Entrevista

“A batalha do forró não é uma simples discordância musical”

O compositor, escritor e tradutor Braulio Tavares fala sobre sua produção artística diversificada e analisa a atual situação da cultura no país

TEXTO Marcelo Abreu

21 de Junho de 2019

Nascido na Paraíba, artista mora no Rio de Janeiro, onde escreve e traduz livros

Nascido na Paraíba, artista mora no Rio de Janeiro, onde escreve e traduz livros

Foto Divulgação

Quem teve a oportunidade de ver a curta temporada de três shows de Braulio Tavares, em 1984, sozinho, acompanhado de um violão em um bar na Praça do Jacaré, em Olinda, não esquece o letrista inspiradíssimo que brincava com a tradição poética popular e com referências cultas e políticas. Tocava com a simplicidade de um menestrel cosmopolita para fazer uma música poética e engraçada, com um pé no regional e outro na contracultura, ainda em voga. Visto dessa maneira, Braulio seria facilmente encarado como a próxima sensação da MPB.

Já morando no Rio de Janeiro, no entanto, o paraibano de 34 anos, à época, acabou enveredando por outros caminhos. Aprofundou seu interesse em literatura, ganhou o pão como roteirista de humor na TV, mergulhou nas traduções de ficção científica, intensificou seus estudos sobre cantadores populares e a cultura nordestina. Tornou-se um cronista de jornal compulsivo e muito produtivo. A música ficou meio de lado e Braulio continuou um segredo para iniciados, respeitado no circuito de palestras em feiras literárias, popular entre leitores de crônica em jornais da Paraíba e entre admiradores de ficção científica. Mas, injustamente, pouco conhecido pelo grande público.

Notado pela sua versatilidade como escritor (em gêneros que vão do cordel aos ensaios, da poesia ao romance, dos contos às traduções), homem de teatro, roteirista de cinema, palestrante, criador contumaz de frases de efeito, ele vem, a seu modo, agitando os meios culturais desde o final dos anos 70. Como compositor, começou a ser gravado por Elba Ramalho em 1980 (Caldeirão dos mitos). Teve composições gravadas também por outros nomes como Antônio Nóbrega e MPB-4. Sua parceria mais produtiva tem sido com o pernambucano Lenine. Recentemente, lançou com o amigo e conterrâneo Jessier Quirino o livro Galos de Campina, que reúne uma peleja em versos inspirada no seu personagem Trupizupe, o Raio da Silibrina, presença recorrente em sua obra.

Braulio consegue a proeza de se interessar por poesia matuta e ficção científica. Gira o país à vontade falando de temas que vão de Otacílio Batista a Isaac Asimov, de quadrinhos a Jorge Luis Borges. Nesta entrevista à Continente, ele fala de seu trabalho na música, sua relação com o Recife, sua parceria com Jessier, seu deslumbramento com a obra de Ariano Suassuna, de cantadores de repente e, claro, de ficção científica.

CONTINENTE De suas muitas atividades – música, crônica, poesia, ensaios, cinema, palestras, traduções – o que mais tem lhe ocupado recentemente?
BRAULIO TAVARES Em 2018, traduzi três livros para o selo Alfaguara, da Companhia das Letras. Uma coletânea de contos de Raymond Chandler, escolhidos por mim, Clans of the Alphane Moon, de Philip K. Dick, e Days of Awe, de A. M. Homes. Os três ainda sem título em português. Participei de uma coletânea de poesia (Lendário livro, Ed. Rubra, Rio de Janeiro) e um folheto de cordel (O tesouro de Antonio Silvino, Ed. Cordel, Mossoró). Afora isto, criei alguns projetos de documentários e séries para TV a cabo, que estão aguardando sinal verde para produção. Para 2019, estou preparando cursos de narrativa cinematográfica e de tradução literária, para algumas universidades e instituições culturais.

CONTINENTE Como surgiu a ideia de juntar forças com Jessier Quirino na peleja que resultou no livro Galos de Campina?
BRAULIO TAVARES Eu e Jessier tínhamos publicados versos em desafio independentemente, cada qual em seu livro. Coube a Kydelmir Dantas a ideia de reuni-los num folheto. A peleja do Raio da Silibrina com o Relampo da Palavra (2007). Agora, a Editora Bagaço reeditou o folheto com outro título, Galos de Campina, e novo projeto gráfico.

CONTINENTE Como foi a experiência de dividir “o palco” com Jessier lendo o poema durante os recentes lançamentos do livro?
BRAULIO TAVARES Para recitar, Jessier é mais “performático” do que eu, é mais ator, sabe encarnar personagens e mimetizar dicções. Eu me viro por outro lado, lançando mão do violão, que toco sofrivelmente, mas com aparente segurança. Jessier é um poeta de imenso talento, que conheço e acompanho desde antes do primeiro livro. Temos uma identificação muito grande, pelo senso de humor, pela faixa etária, pela origem em Campina Grande. Talvez até sejamos parentes, porque o nome de solteira de minha mãe era Cleuza Santa Cruz Quirino, e meu irmão Pedro herdou esse sobrenome materno, enquanto eu herdei o “Tavares” paterno. Jessier criou com sua obra uma vertente muito pessoal da chamada poesia matuta, onde não apenas se reproduz o jeito de falar do “beradêro”, mas também existe espaço para invenções vocabulares e sintáticas, meio à maneira de Guimarães Rosa e de Manoel de Barros, notórios inventores de neologismos e desorganizadores do discurso convencional.

CONTINENTE Qual a origem de “trupizupe” e do “raio da silibrina”, expressões tão sonoras e marcantes usadas nos seus trabalhos? Como elas chegaram até você?
BRAULIO TAVARES São termos correntes na Paraíba. “Trupizupe” é um personagem do folheto A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco, e usa-se para chamar alguém de trapalhão, desajeitado, meio leso. “Raio da Silibrina” quer dizer um cara supercompetente, inteligente, esperto. A origem, reza a lenda, é um antigo farol de carro, muito poderoso, chamado em inglês de “sealed beam”. Comparando com os personagens de Ariano Suassuna, João Grilo seria um raio da silibrina, e Chicó um trupizupe.

CONTINENTE Você já afirmou que a letra da canção Nordeste independente foi feita meio de brincadeira, em parceria com Ivanildo Vila Nova, mas como encara a repercussão que ela tem até hoje entre pessoas que defendem a separação da região?
BRAULIO TAVARES É natural que haja uma rivalidade, um atrito entre as regiões, principalmente quando acontecem políticas públicas que a população considera injustas. Mas uma separação assim, para mim, é impensável. A música tem apenas a intenção de recuperar a autoestima do nordestino e mostrar que não somos cidadãos de segunda classe. Observe que o mote da canção (“Imagine o Brasil ser dividido, e o Nordeste ficar independente”) começa com o mesmo verbo, no imperativo, com que John Lennon começa a sua Imagine. Lennon pretendia que tudo aquilo que ele descreve fosse real? Penso que não. Ele procura apenas cristalizar um espírito, uma atitude, através de uma fantasia da imaginação.

CONTINENTE Como foi seu contato, na juventude, com a cultura popular dos cantadores e cordelistas?
BRAULIO TAVARES Minha convivência principal com os violeiros se deu nos anos 1970, quando eu morava em Campina Grande. Convivi muito com os poetas entre 1975 e 1980, e ajudei a organizar o Congresso Nacional de Violeiros de Campina Grande nesse período, antes de ir morar no Rio. Participei, em 1979, da Viagem dos Poetas ao Brasil, organizada por Giuseppe Baccaro, que cruzou 13 estados brasileiros com uma caravana de poetas. Publiquei alguns folhetos com letras de minhas canções daqueles tempos, mas não são literatura de cordel propriamente dita.

CONTINENTE Suas viagens pela região do sertão do Pajeú tiveram o objetivo de aprofundar esse interesse?
BRAULIO TAVARES No Pajeú propriamente dito tenho viajado de cinco anos para cá, motivado pela realização do documentário Bom dia, poeta (2015), dirigido por Alexandre Alencar, onde atuei como entrevistador. É uma homenagem a Lourival Batista, cantador e amigo que deixou muita saudade. O filme foi lançado no ano do centenário dele.

CONTINENTE Que relação você tem com o Recife e com Pernambuco? Conheceu os parceiros Lenine e Antônio Nóbrega ainda aqui ou já no sudeste?
BRAULIO TAVARES Meu pai era do Recife, e grande parte de minha família, paterna e materna sempre viveu na cidade. Era o local das minhas férias na infância. Nunca cheguei a morar, mas passava meses inteiros na casa de amigos, ou da minha irmã Clotilde, quando ela fez mestrado na UFPE. Entre os recifenses, conheci Lenine no Recife, em 1978, através do nosso parceiro comum, Zé Rocha. Conheci Antônio Nóbrega através dos outros membros do Quinteto Armorial, de quem fiquei amigo quando eles foram dar aulas na Universidade Federal da Paraíba, em Campina Grande, a partir de 1972.

CONTINENTE Você já afirmou que a leitura do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, mudou sua vida. Como foi o primeiro contato com a obra de dele e de que forma isso influenciou sua produção posterior como escritor?
BRAULIO TAVARES Lendo o Romance da Pedra do Reino, percebi que na Paraíba (e por extensão no Nordeste) havia uma pirâmide soterrada, feita de histórias, poemas, lendas, versos, folhetos, cantigas, que eu trazia na memória mas nunca tinha focado na minha atenção. Dos 22 anos em diante, após a leitura do livro de Suassuna, passei a me dedicar a esse universo, tanto como estudioso, quanto como poeta e escritor. É nesse sentido que afirmo que o livro mudou minha vida. Foi um processo de autodescoberta. E de autoestima, porque me mostrou que a Paraíba era tão importante quanto a Grécia Antiga.

CONTINENTE Em 1984, você fez uma temporada memorável de três noites em um bar de Olinda, na Praça do Jacaré, cantando e tocando suas composições. Por que você parou de fazer shows com frequência?
BRAULIO TAVARES Eu fazia muitos shows nessa época, mas com o tempo fui derivando para literatura, TV, e parei de cantar já faz uns dez anos. Volto a cantar de novo, eventualmente, quando sou convidado. Cantar dá trabalho. Tem que ensaiar, praticar violão diariamente, repassar letras das músicas, e ainda tem o “moído” de viajar, passar som etc. Só canto quando me pagam cachê. Deixou de ser divertimento.

CONTINENTE Você chegou a gravar algum disco com suas composições?
BRAULIO TAVARES Nunca gravei LP ou CD. No Spotify há o registro de um show que fiz muitos anos atrás, em Natal: Voz, violão e verso. O show foi gravado por minha irmã Clotilde e minha sobrinha Ana Morena Tavares. Há outros registros de shows meus ao vivo, em Campina Grande, no Rio, etc., circulando por aí. Acho que estou mais próximo do espírito da cultura oral do que da indústria fonográfica.

CONTINENTE Com tanto tempo de estrada produzindo e consumindo cultura, você costuma rever alguns conceitos, isto é, tornou-se crítico em relação a coisas que admirava no passado ou reavaliou positivamente coisas que não gostava?
BRAULIO TAVARES Mudo de opinião com frequência com relação ao que é “bom” ou “ruim” esteticamente. Acho isso normal. Obras que eu considerava importantes passam a ser menores, quando a gente descobre obras que são imensamente maiores, em comparação. Mas, de um modo geral, sou fiel aos meus autores da juventude: Borges, Guimarães Rosa, Cortázar, Machado, Drummond, Augusto dos Anjos, Edgar Poe. Outros autores subiram muito em meu conceito quando, décadas depois, passei a estudá-los com profundidade. É o caso de Philip K. Dick, Raymond Chandler etc.

CONTINENTE Cacá Diegues tem dito que no Brasil “a inteligência saiu de moda”. Você concorda com esse tipo de crítica ao panorama cultural contemporâneo?
BRAULIO TAVARES Todas as vezes que as massas ascendem ao consumo e, numa fase seguinte, à produção, essa questão volta a ser colocada. É um processo inevitável. Atualmente, isso se dá com a cultura digital, a internet, etc. Mas tanto na alta cultura quanto na baixa a gente encontra a mediocridade e a obra nova, pulsante, rica de criatividade.

CONTINENTE Em 2010, em um artigo na Continente, você alertava para os efeitos danosos da Internet, que estaria afastando as pessoas ao promover e atender gostos específicos. Agora, com a importância cada vez maior das redes sociais, o que pensa sobre isso?
BRAULIO TAVARES Mantenho o que disse. Em vez de misturar informações e promover a convivência entre grupos distantes, a Internet tem favorecido a concentração de informações e a formação de grupos onde as pessoas só se relacionam com os outros integrantes. Formam-se tribos fechadas, devorando quantidades imensas de informação a respeito de um único tema, e perdendo a oportunidade de ampliar seus conhecimentos, variar suas experiências. Estamos numa fase de mudanças aceleradas, com grande número de variáveis, sujeita a guinadas numa direção imprevista. Algumas dessas guinadas mostram a possibilidade de manipular multidões através do bombardeio concentrado de informação, como indicam a votação do Brexit e as eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.

CONTINENTE Vi, numa palestra em São Paulo, você falando sobre o deslumbre que era receber livros comprados pelo reembolso postal. Esse tipo de encantamento com o objeto físico está se perdendo com a digitalização de tudo?
BRAULIO TAVARES Enquanto o objeto físico continuar a ser produzido, o encantamento vai perdurar, e vice-versa. Nada disso me incomoda. Acho ótimo poder escolher entre o livro de papel e o livro eletrônico. Como dizia Brian Aldiss, o presente não apaga o passado, ele apenas o desloca. E como dizia William Faulkner, o passado não morreu, ele ainda nem terminou de passar.

CONTINENTE Qual é sua relação pessoal com a obra de dois poetas distantes e, ao mesmo tempo, próximos como são Bob Dylan e Patativa do Assaré?
BRAULIO TAVARES Descobri Bob Dylan aos 18 anos e Patativa por volta dos 25, quando saiu a primeira coletânea dele pela Editora Vozes. É sempre difícil comparar pessoas que trabalham em áreas diferentes, é como perguntar quem é melhor, Lionel Messi ou Roger Federer. Dylan é o artista pop que conheço melhor, juntamente com os Beatles. Sempre o acompanhei, já li umas cinco ou seis biografias dele, afora vários livros de estudos sobre sua obra. Vi-o cantar ao vivo no Rio de Janeiro, várias vezes. A obra dele me influenciou muito mais do que a de Patativa. Hoje ele não canta praticamente nada, mas e daí? Pinto do Monteiro, no fim da carreira, também estava ininteligível. A cera da vela se acaba, mas a luz da chama não vacila. Patativa é um poeta maior dentro da poesia popular nordestina, com uma obra que vai muito além dos “poemas matutos” que escreveu. Ele e Dylan se completam, não se excluem. Posso ouvir um de tarde e o outro de noite.

CONTINENTE Com o fim do Jornal da Paraíba, que abrigou sua coluna durante anos, com que frequência você continua escrevendo seus artigos?
BRAULIO TAVARES Quando o Jornal da Paraíba encerrou sua edição impressa, eu já havia publicado mais de 4 mil artigos, que eram reproduzidos no meu blog Mundo Fantasmo. Desde então, publico no blog mais dois ou três artigos por semana, mas são textos mais longos, mais ricos de informações. Estou no momento com mais de 4.400 artigos à disposição no blog. Escrevo basicamente sobre literatura, cinema, música, poesia, tradução, cordel, ficção científica... Meu próximo objetivo é conseguir patrocínios, porque o blog é um trabalho gratuito.

CONTINENTE No momento de sentar para escrever suas crônicas e seus textos de ficção, você tem algum ritual para fazer as palavras fluírem?
BRAULIO TAVARES Não há propriamente um ritual. Abro o Word e vou escrevendo, ou pego um caderno e escrevo à mão, no sofá. Quando estou “sem assunto pronto”, abro arquivos antigos ao acaso e vou mexendo neles até acontecer alguma coisa. Para mim não existe falta de ideias, existe às vezes falta de motivação emocional para escrever, quando a gente está abatido, meio deprimido. Ideias nunca faltaram, nem faltarão.

CONTINENTE Sendo de Campina Grande, qual a sua posição em relação à polêmica que acontece no período das festas juninas entre os defensores do forró tradicional, pé-de-serra, de um lado, e os que acham que o São João deve atender ao gosto predominante no momento, abrindo-se para o forró estilizado e suas variantes?
BRAULIO TAVARES Em princípio, o mês de junho e as festas juninas com dinheiro público deveriam fortalecer a música junina tradicional. Nos outros onze meses do ano, as prefeituras podem mandar tocar o que quiserem. Por outro lado, a batalha do forró pé-de-serra contra a maioria dessas bandas de forró estilizado não é uma simples discordância musical, é a guerra entre músicos pobres que não têm como se impor para alcançar seu público, e músicos ricos que usam do gangsterismo, da propina e do suborno para ocupar os espaços de diversão. O Ministério Público já denunciou inúmeras vezes essas práticas de contratos irregulares e de dinheiro “por baixo do pano” entre bandas e grupos políticos. Não se trata meramente da preferência por este ou aquele ritmo musical. Há uma guerra por um mercado onde circulam muitos milhões.

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