Entrevista

"Aurélio é a pessoa de quem eu escapei"

Matheus Nachtergaele fala sobre o seu personagem em 'Piedade', longa-metragem de Cláudio Assis, e reflete sobre a condição de artista no Brasil

TEXTO Luciana Veras

21 de Outubro de 2020

Matheus Nachtergaele e o diretor Cláudio Assis

Matheus Nachtergaele e o diretor Cláudio Assis

Foto Cristina Granato/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Não é novidade que o ator Matheus Nachtergaele tem uma relação próxima, afetiva, política e carnal com o cinema pernambucano. Sobre isso ele fala, e muito, no perfil que Bruno Albertim escreveu para a revista Continente, na edição #238, deste mês. E embora ele atue em projetos de realizadoras como Renata Pinheiro (é protagonista de Carro rei, rodado em 2019 e ainda inédito) e elogie as produções rodadas aqui, é nos sets de Cláudio Assis, contudo, em que ele é assíduo frequentador, partícipe e coautor, até. “O cinema do Cláudio também existe porque eu faço junto. Os filmes dele nascem de um encontro”, observa o intérprete.

Conversamos na capital federal em novembro de 2019, há quase um ano, um dia após Piedade (Brasil, 2019) ter sido exibido, pela primeira vez, no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – uma plataforma de lançamento para os longas-metragens de Assis desde Amarelo manga, que saiu do festival de 2002 com o prêmio de melhor filme. Matheus estava impactado pelo que havia visto. “Estou reflexivo, estou convulsivo. O filme me deixou assim.” Seu personagem, Aurélio, é o que ele descreve como “um capitalista gay de armário”: “Ele é, na verdade, uma fresta de mim mesmo. Fui procurar esse capitalista gay de armário em mim para fazer o Aurélio. Eu seria ele se não tivesse tomado um outro rumo na vida. E não tive um método de aproximação com ele. Aliás, não tenho esse método que se repita a cada trabalho, é mais uma sensação de promiscuidade, de poder ser tudo aquilo durante aquele período”.

Piedade ainda não estreou: em junho, foi exibido em um festival virtual promovido pelo espaço Itaú Unibanco e, nesta semana, é uma das âncoras do Los Angeles Brazilian Film Festival, evento dedicado à produção contemporânea nacional. Foi o filme de abertura e está na competição, ao lado dos pernambucanos King Kong en Assunción, de Camilo Cavalcante, e Acqua Movie, de Lírio Ferreira; de Pacarrete, de Allan Deberton, e de outros longas (veja a relação completa aqui). 

Mas é possível saber mais sobre Piedade e sobre Aurélio, o emissário ultraliberal personificado por Matheus Nachtergaele, nesta conversa que transcorreu antes dos tempos pandêmicos, mas já sob uma atmosfera melancólica que, de vários modos, espraia-se sobre a própria narrativa fílmica e também sobre o Brasil de 2020. 

CONTINENTE
Você trabalhou em todos os longas-metragens de Cláudio Assis. Mais do que um convite, é uma convocação irrecusável? Em Piedade, seu personagem é bem diferente, talvez alguém de quem a audiência goste menos, mas é a cara do Brasil. Como você foi chamado pelo diretor?
MATHEUS NACHTERGAELE Aurélio era meu personagem desde o início. Foi sendo modificado e fui tendo notícia dele durante a escritura do roteiro, já que a gente se fala o tempo todo. Em geral, a gente tá fazendo um longa e já pensando no outro. Em Big Jato já se falava no Piedade, assim como no Amarelo manga já se falava do Baixio das bestas e no Baixio já se falava do Febre do rato. É por isso que é um chamado de amizade, afeto... A gente faz isso junto há muito tempo. Já tivemos de tudo, desde ser surpreendido por personagens que não imaginava que eu devesse ou pudesse fazer até personagens que eu neguei.

CONTINENTE Sério?
MATHEUS NACHTERGAELE Sim, sério. Essa é uma história pouco conhecida: eu era o Zizo em Febre do rato. No encaminhamento do processo, achei que não devia ser o Zizo, que para o filme era bom que fosse o Irandhir (Santos). Ele tinha uma relação mais certa, fisicamente se parecia com mais com Cláudio Assis, e o personagem era o Cláudio... Para o filme, era mais bonito que fosse um nordestino verdadeiro fazendo aquele personagem. O Cláudio ficou espantado: “Você vai negar o personagem mais lindo que já te dei?”. Eu disse que sim e que achava para o nosso cinema era melhor que fosse o Irandhir. “Então você vai fazer o quê? Não tenho personagem para você”, me respondeu. “Me dá uns dias que vou tentar me encaixar, se não me encaixar, a gente se encontra no próximo”, eu faleu para ele. “Eu sou o amor da sua vida, não sou só um ator”. Eu li, reli, liguei para ele e falei: “Eu quero fazer o Pazinho”. “Mas  Pazinho é um velho negro”, Claudão respondeu. “Eu posso tentar?”, perguntei. “Tá bom, tá feito”, ele me disse.

CONTINENTE Então nessa relação de vocês tem muita liberdade também.
MATHEUS NACHTERGAELE Eu queria estar no Febre do Rato mais reflexivo. Me ver contracenando com o Irandhir era quase como quem olha para o Cláudio Assis. Queria ser essa pessoa que entende o poeta e dizer “não estou lhe entendendo”. Queria esse lugar. Eu amo o Pazinho. Acho o meu melhor trabalho com o Cláudio. Ninguém acha isso, mas eu acho. Acho um trabalho de uma reflexão, de silêncio e beleza, um trabalho em que abro mão inteiramente do protagonismo para olhar para o nosso cinema... O cinema que faço com o Cláudio, de dentro. Amo o Pazinho do Febre.


Matheus como Pazinho em Febre do rato. Foto: Daniela Nader/Divulgação

CONTINENTE E qual é sua relação com Aurélio?
MATHEUS NACHTERGAELE Fui sabendo do Aurélio aos poucos, entendendo que ele é o emissário do capitalismo e o que poderia ser utilizado, nele, dessa minha descendência branca e paulistana. Fazia todo sentido. Sou filho da capital, mas fui criado em Atibaia pelos meus avós. Minha mãe morreu muito cedo, então fui morar no sítio, como o menino da capital de São Paulo, depois que o meu pai se casou de novo. Tenho três irmãos por parte dele e é dele esse sobrenome, Nachtergaele, que eu uso. Aliás, até que demorou dentro do cinema do Cláudio para que eu fizesse um personagem que não era nordestino. Porque, no Febre do rato, nem é bem um personagem, mas um outro alter ego do Claudão. Acho bem fino, gosto dessa oposição dentro do filme... Acho até que passou meio batido diante da coisa inebriante que é a poesia do Zizo e dos personagens todos. Mas é um dos melhores trabalhos que fiz até por conseguir estar nesse lugar da reflexão.

CONTINENTE Isso é Pazinho. E Aurélio?
MATHEUS NACHTERGAELE Fui percebendo, devagar, que para ele eu teria que  utilizar esse quem eu sou de quem eu escapei. Aurélio é a pessoa de quem eu escapei de ser. Se não fosse quem sou agora, seria ele.

CONTINENTE Como assim?
MATHEUS NACHTERGAELE Se eu fosse seguir os desejos do meu destino familiar, teria sido publicitário. Era o que a minha família sonhava para mim. Fiz artes plásticas na FAAP antes de ser ator, antes de ir para o Antunes Filho, quando tranquei minha faculdade. Mas eu mentia para minha família e dizia que estava fazendo publicidade.

CONTINENTE Você mentia?
MATHEUS NACHTERGAELE Sim. Eu fazia artes plásticas e já era puxado para eles compreenderem.

CONTINENTE Quando foi isso?
MATHEUS NACHTERGAELE Hum... Sou de 1968, então isso deve ter sido em 1987, 1988... Era é uma época em que era mais fácil mentir. Não tinha como eu ser rastreado, por exemplo. E sempre fui autônomo do ponto de vista financeiro. Meus pais não bancaram meus estudos, eu mesmo sempre fiz tudo.

CONTINENTE Mas você se mantinha como?
MATHEUS NACHTERGAELE A minha mãe me deixou uma herança. Não era muito, mas eu tinha uma renda e com ela paguei minha faculdade e o início da minha vida como ator. E rapidamente consegui me manter.

CONTINENTE Em que momento se deu essa transição de artes plásticas para o audiovisual?
MATHEUS NACHTERGAELE Dentro da faculdade, tive um contato poderoso as artes cênicas e com o cinema. Foi quando saí de casa, ainda como estudante universitário, e comecei a conviver com pessoas que gostavam de arte. Tive professores que me davam dicas de filmes e fui entendendo que era para lá que eu desejava ir, apesar de desenhar muito bem e de achar que estava na vocação certa. Sim, porque eu achava que estava no curso certo, na direção correta. Como não tinha nenhum familiar meu que fosse nem músico, privadamente tive que fazer esse pequeno desvio, e para eles era muito mais fácil imaginar que eu estava lá cursando propaganda e marketing enquanto estava sendo criado um pequeno revolucionário dentro de casa. Aurélio é aquele de quem eu escapei de ser.

CONTINENTE Tendo visto Piedade, entendo bem e acho bonita a sua colocação.
MATHEUS NACHTERGAELE Tenho 51 anos agora. Estou na maturidade, posso dizer que eu poderia ter sido essa pessoa em cena. E que hoje prefiro ser essa pessoa que é claramente angustiada, mas que tem menos sofrimento dentro do armário e a sexualidade muito mais livre, e que peregrina pelo Brasil fazendo o que ama e amando a gente desde dentro. Fui conhecendo o Brasil por dentro dos personagens do Brasil, incluindo pessoas como Aurélio. Para mim, ele é uma tristeza. Não é fácil olhar para ele, não é fácil perceber, e tenho que tomar muito cuidado ao dizer isso, com o resultado das urnas em 2018, mas é muito doloroso perceber que o tipo de pessoa que o Aurélio é o tipo dominante do Brasil atual. Quando saí da sessão, as pessoas vieram me dizer “nossa, mas você sempre faz personagens típicos tão maravilhosos e esse nem é”. Respondi: “Infelizmente, esse talvez seja o mais típico que já fiz”.


Matheus como João Grilo na adaptação de Ariano Suassuna. Foto: Divulgação

CONTINENTE
Mais até do que o João Grilo do Auto da Compadecida?
MATHEUS NACHTERGAELE João Grilo é o elogio de uma coisa muito preciosa da brasilidade que talvez já esteja perdida. Ele é quase uma saudade. Aurélio é o homem que anda por aí agora, o cara que está no táxi, nos hotéis... Ele não é um vilão, e sim um emissário do capitalismo.

CONTINENTE Ele é esse emissário de um sistema onipresente. Logo, ele mesmo está em todo lugar, não é?
MATHEUS NACHTERGAELE Sim, sim. O filme me levantou questões como cidadão, como ser humano. Fiquei mexido com Piedade. Não me sinto confortável no sentido do que estou seguro do que fiz e acho que o filme me abre mil perguntas. Mas gosto disso. Temos piedade de nós? Teremos piedade de nós ou não? No final das contas, nem achei Aurélio um vilão, nem um coitado. Quem se dá bem, na verdade, é o capital. E a gente nem sabe o nome dessas pessoas que estão se dando bem no mundo de hoje. Todos nós estamos sendo manuseados. E tangidos. Sem nem perceber.

CONTINENTE Você que fez todos os filmes de Cláudio Assis: acha que Piedade é o mais melancólico, mais maduro?
MATHEUS NACHTERGAELE Talvez seja o trabalho com menos certezas que tenhamos feito. Não temos essa certeza de poeta que Zizo tinha em Febre do rato, nem nenhum grupo revolucionário. Nesse filme, o mundo é mais incerto, o grupo é muito mais de pergunta do que de resposta. Acho que a sensação que causa nos outros é que, em vez de ser um dedo na ferida mais direto, esse filme é muito mais uma pergunta, um espanto. E é por isso que fiquei tão mexido e tão comovido.

CONTINENTE O filme nos dá um convite à reflexão, a lançar um olhar para nós mesmos...
MATHEUS NACHTERGAELE Sim, porque se a gente não olhar, não acha. Um espectador me perguntou: vamos ser o país onde é proibido entrar na praia? Onde não se pode entrar no nosso mar? É isso mesmo? A gente vai assumir uma religião importada, branca, para ser nossa religião de base? A gente vai assumir um capitalismo ultraliberal, calcado na meritocracia, num país em que 90% das pessoas são pobres? E 80% das pessoas são negras ou mulatas? E o que nos vamos responder aos índios do Brasil? Que acabou? Que é tudo um grande negócio mesmo?

CONTINENTE Mas não é um pouco isso que o tem sido feito?
MATHEUS NACHTERGAELE Exatamente. Mas estou assustado, estou convulsivo. O filme me deixou convulsivo. Estou feliz por isso, mas estou muito mexido. Encarnar esse personagem que não é bem um vilão, mas um emissário do capitalismo, um cara que cumpre à risca as normas capitalistas, me parece tão triste, no entanto Aurélio parece ser o topo do arquétipo do brasileiro contemporâneo. Aliás, parece não, ele é o mais arquetípico da atualidade.


Matheus Nachtergaele e Cauã Reymond em Piedade. Foto: Divulgação

CONTINENTE Então vemos “Aurélios” em todo lugar no Brasil?
MATHEUS NACHTERGAELE Pois é. Toda vez que chego num bar e peço um copo de água e o garçom me diz o preço daquele copo de água, percebo que sou só um sonhador. Olha que ingênuo eu sou ao pedir uma água num restaurante. Como é terrível se cobrar tanto por água no nosso país. O capital tem Aurélio como soldado diante de um exército de excluídos. E nessa batalha do capital versus a resistência, versus a ecologia, estamos perdendo para ele.

CONTINENTE Você acha que estamos sendo tratorados?
MATHEUS NACHTERGAELE Acho. Faz tempo. E estou muito atento em até que ponto posso ser emissário e soldado do que estamos vivendo agora. Não faço mais coisas se avalio que possa comungar ou apoiar esse processo ultraliberal. Acho que a gente tem que ser bem cioso. Sempre fui, mas agora mais e mais ainda.

CONTINENTE Que tipo de projeto você tem negado?
MATHEUS NACHTERGAELE Prefiro não dizer os que neguei, mas sim o tipo de projeto que tenho feito. Aceitei fazer Filhos da pátria, que é uma crítica aos maus costumes brasileiros, aceitei fazer Cine Holliúdy, que é para fazer as pazes com a nossa brasilidade, aceito fazer os filmes com o Cláudio e voltei a fazer teatro com muita intensidade.

CONTINENTE Como você consegue se equilibrar entre esses projetos no cinema, na televisão e no teatro?
MATHEUS NACHTERGAELE Me dediquei muito ao cinema, fazia muito cinema e TV ao mesmo tempo, mas isso me ocupava muito e eu entendi que era hora de me dedicar mais ao teatro. Um ambiente de cuidado e carinho... Agora, voltei a dar o espaço que o teatro tem que ter. De vez em quando, paro tudo e digo que não faço mais nada porque tenho que fazer teatro. Porque o teatro me parece ser agora o lugar mais especial do encontro coletivo, do pensamento, da oração como dogma, do espanto profundo, do choro e de uma partilha de pensamento e de ideias. É o encontro de almas com outras pessoas, um encontro de alegria e terror por nós mesmos, uma cerimônia de libertação... Pura pergunta. O espanto do bom teatro é que estamos sempre abertos.

CONTINENTE E “gente certa é gente aberta”, já dizia aquela canção de Erasmo Carlos...
MATHEUS NACHTERGAELE É, sim. Sabe, faz tanto tempo que estou tão triste com o Brasil contemporâneo que é no fazer artístico e no encontro com as pessoas que ainda encontro alegria. Como é bom viver, como é bom ser humano, como é bom fazer cinema. Eu amo o cinema brasileiro. Acho tão perigosamente único, raro, maluco... O último grande filme que vi, que me deixou passado, embasbacado, foi Sol alegria, do Tavinho (Teixeira, que codirige ao lado de Mariah Teixeira). Um filmaço, escrachado, aberto, uma chanchada descendente de tudo que a gente já fez, um presságio, pois mostra uma invasão militarista num país tropical. É cerimônia, mas ao mesmo tempo é suruba, é inteligente, colorido, vivaz, sensual, cheio de humor. Um puta filme. Sou apaixonado pelo Sol alegria. O Tavinho vai até me mandar um cartaz para eu colocar na minha casa, ao lado do cartaz de Deus e o diabo na terra do sol, do Glauber (Rocha). Aliás, qualquer brasileiro que quiser descobrir o cinema brasileiro de verdade tem um material na mão para uma vida de encantamento. Nosso cinema é tão maravilhoso. Tem Glauber, tem Bressane, Ana Carolina, Lírio Ferreira, Eliane Caffe, Walter Lima Jr. E tem os filmes do Cláudio.

CONTINENTE E em todos os filmes dele, você. Como percebe essa sua trajetória de Amarelo manga a Piedade?
MATHEUS NACHTERGAELE Amarelo manga é fruto de puro paixão. Todas nós estávamos muito apaixonadas pelo Claudio, havia muita paixão entre ele e nós, tinha uma coisa que era possível sentir no set. Por isso o filme é tão fulgurante. O próprio nome do filme já é uma cor. Esse é mais melancólico, pesado... O filme pede: tende piedade de nós. Aqueles gritos que o Claudio dava nos festivais deram lugar a uma fala calma. É cansativo ser artista no Brasil. É isso: tenhamos piedade de nós.  

LUCIANA VERAS, repórter especial e crítica de cinema da Continente.

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