Entrevista

"Não é exatamente um disco de amenidades"

Em conversa sobre o novo álbum, 'Do meu coração nu', o compositor, cantor e pianista Zé Manoel aborda questões urgentes presentes no seu trabalho, fala sobre a carreira e o processo criativo

TEXTO Débora Nascimento

25 de Novembro de 2020

Zé Manoel em 'Do meu coração nu', já disponível em 'streaming'

Zé Manoel em 'Do meu coração nu', já disponível em 'streaming'

Foto Máquina 3/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A primeira vez que ouvi e vi
um show de Zé Manoel, comentei que, se ele fosse morar no Rio de Janeiro, não voltaria mais pra gente, porque sua música tinha um jeito carioca e logo ele seria requisitado para vários trabalhos por lá. Suas canções lembravam muito o estilo de Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo... Nada mal para um compositor então iniciante. Zé Manoel, apesar de ter crescido em Petrolina, não exibia muito a herança da música pernambucana, pelo menos aquela à qual estávamos acostumados a ouvir desde o advento de Alceu Valença, passando pelo Manguebeat e até a novíssima geração de músicos. De qualquer forma, diante de sua musicalidade, naquele começo da carreira fonográfica, ele já transmitia a mesma impressão de quando se ouve, pela primeira vez, um artista que veio para ficar.

Zé Manoel estreou no mercado fonográfico em 2012, em disco homônimo, demonstrando um extraordinário domínio da composição. A expertise no piano conseguiu com o dedicado estudo do instrumento, a partir da obra de compositores como Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, e com o trabalho como músico em casas de shows. Chegou a ingressar no curso de Música da UFPE, na mesma turma do também pianista Vitor Araújo. Estendeu sua permanência na universidade durante seis anos, mas, devido às faltas por conta dos shows, não concluiu a formação e saiu da instituição naquele mesmo 2012. Já havia se tornado um frequentador assíduo dos palcos. Em 2015, ele mudou-se para São Paulo, cujo circuito musical apresentava-se mais repleto de possibilidades do que no Rio. E, nesse mesmo ano, lançou Canção e silêncio, em que mostrava sua evolução musical. Já tendo conquistado o respeito de muitos colegas de profissão, realizou, em 2016, Delírio de um romance a céu aberto, um disco com a voz de diversas cantoras brasileiras reinterpretando algumas de suas canções.

Desde 2017, o artista vinha preparando o álbum que finalmente lançou, e em plena pandemia: Do meu coração nu, agora disponível nas plataformas de streaming. Em dezembro, o álbum sairá em CD (pelo selo Passadisco e Joia Moderna) e, logo depois, em vinil, numa parceria com a Assustado Discos. O trabalho vem conseguindo repercussão positiva na imprensa e nas redes sociais. Uma repercussão que já leva mais de um mês – duração surpreendente em meio aos interesses efêmeros do mundo virtual. As atenções voltadas a um produto cultural hoje costumam perdurar até a chegada de um novo produto, ou uma nova polêmica. Mas esse disco, embora esteja repleto de temas atuais, já fincou sua presença na atemporalidade.

O foco no novo álbum de Zé Manoel vem recaindo bastante sobre a temática afirmativa da negritude e da crítica social abordada em História antiga, que abre a primeira das 11 faixas. A música foi composta sob o efeito da notícia do assassinato de Evaldo dos Santos Rosa, músico alvejado com mais de 80 tiros em 7 de abril de 2019, durante uma ação do Exército na região da Vila Militar, na zona norte do Rio de Janeiro. Sensível, Zé Manoel consegue imprimir o tom certo à canção. A melodia evoca um sentimento de tristeza, desconsolo, desesperança dos sobreviventes do ataque covarde e cruel, como a viúva Luciana Nogueira, que disse ter perdido o seu "melhor amigo" (a menção está na letra). Mas também diz respeito ao histórico de violência racial que se repete desde a diáspora africana.

No entanto, a melancolia dessa música, de força sentimental na abertura do disco, dá, logo em seguida, espaço ao símbolo de resistência representado pelo grupo Bongar, participante da faixa No rio das lembranças, que evoca com sutileza um maracatu nação, e por Escuta Beatriz Nascimento, uma linda e longa faixa instrumental que, após mais de dois minutos, traz a gravação da voz da historiadora, poeta e ativista negra, vítima de feminício em 1995, aos 52 anos. Mesmo póstuma, essa é uma das várias participações de mulheres negras no disco. As outras são Luedji Luna, parceira em Não negue ternura, a poeta Bell Puã declamando em Prelúdio pra iluminar o rolê (que antecede o bolero Pra iluminar o rolê) e Gabriela Riley no R&B Wake my divine.

O maestro baiano Letieres Leite (da Orquestra Rumpilezz), um dos fiéis herdeiros de Moacir Santos, teve seu áudio de WhatsApp transformado na faixa Escuta Letieres Leite. Na mensagem, ele reforça que a música brasileira, mesmo a que é tratada como branca, feita por Tom Jobim, por exemplo, tem origem negra. Essa gravação precede a magnífica faixa de encerramento Adupé Obaluaê – cujo refrão apareceu em sonho para o autor e foi escrita em meio à pandemia, clamando ao orixá da cura Obaluaê para nos livrar das doenças. A canção rendeu um admirável primeiro videoclipe do álbum, disponível e imperdível no canal de Zé Manoel no YouTube. Nele, aparece o criativo dançarino e coreógrafo baiano Gil Alves (diretor artístico do disco), codiretor do clipe com Wendel Assis. Arte com letra maiúscula.

Nesse álbum independente de apenas 37 minutos, Zé Manoel, aos 39 anos, demonstra, mais uma vez, todo o seu talento para compor e o seu amadurecimento como pessoa, compositor, letrista, músico, arranjador e cantor – a descoberta tardia de que podia, sim, cantar e o enfrentamento da timidez trouxeram à tona uma voz suave, que interpreta com naturalidade e sinceridade seus sentimentos, pensamentos e sonhos. Em um ano bastante triste para o mundo e o Brasil, o resistente Do meu coração nu é mais um pequeno grande milagre da música pernambucana, nordestina, afrobrasileira.

Leia abaixo uma conversa com ele sobre o álbum e outros assuntos.



CONTINENTE Como foi fazer esse disco durante a pandemia?
ZÉ MANOEL Foi um exercício de paciência, até porque pra mim teve essa coisa da pandemia e o tratamento de Luisão Pereira, que é produtor do disco, que começou a ser gravado no ano passado. A gente precisou parar pela primeira vez porque ele descobriu um câncer, começou a fazer quimioterapia. Fez três cirurgias nesse processo, do final do ano passado para o início deste ano. Quando a gente voltou a trabalhar, começou a pandemia. Então, a gente precisou parar de novo e descobrir como dar continuidade. Eu tava em São Paulo, corri pra Recife, pra ficar mais próximo da família. Então, transferi o que eu estava gravando em São Paulo para Recife. Tem bons estúdios no Recife. Muita coisa, cada um gravou de sua casa. Kassin gravou da casa dele no Rio. Os meninos do sopro, Jorge Continentino e Diogo Gomes, também gravaram das casas deles. A gente viu que tinha como dar continuidade. Tinha uma coisa que a gente não ia conseguir fazer, se não já estivesse pronta, que era a participação do grupo Bongar, que tem um coro. Se essa faixa já não estivesse pronta, possivelmente ela não iria rolar.

CONTINENTE A tua parte, que é a do piano, pode ser gravada em casa ou precisa de um estúdio?
ZÉ MANOEL É, eu precisei ir para um estúdio. Bateria e instrumentos maiores, o pessoal precisou ir para estúdio. Instrumento de sopro, guitarra, baixo, a maioria foi gravado em casa.

CONTINENTE E como foi essa volta pra cá? Você estava em SP há cinco anos.
ZÉ MANOEL Eu vim a Petrolina fazer o show no Sesc, por incrível que pareça. Ainda é curioso, porque não estou vendo show rolar em teatro nenhum. A mudança pra Recife foi difícil, porque eu já estava há quatro anos em São Paulo. É uma construção difícil mudar de cidade, recomeçar uma carreira em outro lugar. Apesar de que São Paulo me deu outras possibilidades para serem exploradas, mas foi uma decisão difícil. Não tinha muito o que fazer. Meus amigos do Recife e de Salvador fizeram esse mesmo movimento. Voltar, esperar tudo isso passar, entender o que vai ser pra poder voltar. Estou pensando em voltar no primeiro semestre do ano que vem, pra dar continuidade ao que eu estava fazendo lá.

CONTINENTE E por que a escolha de SP e não Rio?
ZÉ MANOEL Porque hoje em dia o Rio tem um mercado bem mais restrito. Muitas casas de shows fecharam. Muita gente do Rio está indo pra São Paulo. Infelizmente, num país do tamanho do Brasil, antes a coisa era restrita a Rio e São Paulo. O Rio dá mais visibilidade, mas não dá muito trabalho. São Paulo, como é uma cidade muito grande, com Sesc e tudo, com várias opções pra fazer shows, você acaba tendo uma demanda maior, inclusive como músico. Recentemente, atuei como músico de Fafá de Belém e Arthur Nogueira. Ao mesmo tempo, estou mais próximo do Rio.

CONTINENTE As músicas já estavam prontas? Ou você ainda compôs durante a quarentena?
ZÉ MANOEL Teve coisa que eu concluí durante a pandemia, como a música Adupé Obaluaê, que fala sobre o orixá das doenças e da cura. A música já estava pronta, mas a letra foi feita durante a pandemia. Ao mesmo tempo em que fala sobre uma cura pessoal e uma cura, na narrativa do disco, sobre as feridas que estou tocando, os assuntos que são feridas. No final, estou agradecendo por levar embora a dor que vem junto com tudo isso, o fato de estar mexendo em assuntos dolorosos. Isso é em relação também à pandemia, em que todo mundo está sendo levado a lidar com seus medos. As outras músicas foram feitas antes.

CONTINENTE Como é esse processo de realização de um disco e de composição pra você? Você já falou que colocou a letra depois. Você sempre faz isso, a música primeiro e a letra depois?
ZÉ MANOEL Isso é novo. Nos meus discos anteriores, eu sempre fazia tudo junto, música e letra. As ideias já vinham juntas. E aí, de uns tempos pra cá, as ideias têm vindo separadas. Geralmente, primeiro melodia, depois, letra. Às vezes, vem melodia com o assunto, sem a letra em si. Depois eu desenvolvo a letra. Por exemplo, História antiga, que é a primeira música do disco, foi assim. É um processo novo, porque eu fico fazendo várias tentativas de letras. Antigamente, a ideia já vinha pronta com a melodia, é um processo mais fácil.

CONTINENTE A música acontece na tua cabeça e aí você a coloca em prática? Ou fica tocando o piano e então vem surgindo a melodia?
ZÉ MANOEL A ideia geralmente vem logo na cabeça. A faixa Adupê Obaluaê, ela veio num sonho. Sonhei com a melodia e a letra. Sonhei com o refrão. Aí peguei o gravador e já gravei. Comecei a tocar no piano e fiz uma segunda parte. E aí eu gravo. Geralmente sonho com uma parte só e crio uma outra parte. Mas tem muitos compositores que compõem no instrumento. Pra mim, geralmente a ideia vem na cabeça e aí eu vou para o instrumento pra desenvolver no piano.

CONTINENTE E os arranjos?
ZÉ MANOEL Geralmente quando componho, já penso mais ou menos em como gostaria que fosse o arranjo. Aí depois é uma coisa que eu vou discutir com o produtor, porque ele pode me propor coisas mais interessantes. Se eu fizesse tudo, ia soar sempre a mesma coisa, porque eu tenho um jeito de compor. Canção e silêncio, eu chamei (Carlos Eduardo) Miranda, que é um cara que estava acostumado a produzir discos de rock, discos mais pop, enfim. Agora chamei Luisão Pereira, um cara que faz música em outro segmento. Justamente pra não ficar redundante do que eu faria, quero alguém que mexa no que eu estou fazendo, que traga novas possibilidades.


Foto: Máquina 3/Divulgação

CONTINENTE A propósito, quais os seus critérios para a escolha de um produtor? Porque tem tantos produtores legais no Brasil hoje em dia.
ZÉ MANOEL Eu queria alguém que me trouxesse novos elementos. Por exemplo, em Canção e silêncio foi o primeiro disco em que eu pude trabalhar com pessoas que não conhecia, mas que eu gostaria de trabalhar. O meu primeiro disco tinha sido com amigos no Recife. O meu critério para Canção e silêncio foi exatamente alguém que não respeitasse demais o meu trabalho, a ponto de não ter coragem de mexer. Eu queria alguém que mexesse. Até o repertório Miranda me ajudou a escolher. A música que dá nome ao disco foi uma ideia dele. Eu achava brega demais pra entrar no disco. Ele disse: "Zé, você não tá nem louco de não gravar essa música". É uma visão de fora. Ele que estava acostumado a fazer coisas do pop, do rock. Ele tinha essa sacada, que eu não teria. Um dos critérios é esse. Um cara que tem um bom gosto, que entenda o que você está fazendo, mas que tenha uma visão diferente da sua.

CONTINENTE Mas tem uma mudança muito radical ou é uma influência sutil do produtor no seu trabalho?
ZÉ MANOEL Eu achei que ele fosse revirar o meu trabalho pelo avesso, que fosse fazer outra coisa. Na verdade, ele me ajudou a entender que o que eu fazia era aquilo mesmo e que eu não precisava ficar inventando recursos pra soar diferente. Foi importante, pra mim, pra entender que é isso. Por mais que muitas vezes eu quisesse soar mais moderninho. E eu posso fazer isso, obviamente. Mas, naquele momento, o que tinha era o repertório que ia soar como soa, um pouco mais tradicional, digamos assim. E o que eu precisava era fazer aquilo bem-feito. Então acho que foi uma coisa importante que eu aprendi com Miranda. Nesse disco novo, eu já me senti mais seguro. Não estava naquela paronoia "ah, é careta, não posso soar assim, eu tenho que soar diferente". Eu já fiz as pazes com isso. E a partir disso aí, você se sente mais à vontade para explorar, dentro daquele universo que você atua, outras possibilidades com coisas que eu tenha o domínio, sem ficar inventando coisas onde eu não vou ter o domínio, pelo menos, nesse momento. Futuramente, eu posso ter mais domínio de outras linguagens e fazer algo que soe mais diferente do meu jeito de fazer música.

CONTINENTE Quais são as linguagens que você tem interesse em se aproximar mais?
ZÉ MANOEL Eu tenho ouvido muita música americana da década de 1970. Eu adoro essa linguagem da década de 1970. É uma coisa que eu tenho vontade de me aproximar mais. Quando você vai ouvindo, vai criando um repertório de linguagem. Acho que vai chegar um momento em que vou saber me expressar mais dentro disso. É uma vontade que eu tenho de explorar um pouco essa sonoridade mais setentista.

CONTINENTE E o jazz? Você tem vontade de entrar nessa área?
ZÉ MANOEL Acho que eu tinha antes mais do que hoje, porque eu descobri que a minha linguagem é muito mais próxima da canção, apesar de eu ter um pouquinho de elemento de jazz. Se eu tivesse o virtuosismo de Amaro Freitas, eu iria me arriscar mais. Mas eu não quero me arriscar a fazer algo que não é exatamente o meu domínio. Meu domínio maior é sobre a canção. Eu tenho vontade, sim. Talvez num momento em que eu me sinta mais preparado para soar bom o suficiente para fazer jazz.

CONTINENTE Quando você surgiu, houve muita comparação com Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque...Você escutava muito esse pessoal?
ZÉ MANOEL Escutava. Quando eu comecei a descobrir uma música que dialogava um pouco com o que eu estudava no piano e que, ao mesmo tempo, eram canções e tinham letras, foi através deles. Acho que aquilo marcou muito aquela transição do que eu fazia no estudo do piano, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, pra canção. Apesar de que eu sempre cresci ouvindo rádio e ouvindo música popular. Mas acho que influenciou muito, porque eu achei uma ligação entre o meu estudo e aquela música. Eu acho que está bem mais presente nos meus primeiros discos até essa influência. Obviamente ainda continuo sendo influenciado por eles, mas me aproximo mais da minha própria linguagem.


Foto: Máquina 3/Divulgação

CONTINENTE Você surpreendeu, porque não é para qualquer pessoa que se possa dizer "Isso parece Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo". Mas aí você fez esse curso de graduação de Música na UFPE. Chegou a concluir o curso?
ZÉ MANOEL Não. Eu passei seis anos. Eu já estava viajando, fazendo as coisas e fui perdendo por falta, já estava vendo a hora de ser jubilado. Acabei abandonando o curso. Mas passei seis anos e infelizmente não concluí. Eu era da mesma turma de Vitor Araújo.

CONTINENTE O interesse pelo instrumento começou com quantos anos?
ZÉ MANOEL Com nove ou 10 anos. Eu tocava violão, meu pai tocava violão. Minhas irmãs estudavam. Mas aí descobri o teclado, através do teclado de um amigo. Não sei exatamente por que decidi tocar piano e não teclado.

CONTINENTE Como é que era a vida cultural de Petrolina? Petrolina é bem perto de Juazeiro. Aí já se tem contato com a Bahia. Como é que era essa relação com a cultura da Bahia e de Pernambuco?
ZÉ MANOEL Cresci ouvindo muito a música vinda da Bahia. Conheci primeiro Vassourinhas, de Moraes Moreira. Depois descobri que Vassourinhas é pernambucana (risos). Quando a gente fala "frevo baiano", um amigo meu diz: "Não existe frevo baiano, o frevo é pernambucano. O que você chama de frevo baiano é outra coisa". Eu cresci ouvindo Moraes Moreira, Dodô e Osmar, por exemplo. Comecei a ouvir Vassourinhas mesmo quando passei a ir ao Recife. A nossa infância também sempre foi viajando para Salvador e para o interior da Bahia. Depois de adulto, a gente foi morar no Recife em 2001, primeiro. Aí voltei pra Petrolina, depois fui pro Recife. Depois de adulto, foi quando comecei a ter mais contato com a música pernambucana. Eu ouvia Alceu porque tocava no rádio. E Geraldo Azevedo, que é de Petrolina, a gente ouvia muito. Lembro de, no Carnaval, ouvir muita música baiana. Aqui se tocava Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, porque se ouvia em casa.

CONTINENTE Mas não fica falando muito isso: que você ouvia muita música baiana, porque, daqui a pouco, eles vão te tomar de Pernambuco, vão dizer que é um músico formado pela cultura baiana... (risos)
ZÉ MANOEL Aliás, quando surgiu o Manguebeat, começou a chegar mais coisas pernambucanas em Petrolina. Na minha adolescência, comecei a ter contato com o Manguebeat, a pesquisar, a comprar CD. Então aí já começo a ter contato com Mundo Livre, Nação Zumbi. Quando eu vou para o Recife, é um bombardeio de música pernambucana. Faço um intensivão. Aliás, Comadre Florzinha eu conheci quando estava em Petrolina ainda. Mas, quando vou para o Recife, conheço essas pessoas: Isaar, Alessandra, Mavi Pugliesi, Bongar, Juliano Holanda. Porque foi uma explosão de coisas. Passei a consumir muito aquilo.

CONTINENTE O teu disco tem muitas referências musicais, que tipo de ouvinte você é? É do tipo colecionador de discos?
ZÉ MANOEL Eu sou disperso, o que é uma coisa ruim, inclusive. Porque muitas vezes, as pessoas falam: "A sua influência de Edu Lobo e de Tom..."; "Aquele disco...". Aí eu não sei, porque não ouvi um disco inteiro. Ouço faixas de coisas que vão me chegando e eu vou procurando. Ouço muita coisa, mas coisas soltas. Não entendo de falar de um disco tal. Então, é muito mais uma colagem de influências. No próprio estudo do piano, foi assim também. Eu não me aprofundei em um compositor específico. Estudava coisas que eu ia achando bonitas, ou que achava curiosas e me despertavam a atenção. Hoje fico fuçando internet. Quando era criança, ia para loja de disco, mandava gravar fita pra fazer coletânea. Nunca fui muito focado em conhecer um disco ou um artista completamente.

CONTINENTE As tuas músicas são bem cinematográficas. Você é cinéfilo ou isso faz parte do seu estilo? Porque muitas das suas músicas evocam uma coisa de trilha sonora de filme. Você tem essa relação com o cinema?
ZÉ MANOEL Amo cinema, mas tenho a mesma relação que tenho com a música. Não tenho conhecimento específico sobre um autor ou filme. Isso vem muito porque eu sempre tento criar imagens sobre o que estou falando, sempre tento ambientar o que estou falando. É uma forma de compor mesmo. Tem um pouco a ver com a minha forma de pensar. Eu sou muito imagético. Quando você está falando algo, estou criando imagens na minha cabeça. Então, na hora de compor, acabo reproduzindo isso também de criar imagens.

CONTINENTE Você tem interesse de fazer trilhas?
ZÉ MANOEL Eu tenho muita vontade. É uma área que não atuei ainda, mas que tenho muita vontade de explorar.

CONTINENTE Vamos trazer a conversa mais para esse disco novo. Ele tem muitas participações de mulheres. Isso foi coincidência ou intencional?
ZÉ MANOEL Foi intencional. Na verdade, iam ser só mulheres. E eu queria, ao mesmo tempo, ter o grupo Bongar. Porque eu amo muito o trabalho do grupo Bongar. Eles estão no disco não só como apresentação musical, mas também como representação política de quem eles são, da importância deles. Mas era um disco programado pra ter só participação de mulheres pretas e foi proposital. Abri essa exceção porque era o Bongar, porque a música dá um equilíbrio ao disco. O disco ia ficar muito para baixo, digamos assim. Estava ficando um disco muito reflexivo.

CONTINENTE Ele abre pesado com a música História antiga. Com o correr do disco, ele não segue aquela mesma vibe. A história, contada naquela faixa, pede exatamente o tom que você deu. Li que, nesse disco, você faz uma aproximação com a negritude. Mas eu já percebo isso desde o começo da sua carreira. Como é que você encara isso?
ZÉ MANOEL Desde o começo tinha. Mas sempre falava através da subjetividade. Falava sobre a cultura preta, eu trazia elementos da cultura preta propositalmente, porque queria que estivesse presente em todos os meus trabalhos. Já faço um tipo de música que é erroneamente associada como música branca. Porque tem essa fala de Letieres (Leite): a gente vê a música de Tom Jobim como música branca, a de Edu Lobo, mas eles são absolutamente influenciados pela música cuja raiz é preta. Nesse disco, eu deixo mais claro que estou falando de assuntos com uma abordagem um pouco mais política, coisa que nos outros discos eu não fazia. Então falo mais diretamente, mais objetivamente, de questões que atravessam a minha condição de compositor, de artista preto. E foi proposital, nesse sentido, que ele soasse assim mesmo.



CONTINENTE Houve uma mudança na imagem. No seu primeiro disco, você está bem sorridente e, nesse disco recente, bem sério. Você sente essa transformação de perspectiva da vida e do mundo em você?
ZÉ MANOEL Sim. Sem dúvida. Eu acho que algum amadurecimento vai trazendo a gente pra esse lugar, porque a vida vai moldando a gente pelas situações e eu acho muito importante que isso esteja registrado, como artista. No primeiro disco, você ouve Tom, "aqui é Chico, aqui é Edu", sabe, assim, é o meu primeiro disco, né? Então, no decorrer dos meus discos, está registrado esse meu amadurecimento como compositor e como pessoa, está tudo interligado. Em todos os meus discos, estou falando de momentos mesmo, assim como neste. Não é um disco que eu estou falando do amanhecer na beira do Rio São Francisco, estou falando de assuntos muito mais densos, então, assim, não tem sorrisinho. Tem alegria também, obviamente, mas não é exatamente um disco de amenidades. Tem essa reflexão do que eu sou, desse momento, do que eu sou musicalmente hoje, e também desse momento que a gente atravessa.

CONTINENTE Agora, isso surgiu naturalmente ou foi uma cobrança sua? Porque tinha um pouco disso durante a ditadura militar, que os músicos se sentiam naquela obrigação de escrever sobre a opressão, fazer aquelas mensagens, até cifradas, pra escapar da censura, e alguns músicos acabaram se afastando, como Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, que pararam de fazer música durante aquele período, porque não queriam fazer música de protesto. Então terminaram se afastando, foram fazer outras coisas. Roberto Menescal foi trabalhar com gravadora...Você sente que hoje os compositores devem se posicionar musicalmente?
ZÉ MANOEL Assim, acho que não há uma regra. Particularmente, senti a necessidade porque eu não achava coerente lançar um disco agora falando de amor, de coisas que não dialogassem com o que eu estou sentindo agora, eu achava que isso não tinha sentido. Se eu não tivesse assunto pra dialogar com o que está acontecendo, não iria lançar esse disco agora, porque na minha observação como consumidor de música, eu vejo alguns lançamentos... Tenho um problema com a sigla MPB, mas a gente acaba ficando dentro dessa sigla, né, porque o que é MPB? Convencionou-se a dizer que MPB é isso, é aquilo, mas música popular, o que é que toca na periferia? É MPB, né? O funk, tudo isso aí é MPB, né? Enfim, mas eu via pessoas lançando coisas muito bonitas, aliás, coisas poéticas e tal, mas que, às vezes, você não tinha nem paciência pra ouvir agora, porque tem tanta coisa acontecendo ao seu redor, que você não consegue parar pra ouvir aquela poesia que fala do amor e da flor. Então, pra mim, não fazia sentido lançar nada dessa forma agora. É mais uma necessidade pessoal mesmo, de falar sobre isso. Mas eu acho que não tem regra. Eu não tinha pensado nisso. Eu não tinha, inclusive, pensado nessa informação que você falou, porque eu fico pensando, compositores que eu adoro, que pena eles terem saído, porque teria sido muito rico se eles tivessem contribuído.

CONTINENTE E, por outro lado, outros compositores que continuaram e não se posicionaram, como Jorge Ben, e até intérpretes mesmo, Wilson Simonal, que foi muito criticado...
ZÉ MANOEL Exatamente, eu tinha pensado nele.

CONTINENTE Ele foi muito criticado porque cantava País tropical e tal, e o pau comendo lá fora... Acho que é uma discussão difícil de se estabelecer com essa perspectiva histórica que temos hoje. Acho País tropical genial, mas eu não sei se eu fosse jovem, na época, se eu ia gostar de ver a opressão lá fora e todo mundo cantando essa música, como se nada estivesse acontecendo.
ZÉ MANOEL A gente consegue entender muita coisa agora que, talvez há alguns poucos anos, a gente não entendia. Por exemplo, qual é essa perspectiva, né? País tropical no meio de uma ditadura, né? Eu só conhecia a música, não sabia do contexto histórico do tempo em que tinha sido lançada, então você pensar em ouvir aquilo no meio de um período onde está todo mundo meio depressivo, e no meio de muita coisa errada acontecendo, realmente... Não tem como você desassociar uma coisa da outra.

CONTINENTE Eu tinha lido que você colocou esse disco pra concorrer a edital de financiamento, e aí você não conseguiu. Por que você não conseguiu? Você sabe o motivo?
ZÉ MANOEL É, eu tentei, se eu não me engano, uns três anos. Você vê que já tem um tempo que eu estou elaborando esse disco... Já tinha essa ideia, tinha algumas músicas, estava tudo ali, não era exatamente o que é hoje, porque passaram uns anos e eu fui elaborando melhor. Mas já era essa a ideia. Já estava tudo expressado ali no projeto. Eu não sei, eu acho que hoje em dia se procura muito... Por exemplo, meu disco, Canção e silêncio, ele é um sucesso dentro da minha carreira, como disco bem-elaborado e bem-produzido e tal. Eu me orgulho de ter feito aquele disco. Mas, num âmbito comercial, ele não é um sucesso. Então, eu acho que, infelizmente, os editais, cada vez mais, não buscam simplesmente fomentar o artista, mas que o artista projete a empresa. As instituições também, infelizmente, estão começando também a funcionar assim. Então, muita coisa está deixando de ser fomentada, coisas importantes, porque simplesmente não têm a projeção que a empresa gostaria que tivesse. Eu acho que isso foi um dos motivos. Se eu tivesse lançado esse edital este ano, quando está se falando de ações antirracistas, onde está se falando sobre a violência, talvez eu tivesse conseguido, porque a galera vai muito em cima do discurso, muito em cima da modinha. A modinha do discurso, né? Talvez até tivesse sido aprovado. Mas como eu não estava fazendo com esse pensamento de "vou fazer isso agora, porque tem um mercado pra isso"… Eu estava fazendo como uma necessidade de expressão. Talvez se eu tivesse pensado assim, tivesse passado este ano em algum edital. E eu teria lançado com o dinheiro suficiente pra fazer o disco, porque eu fiz o disco com o dinheiro todo do bolso, com a ajuda de amigos. Enfim, eu teria feito ele de uma forma menos penosa pro meu bolso, digamos. Eu consegui produzir um bom disco com pouco dinheiro, mas consegui, obviamente, com a ajuda de amigos.

CONTINENTE E esse lançamento pela Joia Moderna, em que ele contribui em termos financeiros pro disco?
ZÉ MANOEL O meu disco anterior, que saiu pela Joia também, o Delírio de um romance a céu aberto, é um disco de voz e piano. A Joia banca as gravações, banca tudo. Aí esses selos pequenos são mais um projeto pessoal. Um projeto pessoal de José Pedro, em que ele ajuda a fomentar coisas legais, porque têm lançamentos muito legais pela Joia Moderna, mas, ao mesmo tempo, é uma alegria pra ele estar envolvido com coisas legais assim.



CONTINENTE Você acha que estão reproduzindo a lógica das grandes gravadoras?
ZÉ MANOEL São poucas pessoas que querem descobrir, né? Que querem ser a pessoa que vai descobrir, que vai apostar. Então o mercado acaba todo funcionando dentro dessa perspectiva, vai no que já está rolando. Ninguém quer mais fomentar, como fomentou, por exemplo, um completo desconhecido, eu, vindo do meu primeiro disco. Eu vejo uma mudança de lá pra cá, sabe? Que não só não me beneficiou de novo, como beneficiou outros artistas mais conhecidos do que eu, que foram aprovados mais de uma vez. Acabam indo em coisas que já estão rolando, deixando de beneficiar pessoas como eu estava naquela época. Mas isso é uma visão muito pessoal. Também não sou o cara dos editais, não estou acompanhando a ponto de saber de fato o que tá acontecendo. Foi uma visão minha.

CONTINENTE Recentemente, você tocou nos shows de Fafá de Belém e de Arthur Nogueira. Qual é a diferença entre ser um músico que está acompanhando um artista e de ser o artista de frente?
ZÉ MANOEL O estresse é menor. Já estou acostumado com o fato de fazer o show, depois ir conversar com as pessoas, mas eu desprendo muita energia pra fazer isso, o que não é o meu normal, embora já esteja acostumado. Quando é na ocasião em que eu estou sendo músico, ninguém quer muito conversar com o músico e eu acho isso ótimo. O pessoal não está o show inteiro olhando pra mim, está olhando pro artista... Então, pra mim, é muito mais tranquilo ser músico do que ser o artista. E eu me realizo também, como músico, porque tenho pouco tempo de carreira, então eu me satisfaço. Óbvio, se eu estou tocando, é um projeto que eu gosto. Esse show com Fafá mesmo, o repertório era lindo, foi muito prazeroso. Eu sou tímido, né?, então é bom não lidar com a timidez quando você está no show de outra pessoa. Eu tô ali só tocando. Então é muito tranquilo, chegar, fazer o meu trabalho, depois ir embora tranquilinho pra casa. Me chamaram pra gravar os pianos do disco novo de Bethânia. Eu gravei agora, durante a pandemia. Teve músicas que a gente gravou ao vivo, eu tocando piano, ela cantando, como antigamente. Eu olhava assim e pensava: "Não acredito que eu tô tocando e Bethânia está cantando". Eu passei um mês no Rio gravando isso. Deve sair em dezembro.

CONTINENTE Você foi pro Rio gravar?
ZÉ MANOEL Fui pro Rio. A gente passou três semanas no estúdio, toda semana fazendo teste de Covid, porque foi, de certa forma, um risco, né? A gente passava o dia inteiro dentro do estúdio. Eu, Letieres Leite, Marcelo Costa, Bethânia... Ela passava, assim, tipo, duas, três horas no estúdio. A gente passava de manhã, saía no final da tarde. Mas todo mundo de máscara o tempo todo, com viseira… Tem faixas que são só voz e violão, por exemplo. Mas toquei na base do disco todo. São músicas do último show dela, Claros breus.

CONTINENTE Queria saber de você, qual á a sua maior ambição como artista?
ZÉ MANOEL Acho que viver dignamente virou algo muito difícil, né? Porque eu vejo pessoas que têm mais projeção do que eu vivendo muito no limite. Do que eu acompanho de mercado de São Paulo, de amigos, que são pessoas mais conhecidas do que eu. Sonhar com um pouco mais de dignidade financeira se tornou uma coisa difícil. Eu, particularmente, tenho muita pretensão de explorar o mercado de fora do Brasil, porque eu acho que eu consigo pensar numa situação mais favorável lá do que aqui, infelizmente. Nesse disco, inclusive, eu estou cantando em francês, em inglês, óbvio, tem um motivo também pra eu estar cantando em francês e inglês, mas também é pensando em botar o pezinho fora, já. Porque uma coisa que eu tenho pensado muito é em sair, não fisicamente, assim, abandonar o Brasil, mas começar a focar um pouco mais fora do Brasil do que aqui dentro. Porque as perspectivas que eu acompanho aqui, através dos meus próprios amigos, não são lá muito boas. É algo difícil de se pensar.

CONTINENTE E você tem um planejamento rígido da carreira ou é aquela coisa "deixa a vida me levar", e vai vendo o que está acontecendo?
ZÉ MANOEL Acho que tenho um planejamento minimamente elaborado, mas não é rígido. Esse disco, por exemplo, foi feito com o dinheiro que eu estava juntando pra sair do Brasil. Então, já que eu vi que não ia dar, com essa falta de perspectiva atual, decidi investir junto com a Joia. Ela ia me dar uma parte, e eu botei dinheiro meu também. Então existe mais ou menos uma programação, mas não estava nada também tão elaborado assim, sabe? Eu não sabia nem direito ainda para onde ir. Porque tenho amigos em Nova York que me chamam pra ir pra lá, outros amigos falam que é melhor ir pra França... Então não é sair pra morar, mas pra passar um período, pra ir fazendo conexões... Então tem um planejamento, mais ou menos, mas não tão rígido. Sei mais ou menos o que gostaria de fazer e começo a me organizar para aquilo.

CONTINENTE Você preparou videoclipes pra esse álbum? Porque tem um apelo muito grande de videoclipe no Youtube.
ZÉ MANOEL Sim, eu gostaria que ele fosse um álbum visual. Gil Alves, que fez a parte visual, trouxe muitas ideias maravilhosas e a gente estava sonhando com isso. Só que faltam duas coisas. Primeiro, dinheiro, porque é um disco que não tem patrocínio, e a outra é a pandemia. Você fica um pouco mais restrito pra criar essas imagens. Mas a gente tá trabalhando. Por exemplo, tem o clipe que já foi lançado, de Adupé Obaluaê, que é um clipe lindo... Foi feito todo em Salvador. É uma videodança. A gente está preparando outro com a música Escuta Beatriz Nascimento. A filha dela, Bethania Gomes, é bailarina em Nova York. A gente está preparando nesse momento. Daqui pra o final do mês, a gente vai ter outro videodança, que vai ser ela dançando essa música, vai ser muito bonito. Ela é bailarina clássica, filha de Beatriz, então tem toda uma simbologia na história. A gente quer fazer com a música com Luedji, só que precisa descobrir como, com a questão do distanciamento... A gente vem fazendo os clipes aos pouquinhos, mas acho que, daqui a algum tempo, a gente vai conseguir fazer todas as músicas.

CONTINENTE Você acompanha o trabalho desses outros pianistas pernambucanos, como Amaro Freitas e Vitor Araujo? Qual a sua opinião, como pianista e compositor? Como você recebe esses discos? E eles te influenciam de alguma forma?
ZÉ MANOEL Acho que é muito rica essa coisa. Acho engraçado que as pessoas falam hoje em dia que Pernambuco "tem uma tradição de pianistas". Foi um movimento involuntário, porque, de fato, Recife tem muitos pianistas, pelo fato de ter conservatório, de ter muitas escolas de música. Mas o interessante é que cada um tem uma linguagem muito própria. E Vitor e Amaro Freitas são geniais dentro da linguagem deles. No primeiro disco de Amaro, por exemplo, eu sinto muito Moacir Santos, mas no segundo, já é muito mais Amaro. E muita técnica. Um cara que tem um domínio muito grande da técnica, ao mesmo tempo, com grandes composições. Aí Vitor Araujo já trouxe aquela linguagem da música pop com a música erudita. Ele virou um grande arranjador e até com domínio maior da técnica, porque inicialmente ele tinha uma técnica mais "suja", digamos assim. Era a linguagem dele, era proposital. Acho eles geniais, eu acompanho da forma como eu geralmente acompanho as coisas, um pouco dispersa, mas eu admiro muito os dois. Tem Sofia Freire também, que apareceu com um primeiro disco muito legal, mas Sofia talvez esteja mais dentro do que eu faço, é uma cantora que toca piano. Eu acompanho todos assim, sem ser grande conhecedor da obra, mas ouvindo sempre.

CONTINENTE Quando foi que você, pianista, descobriu a sua voz como cantor?
ZÉ MANOEL Acho que comecei a cantar só pela necessidade de ter que mostrar as músicas para as pessoas. E, durante muito tempo, quem fez isso foi uma amiga minha de Petrolina, Camila Yasmin. Primeiro cantava pra ela, ensinava, porque quando eu precisava mostrar pra alguém, eu dizia: "Camila, vem cá, vamos mostrar aqui uma musiquinha pra alguém". Com o tempo, fui precisando ter essa independência de eu mesmo poder mostrar minhas músicas, de eu vencer a timidez, cantar e poder mostrar as minhas músicas. Então, foi muito por essa necessidade, nunca foi por um desejo de ser cantor. Aí eu fui me sentindo mais à vontade com isso e, hoje em dia, não é um problema pra mim.

CONTINENTE Os pianistas passam uma ideia de instrumentistas solo, mas você está sempre acompanhado de muita gente. Como é que você mantém esse circuito de colaboração?
ZÉ MANOEL Eu sinto muita necessidade de dialogar no meu trabalho. Me sinto só. Eu gosto sempre de ver pessoas ao meu lado. Então eu tento, ao máximo, explorar essas possibilidades, até porque eu gosto de ter mais recursos, pra poder musicalmente contar o que eu quero. Se eu tenho mais instrumentos e mais instrumentistas junto, eu penso melhor. Por exemplo, a música Canto pra subir, que é piano, voz e arranjo de sopros. Se você tira os sopros dali, a música vai ser bonita e tal. Mas aqueles sopros dão toda vida à música, né? Esse movimento da música, que é o arranjo de Rafael Marques, do Recife, bandolinista. Aquele arranjo, na música e no piano, eu estou dizendo o que está acontecendo, "aconteceu isso, aconteceu isso e isso, naquele momento", só que o arranjo está mostrando pra você. É quase uma imagem sonora. Gosto sempre de pensar com esses recursos, porque acho que me dá mais recursos, mesmo, de poder expressar o que eu estou querendo contar, o que estou falando.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

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