Entrevista

"É poder recontar a própria história da forma que quiser"

No documentário 'Casa', na grade do Festival do Rio e da Expectativa da Fundaj, diretora Letícia Simões propõe uma corajosa e delicada investigação sobre memória e família

TEXTO Luciana Veras

13 de Dezembro de 2019

A cineasta Letícia Simões

A cineasta Letícia Simões

FOTO Anny Stone/Divulgação

Letícia Simões é aquariana, com ascendente em Virgem, no entanto seu dezembro tem sido tão auspicioso que seria possível pensar que ela é de Sagitário. A realizadora baiana, há um tanto já radicada em Pernambuco, está em Cuba, para onde levou seu mais recente documentário, Casa (Brasil, 2019), uma produção da Carnaval Filmes, de João Vieira Jr. e Nara Aragão. Exibido no mesmo Festival de Havana que mostrou Marighella, de Wagner Moura, e outras obras pernambucanas, a exemplo de Divino amor, de Gabriel Mascaro, e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Casa é uma delicada mescla de arqueologia familiar, diluição formal das fronteiras entre registro documental e reinvenção ficcional e um mergulho pungente nas relações, e possibilidades de convivência, entre mãe e filha.

Com um detalhe singelo e fundamental: a filha, no caso, é a própria diretora, a mãe, Heliana, é quem lhe deu à luz e o triângulo de mulheres de fibra se completa com Carmelita, a avó. Vimos Casa no Olhar de Cinema, em Curitiba, onde Letícia, com a doce voz de sotaque baiano, conversou com a Continente. Meses depois, o documentário, já em exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entrou em uma breve lista que fizemos de filmes para se manter no radar (mais aqui). Contudo, mesmo com a circulação em festivais no país inteiro, nada se compara ao que os ventos de dezembro (ou seria a vertiginosa lua sagitariana?) trouxeram para a diretora.

Em Cuba, onde inclusive Letícia já morou (e um território essencial para a feitura de Casa), o filme foi exibido em um cinema de rua e na cinemateca. "As pessoas têm uma reação mais leve aqui, eu acho. Em determinadas cenas, muito fortes e tensas, como a do almoço de Natal, elas riram mais. Uma outra questão bem demarcada aqui é que se trata de um filme feminista, dirigido por uma mulher, e mesmo com a abertura comercial, ainda não há abertura dos costumes. Cuba é historicamente um país muito machista e, nessa edição do festival, houve muito mais cineastas mulheres de que nos anos anteriores", me contou por WhatsApp em um intervalo dos intensos dias - além de Casa, dois curtas-metragens seus, Bailando en la calle e Brasil, e seu longa-metragem anterior, O chalé é uma ilha batida de vento e chuva (2018), foram exibidos em Havana.

De lá, ela segue direto para o Rio de Janeiro, onde o documentário integra a programação da mostra Novos rumos, do Festival do Rio (com projeções nos próximos dias 17, 18 e 19). Na Mostra Expectativa/Retrospectiva do Cinema da Fundação, a cineasta avisa: seu filme será mostrado nos dias 20 e 21 deste mês. Dia 21 é o último do signo de Sagitário, mas algo me indica que as outras casas, com o perdão do trocadilho, do Zodíaco hão de oferecer a mesma guarida acolhedora a uma obra tão íntima e pessoal quanto valente e universal. Com distribuição da Pandora Filmes, deve ter sua estreia em algum momento do primeiro semestre de 2020. Antes disso, contudo, leia sobre sua gênese, as escolhas narrativas e tudo aquilo que escapa nas palavras de Letícia Simões, a poética arquiteta de Casa

Letícia e Heliana em cena de Casa. FOTO: Still do filme/Divulgação. 

CONTINENTE
Para além da relação familiar, o que lhe deu o estalo para fazer Casa?
LETÍCIA SIMÕES Quando escrevi o projeto, ele era um amálgama de uma investigação de relações familiares, uma arqueologia familiar. Eu tinha o desejo muito forte de investigar esses pontos, esses laços da figura do meu avô, o pai do meu pai que veio de Portugal e se transformou em um coronel no interior da Bahia. E que, e isso eu descobri fazendo o filme, poderia ter sido até do bando de Lampião. Eu não sabia, minha mãe que me revelou na abertura dos arquivos. Daí foram quatro anos com isso. Comecei a fazer em 2015 e o projeto foi selecionado para o laboratório do Porto Iracema. Depois, quando foi escolhido o melhor projeto, recebi uma bolsa para fazer um mestrado em Cuba. E o filme veio junto.

CONTINENTE A história do seu avô, inclusive citada no filme, pode ser verdade mesmo?
LETÍCIA SIMÕES Eu verifiquei com Hilton (Lacerda), e ele trabalhou no Baile perfumado, e ele me disse que até hoje tinha um deles do bando de Lampião que não foi identificado. Ele olhou a foto, disse que não sabia, e ficou nesse lugar – do que poderia ter sido. Existe a figura de um Nando que até hoje ninguém sabe do que aconteceu. Tem um livro de um pesquisador paraibano que fala de um dos garotos do bando de Lampião que fugiu e se entregou ao bando de Courisco. Depois, muito esperto, quando percebeu que ia dar merda, fugiu para a Bahia. Se ele era o meu avô ou não, não sei, mas ficar na fabulação também é uma boa resposta. Mas, mesmo com tudo isso, no momento que fui trabalhar com os meninos no Porto Iracema, tanto Marcelo (Gomes), quanto Karim (Aïnouz) e Sérgio (Machado) identificaram muito rapidamente que tinha uma coisa muito forte ali, no meio disso tudo, que era a relação com a minha mãe.

CONTINENTE Então desde o início do projeto, a partir dessa ideia de um amálgama de investigações familiares, o foco era na sua família?
LETÍCIA SIMÕES Era uma história familiar. Olhando para elas, para minha mãe e minha avó, tinha também a questão da personagem da figura da minha mãe. Eu queria investigar o que tinha sido essa mulher, nascida em Salvador nos anos 1950, que foi para o Rio de Janeiro na década de 1970, e que é uma grande contadora de histórias. Minha mãe atravessou diversos momentos-chaves do que penso ser, de certa forma, a história contemporânea do Brasil. Ela se separou ainda nova, aos 45 anos, se reinventou e hoje trabalha como advogada pública. Durante o laboratório, no Ceará, eu era questionada por duas coisas: onde você fica nesse lugar? E você pode até estar olhando para os outros no filme, mas o forte, o cerne, é a relação com a sua mãe. Comecei a filmar para investigar essa história toda que tinha a ver com meu pai, mas, no momento em que voltava com as filmagens, isso ficava muito claro: o filme era sobre a tessitura da nossa relação.

CONTINENTE Então aquelas imagens do começo… Era como se você também estivesse investigando qual seria o filme?
LETÍCIA SIMÕES Exatamente. Eu estava investigando qual o filme que queria fazer. Entrevistava minha mãe, entrevistava minha avó, filmava as duas juntas, para fazer um outro filme.

CONTINENTE Nesse outro filme, nessa outra ideia de construção, você não se colocaria?
LETÍCIA SIMÕES Não. Eu não me colocava, não queria estar presente em cena. Foi uma das coisas que Marcelo e Hilton mais pontuaram: eu precisava estar presente em cena. Eles me perguntavam: “em que momento você vai começar a se filmar?”. Porque eu pegava a câmera e já estava filmando, mas no momento em que eles começaram a me questionar, me veio essa opção de colocar a câmera no tripé, ligar no automático e ver o que acontecia quando surgiam essas provocações de cena.

CONTINENTE Ela e sua avó sabiam que estavam sendo filmadas? Que tipo de jogo você abriu com a sua mãe?
LETÍCIA SIMÕES Sim, sempre, não tem nenhuma câmera escondida, em todo momento todo mundo sabia o que estava acontecendo. Na visão de Marcelo, todos os filmes que fiz são sobre a minha mãe (risos). Tem até uma coisa que fez parte de um dos offs do filme, mas que caiu, que é uma história que contro. Quando eu tinha 15 anos, a minha mãe me perguntou se eu queria uma festa ou uma viagem e eu falei que queria uma câmera filmadora, que naquela época custava o mesmo preço. Ela me deu e a primeira imagem que eu fiz era da minha mãe cozinhando. Daí ela sempre volta a esse momento, como se eu tivesse desde cedo demonstrado inconscientemente um desejo de filmá-la. Então o processo do filme foi entender o porquê desse desejo.

CONTINENTE Ela falava desse desejo mas não se incomodava em ser filmada.
LETÍCIA SIMÕES Não! Minha mãe é uma atriz nata. Ela fica muito à vontade na câmera. Acho que foi um processo dela também para entender que ela queria contar a própria história. Nesse sentido, não é uma personagem rarefeita. Ela se sente muito confortável. E eu gosto do fato de ter um espaço para ela poder se questionar, questionar também as decisões que tomou ao longo da vida por um contexto ao qual não pertencia afetivamente, nem sobre o qual tinha controle.

Letícia e a avó Carmelita. FOTO: Still do filme/Divulgação. 

CONTINENTE
Percebemos essa vontade dela, a sua vontade como filha e realizadora de adentrar esse universo e as invenções e reinvenções que se empreendem quando estamos sendo filmadas. Casa se constitui de várias camadas – tem você, que é diretora, mulher e filha, tem sua avó e tem sua mãe, que também é filha no filme.
LETÍCIA SIMÕES Ela é mãe e filha. É um jogo performático. Como não tem câmera escondida, o tempo inteiro está todo mundo performatizando. Todo mundo sabia de tudo, então estávamos nós três tentando dar o melhor de si e defender seu personagem.

CONTINENTE Se não tinha câmera escondida, e isso estava posto para todas aquelas mulheres, como é que você combinava as cenas?
LETÍCIA SIMÕES Não, mas tinha umas coisas assim do tipo “eu preciso ir filmar minha avó” e lá íamos nós, eu e Heliana, visitar a minha avó. Chegávamos lá, eu botava a câmera no tripé e pronto. Ou então eu dizia “vamos à praia”, coisa que minha mãe não fazia há vinte anos, e lá fomos nós duas para a praia do Rio Vermelho por causa do filme.

CONTINENTE Você também a leva para Itaparica.
LETÍCIA SIMÕES Não! Ela não vai para lá. Sou só eu.

CONTINENTE Que engraçado, Letícia! Vendo o filme, fiquei com a sensação e a impressão, quase uma certeza, de que ela também estiva lá.
LETÍCIA SIMÕES Que bom. Acho que fica melhor assim, você achando que ela estava lá também (risos).

CONTINENTE Então vamos aproveitar e falar do embate que Casa trava entre as memórias. Bem sabemos que memória é um tecido poroso, nada preciso como uma equação de balanceamento químico, e eu queria ouvir você sobre o seu desejo como realizadora em escavar essas memórias, ao mesmo tempo também em que leva sua mãe a revisitar sua própria história. É como se os desejos femininos de olhar para seu passado fossem a força motriz do filme.
LETÍCIA SIMÕES Mas acho que você usou essa expressão e é isso mesmo: Casa é uma batalha pela memória em que todas sabem que já ganharam, mas também perderam. Não existem verdades, nem existem certezas. Logo no começo o filme marca isso: eu falo para ela da memória que tenho da minha avó matando caranguejo e minha mãe diz “isso nunca aconteceu”. Mas eu me lembro disso! Eu lembro. É quase como se eu estivesse gritando “respeite a minha memória”. Isso vai perpassando e perdurando o filme inteiro. Acho que talvez uma das nossas vontades, minha e de Dudu (Eduardo Chatagnier, montador do filme junto com Letícia), se é que existe alguma certeza ou verdade nisso tudo, é que a memória é um elemento poroso e de fabulação e que nossa existência enquanto persoangens da nossa vida é porosa e fabular. E está tudo certo. E com essa total capacidade e direito de fabular, nós somos seres com liberdade para propor nossa trajetória de acordo com o contexto que estiver colocado.

CONTINENTE Isso parece ser ainda mais interessante, cativante até, para Heliana e Carmelita, que estão em uma fase diferente da vida: essa possibilidade de se narrar, se avaliar, ponderar sobre tudo que foi vivido.
LETÍCIA SIMÕES É como você tapar os próprios buracos. É poder recontar a própria história da forma que quiser.

Filha e mãe. FOTO: Still do filme/Divulgação. 

CONTINENTE Entre 2015 e 2018, muita coisa aconteceu na sua vida, e isso é colocado com mais detalhamento no trecho final de Casa – aparece seu casamento, é como sua vida ficasse mais escancarada. Como se saísse Heliana do foco e entrasse Letícia.
LETÍCIA SIMÕES Que bom que você está dizendo isso! Porque eu brigo muito com Marcelo Lordello, que diz que eu não apareço muito no filme (risos).

CONTINENTE É? Pois acho que você aparece, sim, de forma destemida, aberta às possibilidades de construção. Pois o filme é, como você disse, uma performatização, mas ao mesmo tempo aquelas sequências trazem reincidências afetivas para todo mundo que as vê. Tinha uma hora em que parecia que eu estava vendo o almoço na casa da minha mãe. A pergunta é: você mexia no material enquanto filmava? Quando foi o momento em que sentiu que tinha que parar de filmar e começar a montar?
LETÍCIA SIMÕES Foram fases distintas para pedidos distintos. No laboratório do Porto Iracema, havia o pedido para que eu entregasse um corte. Karim foi até bravo comigo: eu tinha que entregar um longa de 1h30. Então entreguei um longa com o roteiro em processo. Quando Hilton assistiu, ele disse que era um argumento filmado. Mas aí Casa ganhou o prêmio de melhor projeto do laboratório e ganhei uma bolsa para estudar em Cuba. Os jurados colocaram que eu tinha um bom argumento, mas faltava entender melhor a forma do filme. Quando fui para a maestria em Cuba, também tinha que entregar algo. Era um mestrado em cinema ensaio, completamente pertinente para o que estava propondo. Mas eu já havia passado muito tempo trabalhando com aquele material e parti para uma necessidade minha mesmo de começar do zero, de rever o material bruto para pensar que filme era aquele, qual era o filme que eu queria fazer.

CONTINENTE Em que momento foi isso? 2017 ou 2018? Como terminava Casa nessa versão apresentada em Cuba?
LETÍCIA SIMÕES Em que momento foi? Minha avó morreu em maio de 2017, durante a montagem. E aí o filme deu mais uma volta. O primeiro corte que mostrei em Cuba (nesse momento, Eduardo, o comontador, diz que o corte era “bom para caralho”, ao que a cineasta responde, sorrindo, que “era horroroso”) terminava justamente com a minha mãe indo me visitar lá. O que sempre me incomodou era que faltava, nesse final, um arco de transformação. Enquanto existia a apresentação da relação das personagens, não existia transformação na narrativa. Eu queria contar a história da relação dessas mulheres e tinha um final que necessitava de um arco de transformação. Só pude ter a possibilidade de avançar nisso quando fomos selecionados (o produtor João Vieira Jr., da Carnaval Filmes, explica que Casa entrou na linha Prodecine 5 do saudoso Fundo Setorial do Audiovisual, “norteada por filmes que buscavam o mercado internacional e seguiam por pesquisa artística e inovação de linguagem”). Aí pudemos ter uma equipe e abrir câmera para filmar. E, finalmente, planejar essa filmagem, não só naquela de “ligar a câmera no tripé”, mas de entender o que queríamos filmar.

CONTINENTE Falando em filmar, nos créditos, você divide a fotografia com Breno César. Em vários momentos, Casa adota um plano geral, com câmera parada e a ação se descortinando na frente dela. Como foi essa experiência?
LETÍCIA SIMÕES Uma coisa da forma é que eu fui descobrindo, ao longo do processo, uma forma cinematográfica que me interessava. Do tipo como posicionar a câmera, como enquadrar e como passar a gostar do que acontecia diante do quadro e como pensar no que poderia acontecer de melhor para aquela narrativa.

CONTINENTE Aquela sequência já clássica do almoço de Natal tem muito disso, não é?
LETÍCIA SIMÕES Claro. E acho que a forma como as coisas foram feitas foram impondo a forma do filme, num primeiro momento. Era eu filmando a minha mãe, com um tripé, e as coisas acontecendo diante da câmera. Depois, planos parados em que as coisas acontecem, aí eu passo a colocar as câmeras nos móveis. Quando Breno entra, já existia uma forma que o filme impôs a si mesmo. Hoje vejo como isso amalgamou. Breno assistiu ao material bruto, percebeu a forma que o filme já tinha e, quando a equipe entra, com ele também, não grita. Cria-se a mesma linguagem.

CONTINENTE Por fim, mas não menos importante, uma curiosidade: desde o início, o documentário já tinha você como narradora? Me lembrei de Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes, que é um filme em que ele também fala do seu próprio passado. Por mais que haja uma construção semântica da narração em off, a voz do diretor, no caso de Marcelo, e da realizadora, você em Casa, empresta algo que para mim entra na esfera do que escapa, do intangível.
LETÍCIA SIMÕES Por muito tempo, lutei contra o fato de narrar esse filme. Até porque todos os meus outros filmes sou eu quem narro. Mas eu pensava assim: esse filme, por ser tão íntimo, por partir de um lugar de muita intimidade, será que não é uma repetição, na verdade uma muleta, que eu seja a própria narradora? Tentei outras formas, busquei atores e atrizes. Fiz bastante teste de voz com minha mãe, com João Miguel e Mariah Teixeira, por exemplo. Sim, tinham outros narradores. E o pior é que conceitualmente é maravilhoso você ter um filme particular, íntimo, narrado por outra pessoa. Porém, na forma do filme não cabia. E me veio uma sensação de fracasso: ter outra voz narrando seria tão bom academicamente e estilisticamente! Mas reconhecer que não dava foi um gesto de honestidade nosso. Teve uma hora em que eu disse: sou eu mesma quem devo narrar essa porcaria desse filme! Que é uma coisa que João Jr. sempre me dizia desde o início (risos).

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.

 

 

Publicidade

veja também

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 2]

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 1]

“Arte demanda um completo sacrifício”