se ir ao futuro... Mas surge uma frase “e haverá futuro?”. Não sei. A pergunta é minha, então digamos que talvez o Fim de festa venha para retomar, naquela mesma interrogação sobre o futuro, uma ideia narrativa. Não é a mesma história, mas talvez uma obra que seja recorrente do ponto de vista da observação, da construção dos personagens. Tem muitos dados ali dentro que não são delineados. Por exemplo, o próprio Breninho (personagem de Gustavo Patriota, o filho de Breno, o policial vivido por Irandhir Santos) usa um colar do avô dele, que é o mesmo colar de Clécio, em Tatuagem. Que janelas foram essas que se abriram? Onde foi que aquela ideia de Tatuagem caiu? Talvez uma tentativa de reinvenção, sim, mas em Fim de festa, Breno parece não conseguir se reinventar, amarrado a uma história que não lhe deixa seguir... Porque as coisas dão errado também. E talvez o preceito geral de Fim de festa não seja pintar o fim de alguma coisa, e sim o início de outra, mesmo quando nossas intimidades estejam expostas ao olhar de um drone.


Trupe Chão de Estrelas em Tatuagem. FOTO: REC/Divulgação

CONTINENTE  Nesses dois filmes, você embaralha as convenções dos gêneros. Tatuagem é um resgate histórico, é inspirado no Vivencial Diversiones, mas é também uma história de amor entre corpos iguais. Fim de festa tem a estrutura repartida em capítulos, como uma investigação policial que de fato é, mas é um filme que tem o conflito entre pais e filhos. Como é que você vê isso?
HILTON LACERDA Qual a importância do gênero dentro das narrativas? Eu trabalhei em uma loja de locação de vídeo e ali as divisões eram western, clássicos, dramas, comédias e eram coisas que, para alguém metódico como eu, pareciam estranhas. Por exemplo, você pega um filme como Repo man, de Alex Cox: é uma ficção distópica, mas pode ser um drama também. Engraçado com essa qualificação dos gêneros me leva muito a compreender como tudo isso se estrutura dentro de uma cinematografia nacional como a nossa. O que seria uma ficção científica feita por um viés brasileiro contemporâneo? Bacurau e Recife frio me parecem uma leitura de gênero muito específica, aproveitando aquele modelo para fazer uma leitura clara do que se vive agora. Alguns diretores norte-americanos muito bons fazem isso com filmes de terror, por exemplo, com uma leitura de gênero para falar de seu tempo, com zumbis para tratar de determinada sociedade. Acho que existem experiências narrativas feitas no Brasil nesse momento que são muito interessantes nesse sentido.

CONTINENTE Quais?
HILTON LACERDA As produções da Filmes de Plástico e da Filmes do Caixote, o cinema independente carioca, pernambucano, o que se tem feito na Paraíba e no Ceará... Tudo se voltando às possibilidades de narrativas. Mas, eu acho que, se antes discutir os gêneros era muito importante, muito caro ao cinema em si, hoje o que me interessa mais é a construção dos personagens.

CONTINENTE Então não é por acaso que seus filmes trazem personagens ambivalentes, contraditórias, ambíguas...
HILTON LACERDA Sobre essa ideia de construção da ambiência dos personagens, me lembro de uma vez ter conversado com Luciana Araújo (pesquisadora e professora pernambucana) sobre essa ideia de que, se você vai escrever sobre um personagem, precisa ser apaixonado por ele. Acho que não tem que ser, sabe? Acho que você precisa, sim, pensar em uma conduta para aquele personagem dentro da narrativa que, aí sim, vai deixar margem para as pessoas se apaixonaram ou não. Se pegamos Breno, protagonista de Fim de festa, essa ambivalência é mais clara: ele sofre as consequências de algo que fez, paga por isso, mas é possível ter uma leitura mais complexa em relação ao que ele vive e a como ele vive do que a elucubração sobre o que ele fez. É investigar a ideia de linguagem, de pensar o cinema a partir das ideias de Ricardo Piglia, para quem sempre se está investigando alguma coisa, criando uma nova linguagem, uma nova forma de leitura. Por exemplo, Everardo, o personagem de Matheus Nachtergaele em Baixio das bestas (longa de Cláudio Assis de 2006, roteirizado por Hilton), foi escrito como muito perverso. E de fato roteiro e filme se parecem muito, mas há coisas que estavam em mim quando escrevi, mais nuances de Everardo, que fazem com que, por exemplo, vejamos cenas em que ele está mau, muito mau, e teoricamente nos leva a sentir muito desprezo, mas ao mesmo tempo é engraçado e talvez seja a única pessoa com quem eu seria capaz de conversar ali. A ideia de ambivalência no Fim de festa está em tudo, no espelho contemporâneo das relações entre pais e filhos, fazendo a inversão do eixo de conduta, quando é o Breno filho que parece cuidar do pai. Talvez seja por isso que Breno pai é quem precisa do filho e por isso que o filho não tenha ido morar com a mãe, porque ele entende que precisa cuidar daquele homem.

CONTINENTE Por fim, Tatuagem e Fim de festa são filmes em que corpos masculinos estão em situação de proximidade – como amantes, no primeiro, e nesse vínculo de pai e filho no segundo.
HILTON LACERDA Acredito que o corpo é um instrumento político por natureza. Quando se põe na tela, a aproximação de dois corpos masculinos é sempre interessante, ou com a erotização de Tatuagem ou com uma relação não necessariamente erótica, como em Fim de festa, quando pai e filho se afagam e trocam energia de carinho. Vivemos em uma cultura machista e acho que a resposta, a reação a cenas assim, vem pela ideia do que, na verdade, se passa dentro da cabeça das outras pessoas. Me lembro de uma história que aconteceu e me incomodou bastante, em São Paulo, quando um "casal gay" foi agredido e espancado num parque. Porque eram dois homens abraçados e aquilo incomodou, mas mas na verdade eram pai e filho. Que tipo de pensamento é esse?

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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