Entrevista

"Para Joana, não há diferença entre fé e burocracia"

A atriz paraense Dira Paes fala sobre "Divino amor", longa-metragem do realizador pernambucano Gabriel Mascaro no qual ela vive a protagonista Joana, para quem a fé está acima de tudo

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

28 de Junho de 2019

Tudo vale a pena por uma graça que não é pequena

Tudo vale a pena por uma graça que não é pequena

FOTO Diego Garcia/Desvia/Divulgação

Em fevereiro deste ano, um vislumbre ficcional do Brasil de 2027 chacoalhou a mostra Panorama da 69ª edição da Berlinale - Festival Internacional de Berlim: era Divino amor, longa-metragem do realizador pernambucano Gabriel Mascaro, uma coprodução Brasil, Uruguai, Dinamarca e Noruega, atualmente em cartaz em cerca de vinte cidades brasileiras (veja salas e horários em todo país aqui). Exibido no mês anterior - já com alarde - no Festival de Sundance, na capital alemã teve sessões lotadas, com ingressos disputados até mesmo entre os jornalistas, e uma incrível acolhida do público, em parte graças ao carisma - palavra mais apropriada não poderia haver - da protagonista Joana. Essa funcionária estatal vivida pela atriz paraense Dira Paes faz de tudo para manter os casais que chegam ao seu cartório com o intuito de se divorciar, ao mesmo tempo em que se esforça, ao lado do marido Danilo (Júlio Machado), para conceber o tão esperado filho que legitimará seu estatuto de mulher casada e mãe dentro de uma família feliz.

No futuro de Divino amor, a estridência do neon se emparelha com a sobriedade burocrática do universo de Joana, a maior rave do Brasil é a Festa do Amor Supremo, religião e Estado são simbióticos e existem pastores disponíveis para aconselhamento em drive-thru (Emílio de Mello em uma atuação crucial para a trama) e detectores de gravidez e estado civil públicos, que informam para toda e qualquer pessoa se uma cidadã é casada - o que é esperado - ou se já se divorciou, breve passo para a vala do ostracismo. É uma ideia futurista onde "o futuro não é um fetiche em si", como define Gabriel Mascaro.

"São tecnologias que poderiam já existir hoje, só que não existem por uma questão ideológica. Não há um detector de gravidez público por uma questão de ideologia, de entendimento de que seu grau, seu pertencimento familiar não é uma questão pública. Trabalhamos com a ideia de tecnologia em que nada em si é novo, mas existiu uma mudança de cultura que permitiu que isso tudo se manifestasse. Divino amor é um filme sobre o controle biopolítico dos corpos por parte do Estado", comentava o diretor na capital alemã. Ressalva importante: para imaginar visualmente esse Brasil religioso ao extremo, porém com ilhas de sensualidade corporal, Mascaro retomou a parceria com o diretor de fotografia mexicano Diego Garcia, com que rodou Boi neon (2015).


Cineasta Gabriel Mascaro no set. FOTO: Bruna Valença/Divulgação

Foi também em Berlim que Dira conversou com a Continente, ainda sob o impacto da sessão ocorrida na noite anterior. "As pessoas gostaram, não foi? Bem, sou suspeita, fiz o filme e sou muito fã dele", sorria. Joana é o esteio da obra e no Divino amor, o grupo que nomeia o filme, onde sua devoção à fé, à religião e ao propósito de vida ficam mais evidentes. Lá, ela e Danilo ajudam outros casais a manter o "fogo da paixão aceso" - em jogos sexuais que em nada se assemelham ao conservadorismo vigente e do qual são próceres - enquanto eles mesmos se ajudam na roleta russa das tentativas de engravidar. O que ela mais quer, e qualquer prática justifica isso, é ser mãe. Mas o que acontece quando a graça alcançada é maior do que o imaginado?

Para Mascaro, "Joana é uma mulher que quer ainda mais religião na agenda estatal e, a partir de um determinado momento, tem como antagonismo a própria fé, o próprio Deus". E a primeira atriz em quem pensou para interpretá-la foi a paraense Dira, que encarna Joana com total propriedade sobre o corpo e as sensações advindas da extrema religiosidade, em uma performance de contenção e coragem que remete a suas atuações em filmes como A festa da menina morta (2008), de Matheus Nachtergaele, e Amarelo manga (2002), de Cláudio Assis. "Não sou mais uma iniciante, e sim uma pessoa experiente, que entende que o que a minha maturidade artística me pede são voos mais radicais mesmo", pontua. 

IMPORTANTE: a entrevista que corre abaixo, editada a partir da conversa que a atriz teve com a Continente em 12 de fevereiro, no Berlinale Palast, contém revelações de Divino amor. Leia por sua própria conta e risco e cuidado ao repassar os spoilers. Ou faça uma subversão como Joana e aja como dizem as hashtags potencializadas pela distribuidora Vitrine Filmes: #QuemAmaDivide

Na visão de Joana, a fé é o caminho para tudo. FOTO: Diego Garcia/Desvia/Divulgação

CONTINENTE Como o papel de Joana em Divino amor chegou para você?
DIRA PAES Quando o roteiro chegou para mim, eu já tinha desejado isso intimamente. Vinha de uma carreira que estava muito paralela à televisão, com muitos compromissos com a TV, e então comecei a fazer pequenas participações só para não deixar de fazer cinema, já que eu estava com as agendas muito apertadas. Depois de uma certa leva de participações, me propus intimamente a topar projetos onde os personagens fossem substanciosos no início, meio e fim. Desejei e isso veio na forma de três roteiros.

CONTINENTE Então foi um pouco como sua personagem: teve fé e recebeu a graça?
DIRA PAES Sim, foi como Joana: tive que ter fé (risos). Mas na verdade, de fato quando chegou o roteiro do Gabriel, eu falei: desejei tanto isso que está aqui um personagem para além do meu desejo, também como acontece com a Joana. Pois, além de ser uma personagem com início, meio e fim, ela veio com uma contundência do desafio do roteiro do Gabriel. Lendo o roteiro, percebi que tinha um desafio muito grande, de tocar em assuntos que as pessoas não estão acostumadas a tocar, nem estão acostumadas a discutir, como se não houvesse uma autorização para isso. Desde o roteiro já me chamava atenção a façanha magistral do Gabriel de conseguir falar sobre fé e fazer isso sem julgamento, sem juízo de valor, e sim como  uma reflexão de onde o radicalismo da fé pode nos levar. Ao mesmo tempo, por que colocar tudo em nome da fé? 

CONTINENTE Essa reflexão também te empurrou para a composição de Joana?
DIRA PAES Realizar Joana não foi uma composição simples. Não é simples manter a atenção do espectador sem apelos emocionais, pois, mesmo quando ela tem um apelo de pico emotivo, a câmera não explora isso. Como atriz, era e é muito bacana ter a possibilidade de fazer um filme que vai me provocar artisticamente, que me levará a mares nunca dantes navegados ou a mares mais radicais ainda a ser navegados. Esse é o lugar onde quero estar. Não é uma jovem, não sou um atriz iniciante, mas sim uma pessoa experiente, que entende que o que a minha maturidade artística me pede são voos mais radicais mesmo.

CONTINENTE Como você analisa o arco dramático da sua personagem, que vive pela e para as regras, que encontra sentido para a vida apenas através dessas mesmas normas que tanto defende e difunde, mas que termina por transgredi-las em prol do que considera um bem maior?
DIRA PAES É bem difícil a gente explanar muito sobre o flme sem contar tanto. Devo dizer que acho que a reflexão maior é sobre esse lugar da fé, sobre essa personagem que tem uma fé, uma religião e um desejo a ser alcançado e tudo que ela fez é em nome da presença e da possibilidade da graça ser alcançada a qualquer momento. Acontece que ela não estava preparada para a maneira como essa graça foi alcançada e, em nenhum momento, isso passou pela cabeça dela. O que acho mais legal da curva dramática é isso: já paramos para pensar no revés de uma graça alcançada? Às vezes, quando a gente consegue alcançar a graça tão desejada, é aí que começam os problemas. E quando Joana consegue realizar, enfrenta essa dicotomia entre o pragmatismo para onde a fé a levou e o início de um certo calvário dela. 


Joana em ação no grupo que nomeia o filme. FOTO: Diego Garcia/Desvia/Divulgação

CONTINENTE E ela vivencia tudo isso de forma contida. 
DIRA PAES É. O filme segue em uma cinematografia sem grandes sentimentos, sem latinidade. Joana não é extrovertida, ela é quieta; é muito diferente de mim nesse sentido. Eu chegava no set e pedia para o diretor: "deixa eu fazer um ensaio assim: aaaahhhhhhh" (simula o barulho de como se estivesse expirando e gritando com força). E o Gabriel me permitia fazer esses ensaios onde eu pudesse esvaziar os sentimentos dentro de mim, que tinham mais a ver comigo do que com a personagem. Era ruim fazer uma cena com vontade de liberar uma coisa a mais, então eu fazia no ensaio esse "a mais" para poder chegar na hora e entender que eu já tinha colocado o "a mais" para fora. O lugar da Joana não é o lugar da Dira. São lugares muito diferentes. 

CONTINENTE Dira, queria falar sobre as cenas de sexo. Como em Boi neon, Gabriel Mascaro opta por deixar a câmara parada e orquestrar uma coreografia dos atores, alcançando um resultado que eu considero erótico, crível e elegante, nunca vulgar. Nas cenas em Divino amor, toda a movimentação é do elenco e seu corpo, claro, está bem em evidência. Como é para você filmar essas sequências?
DIRA PAES Bem, ali é quando Joana consegue conciliar o projeto de fé dentro dela. É o erotismo em nome de algo maior. Não vou dizer que seja fácil fazer cena de sexo no cinema. Mas o engraçado é que o maior desafio não estava ali, somente em ficar nua, porque para Joana também tinha um servidão. Ela faz aquilo em nome do que acredita, que é a capacidade de trazer o erotismo de volta para os casais que tinham perdido o desejo. Dentro do mundo contemporâneo, podemos ver uma prática assim na massagem tântrica, por exemplo. Mas me admiro muito como as pessoas ficam chocadas com as cenas de sexo e não com cenas mais violentas, como a sequência em que ela abandona aqueles quatro cachorrinhos no meio do nada. Pra mim, é a cena mais chocante. Agora, não me sinto totalmente à vontade para dizer que está tudo bem em fazer essas cenas, tanto a dos cachorrinhos como a de sexo. Elas reverberam dentro da minha casa, pois tenho dois filhos homens, de 3 e 10 anos, que ainda não têm dimensão do que faço. Talvez depois eles vão ver e vão lá dizer "mamãe fazia uns filmes radicais" (risos).

CONTINENTE Esteticamente, o visual de Joana lembra o de muitas mulheres que vejo circular em Santo Amaro ou no centro do Recife, onde existem várias igrejas evangélicas com templos de capacidade para cinco ou dez mil pessoas. Inclusive, na cena da praia, você percebe que ela usa um maiô super composto.
DIRA PAES Quase uma burca, né? Só faltava isso para cobrir a cabeça. Mas veja, não estamos falando exclusivamente das evangélicas. O filme tem esse prognóstico de ser em 2027, então a minha busca foi atrás dessa qualidade de fé, não necessariamente evangélica; ela pode ser islâmica, católica, ortodoxa. Com Joana, a gente está falando quase em intensidade de crença. Ela ocupa um lugar onde a fé domina todos os seus atos. Para Joana, não há diferença entre fé religiosa e a burocracia, pois tudo está em função da fé: o trabalho, o lazer, a convivência entre vizinhos, tudo. Você só se encaixaria nesse novo mundo que a gente sugere se rezasse essa cartilha. Acho legal tirar da boca o "evangélico" porque isso localiza uma religião e dentro do evangelismo, por exemplo, temos total diferença e várias vertentes de crença. Olho para o filme e vejo que ele traz um lugar que pode ser em qualquer religião, que é fazer da fé a sua vida como um todo. E esse é o lugar onde Joana está. Não posso contar mais, mas a partir do momento em que duvidam da fé dela, aquela situação não lhe interessa mais. A fé dela é inabalável.

CONTINENTE E essa fé se mantém mesmo quando ela é banida do sistema que tanto defendia por não ter como justificar o milagre que lhe acontece.
DIRA PAES Sim, quando ela não consegue explicar o milagre, ela mesma acaba duvidando dela e de sua própria fé. Tem esse lugar também que a gente sugere no filme: o lugar das pessoas que não estão com aquela vida em que passaram toda sua existência acreditando como a ideal - casados, com sua casa, com filho, vivendo feliz uma fórmula de felicidade e nação. Independente de religião, é muito importante falar isso. A discussão do filme não está na religiosidade. Vejo Divino amor como uma crítica a todas as religiões que cegam as pessoas, de alguma forma.

Só a devoção salva. FOTO: Diego Garcia/Desvia/Divulgação

CONTINENTE O filme também mostra um Estado que não se dissocia da religião e onde não existe diferença entre público e privado. Embora sejamos oficialmente um Estado laico, essa aproximação com a religião é realidade.
DIRA PAES E a gente precisa perceber que o filme foi feito antes das eleições (presidenciais de 2018). Ele vem de um lugar muito antes de tudo que está acontecendo agora, mas que também já se anunciava. Não é mais uma questão brasileira, isso tem ressonância no mundo inteiro. Os críticos que escreveram sobre o filme no estrangeiro veem esse eco não somente no Brasil. Essa é uma discussão mundial.

CONTINENTE Inclusive sobre essa fronteira borrada entre público e privado, muito embora no filme o diretor leve isso a um patamar interessante com aqueles detectores que revelam o estado civil da pessoa que por eles passa. É como se o Estado já fosse dono  daqueles corpos, não?
DIRA PAES É, mas público e privado já são essa coisa assim meio borrada, não é? Com os detectores, no filme isso fica escancarado, mas o que a gente faz com as redes sociais que não a revista da nossa própria vida? Muitas vezes, é o privado que te torna mais público. Já vivemos essa necessidade de revelação de quem você é na intimidade. OK, foi isso que fez acabar com os paparazzi na rua, porque se você mesma, na sua cama, com seu marido do lado, manda um recado para todo mundo, é porque esse muro de Berlim já caiu. Não existe mais. E tudo que é demais pode nos encantar ou nos assustar. O que me encantou nesse projeto foi o roteiro excepcional do Gabriel, em que logo entendi que estava se falando de algo muito profundo.

CONTINENTE Dira, para terminar, eu percebi o filme fechando numa nota de resistência, um respiro mesmo, com a frase do menino: "Quem nasce sem nome, cresce sem medo". Da mesma forma que Joana e Danilo praticavam uma abertura naquele conservadorismo, adotando uma postura bem mais liberal e libertária em nome de um bem maior e com o propósito da manutenção da estrutura familiar, aquilo me tocou como uma brecha. No final, Joana compreende que é preciso transcender aquelas regras que ela tanto defendia para sobreviver, mesmo que isso a deixe sozinha. Como você vê isso?
DIRA PAES Sabe que vejo isso cotidianamente? Nessa nossa sociedade matriarcal, como é que chama isso mesmo? Abandono... alienação parental. A mulher sempre se fode, não é? Na vida ou no cinema, ela fica sozinha criando a criança. Deixa eu contar uma história: já é o segundo ano que faço um Natal no Complexo do Alemão, no Rio, e umas 600 crianças são atendidas. Se você vai olhar a fila, quem é que está segurando a mão daquelas crianças? A mãe, a avó, a tia, quiçá um ou outro pai no meio da massividade de mulheres segurando a mão daquelas crianças. Vendo isso, a gente entende o país. No final do filme, quando se expõe a volta desse Messias, bem, talvez no Brasil ele já esteja voltando cotidianamente e a gente não saiba ou não tenha a sensibilidade para entender que ele até pode nascer Messias, mas é alijado da sociedade ou tem seus direitos negados. Esse é um lugar muito forte em que Divino amor toca e que pode trazer uma discussão mais madura do que criar uma rixa entre uma religião e o filme. 

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.

*A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA. Leia a cobertura completa aqui.

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