Entrevista

“A intolerância e o ego estão de mãos dadas”

Em entrevista à Continente, Lenine fala sobre seu novo disco, gravado ao vivo, e como responde às mudanças do país com uma leveza para tirar as pessoas do chão

TEXTO Luiza Maia

08 de Junho de 2018

O músico Lenine para o seu 23º disco, intitulado 'Em trânsito'

O músico Lenine para o seu 23º disco, intitulado 'Em trânsito'

Foto Flora Pimentel/Divulgação

Chão, carbono, ponte, trânsito. Os elementos escolhidos para os títulos dos álbuns mais recentes atestam a preocupação de Lenine com a essência e o devir. Desta vez, “o processo é a ‘vedete’ da história toda”: ele provoca a sequência usual das novidades fonográficas e lança um disco ao vivo, captado durante uma apresentação para convidados no Rio de Janeiro, antes mesmo de um projeto em estúdio.

O novo álbum Em trânsito reúne 10 faixas, disponibilizadas nas plataformas digitais desde o fim de maio (Deezer, Spotify) e nas lojas, em CD, a partir deste dia 8 de junho. A estreia da turnê foi em Salvador, e incluiu um susto provocado por uma queda de pressão arterial. “A estreia em Salvador foi maravilhosa. Um sucesso gigante, as pessoas todas ali cantando comigo. Aí foi pressão demais para o coração, ele deu uma titubeada, mas foi só isso”, contou o artista pernambucano, de 59 anos, em entrevista à Continente por WhatsApp (leia a seguir). No Recife, o show está agendado para 27 de julho, no Teatro Guararapes.

O DVD, com 21 canções, chega ao mercado no dia 1º de agosto, concomitantemente à exibição de um documentário produzido pelo Canal Brasil. Assinada por Bruno Tavares e Lisa Akeman, a arte gráfica da versão física do álbum é feita em cianótipo, processo químico de impressão antecessor à fotografia moderna.



Do genuíno desejo de nada fazer, em meio ao caos político no qual o país está mergulhado, saiu o disco mais rock’n’roll de Lenine. Este 23º álbum abre apenas uma fresta para canções de amor, com Bicho saudade. “Realmente era preciso ser pesado. A gente passou 20 dias se deparando com frases como ‘talvez tenha de mudar essa letra’, ‘não dá para dizer isso hoje em dia’, pensando no que dizer para essa sociedade perante a política atual”, analisa Bruno.

A abertura, com Leve e suave, uma reflexão sobre o afeto, engana propositalmente o ouvinte, logo direcionado às provocações de Sublinhe e revele: “O tom é grave, o tempo é breve”. Intolerância, primeira faixa lançada, põe em xeque a lógica dos tribunais das redes sociais. “Ganha nem que seja no grito/ E se tem alguém que eu evito/ É ela”, sentencia. Os versos estão em sintonia com Umbigo (em medley com Castanho), resgatada de Falange canibal (2002).

Outras quatro foram retomadas: Lá vem a cidade, De onde vem a canção, Virou areia e Lua candeia, parceria com Paulo César Pinheiro, gravada por Margareth Menezes em Afropopbrasileiro (2002) e inexistente na discografia dele. O novo registro marca a estreia com o conterrâneo Amaro Freitas, uma grata revelação do piano local.

Desde 2016, Lenine e integrantes do grupo têm feito discretas intervenções contra o governo atual em apresentações. A decisão final, consonante com essa postura, foi excluir do repertório mensagens não sincronizadas com as inquietações do artista, morador do Rio de Janeiro desde a década de 1980, atualmente sob intervenção federal e com o exército nas ruas, em meio a discussões sobre atuação das milícias e violência policial. Toda arte, afinal, é um ato político.

O ciclo “às avessas”, provocado pela falta de tesão em se trancar aproximadamente três meses no estúdio para compilar as novidades, vem após duas trilogias. A primeira é formada por O dia em que faremos contato (1997), Na pressão (1999) e Falange canibal (2002), com conceito identificado após as composições. A segunda conta com Labiata (2008), Chão (2012) e Carbono (2015), amarrada já na concepção em tríade.

A ausência de produtor musical na ficha técnica do novo disco reverencia o jogo do time, composto por antigos companheiros de palco: JR Tostoi (guitarra, programação e vocais) está na banda há 25 anos; Pantico Rocha (bateria e vocais), há cerca de 20; Guila (baixo, sintetizador e vocais), 15, e Bruno Giorgi (guitarra, programação e vocais) começaram a tocar com Lenine, o pai, em Chão (2012).

O ciclo se encerrará com a compilação das composições surgidas durante o percurso de Transitado – sem previsão e com nome provisório. “Já temos duas faixas que não conseguimos finalizar com a banda para o Em trânsito. Foi um processo de produção coletiva e houve fracassos. Essas músicas vão retornar ou talvez nunca aparecer”, adianta o diretor musical, Bruno Giorgi.

CONTINENTE Em trânsito surgiu em meio a uma “não vontade” e até desesperança tua. Como está este processo?
LENINE A música realmente renova, mas acho que uma questão principal, que me moveu a fazer o Em trânsito, está associada a esse caos todo, essa desesperança, mas, principalmente, às mudanças que estão acontecendo de uma maneira vertiginosa. O que é hoje verdade amanhã já deixa de ser. Isso tudo dá uma sensação de não conhecimento, de estar andando em um lugar que não sabe realmente onde está pisando. Essa insegurança está muito presente em todo o projeto do Em trânsito.

CONTINENTE A música te renova?
LENINE A música sempre renova, mas, no caso do Em trânsito, o processo é que foi renovador e não só para mim, mas para todos os músicos, todas as pessoas que se envolveram no projeto. Foi muito estimulante, por causa da carga de novidade dessa nova mecânica que a gente descobriu fazer.

CONTINENTE Em que muda o show quando a plateia não conhece metade das músicas?
LENINE Sempre muda, porque tem a ver com essa possibilidade de quem está assistindo participar como autor da história. Isso acontece quando ela divide o cantar com você e não é possível com as canções mais novas. Quando a música amadurece a ponto de já estar na cabeça e no coração das pessoas, tudo é mais efusivo, coletivo.

CONTINENTE Como você definiria a relação com o violão neste disco?
LENINE O processo é a vedete da história toda. Fez parte desse processo também, de alguma maneira: eu quis exorcizar essa importância que o instrumento tem em tudo que eu faço. É verdade: o violão é quase uma extensão do que eu sou, é verdade que a minha composição é reconhecida por esse violão e também é verdade que eu quis, de uma alguma maneira, exercitar outro caminho. No meu caso, outro caminho foi abdicar desse instrumento como célula central de tudo que eu faço. As canções novas, as inéditas, eu passei para a banda sem o instrumento. Foram só a melodia e as palavras, para tentar descobrir outra maneira de interpretar a canção e buscar uma assinatura coletiva sem a necessidade do meu violão tão presente.

CONTINENTE Leve e suave, responsável pela abertura, é uma ode à delicadeza e ao afeto. É uma mensagem que carrega consigo?
LENINE Sim, Leve e suave tem essa intenção, desde o início. Eu compus justamente por isso. Eu queria uma canção carregada de leveza, que falasse do afeto e que, no fundo, tirasse o chão das pessoas, porque dá a falsa impressão de que o show terá como tema principal essa suavidade. E não é verdade: o show é bem nervoso, caótico sonoramente, uma puxada de tapete. Leveza e suavidade são uma busca, você não alcança plenamente, está sempre procurando.

CONTINENTE Logo depois, vem a porrada de Sublinhe e revele. É um recado para o ouvinte?
LENINE Tá vendo? O recado, você sentiu, ouviu e falou antes de mim. Sim, é isso mesmo. E mais: este sentido de sublinhar e revelar na contraposição do sublimar e revelar.

CONTINENTE Lua candeia marca a estreia da parceria com mais um conterrâneo, Amaro Freitas. Como você o conheceu e como se deu a relação musical de vocês?
LENINE Estou sempre procurando. Foi no festival Mimo a primeira informação real do Amaro tocando, com o trio dele. Já naquele momento, me impressionou muito. Hoje em dia, a gente pode falar que existe uma tradição do piano no Recife. Você tem o Vitor Araújo, que fez um trabalho belíssimo de composição, execução e aí pinta agora o Amaro, com essa profundidade sonora, que para mim foi muito atraente, sedutora. Ali, imaginei fazer alguma coisa com ele.

CONTINENTE E por que Lua candeia?
LENINE Foi esta canção porque tem uma história particular. Das inéditas, é a única antiga. Deve ter 30 anos de idade. É uma parceria com Paulo César Pinheiro e quem gravou foi Margareth Menezes há muitos anos. Eu nunca me senti à vontade ou com desejo de tocá-la. Nesse caso, como é uma canção quase “miltonianamente” mineira, achei que era propícia pra gente fazer alguma coisa com o Amaro. Foi assim: convidei, disse “divirta-se, desconstrua esta harmonia e construa da maneira que você achar bacana, conveniente e bonita”. Hoje em dia, é o mais novo velho amigo que tenho.

CONTINENTE Ogan erê é uma homenagem ao terreiro. Como é tua relação com as religiões afro-brasileiras?
LENINE Ogan erê tem uma história cheia de sincronicidades. Primeiro, teve de minha parte a descoberta do trabalho do Bongar, do Terreiro de Xambá, em Olinda, já há alguns anos. A gente fez alguns shows juntos, toquei no Marco Zero com os meninos, no PercPan, são pessoas muito próximas. O Guitinho (do Bongar) me contou acerca de um sobrinho que, com 6 ou 7 anos, uma certa manhã, acordou, foi para o terreiro, subiu em um tamborete e começou a fazer todos os pontos dos orixás. Foi uma novidade para todo mundo, mas mostra o quão familiar, atávica, profunda é essa relação. Isso é uma história. A outra, que coincide com essa, é com meu parceiro Lula Queiroga. A gente estava trocando coisas e o projeto novo tem essa coisa de intimidade. Ele me mandou alguns escritos. No meio, estava esta pérola: “Ogan no terreiro começa desde erê/ Mão pequenina no couro, bate até couro doer”. Eu lembrei da história e a melodia saiu quase como se já existisse e eu fosse apenas uma antena que capturou naquele momento. A canção tem esse histórico de sincronicidade e, portanto, também essa questão familiar e fundamental na história do Xambá. Isso tudo ficou impregnado. Mais do que a percepção que tive dessa relação da religião com aquele núcleo familiar, essa coisa de você não precisar pôr em palavras e tentar descrever de uma maneira cartesiana o que acontece no universo do divino. Você só constata o que existe.

CONTINENTE E aí vem Umbigo. Como dialoga com Intolerância?
LENINE Lógico que estão de mãos dadas a intolerância e o ego, no caso o ego está do lado de fora, pendurado, exposto. Isso foi outra coisa importante que aconteceu no projeto todo, que divido com Bruno Giorgi: as escolhas das canções, que não eram as inéditas, fazem parte do meu repertório e, de alguma forma, dialogavam com o universo sentimental e sonoro do Em trânsito. As canções foram pinçadas levando em consideração a atualidade do texto e o diálogo que poderia estabelecer com as inéditas.



CONTINENTE Como o atual momento do Brasil adentrou as composições de Em trânsito?
LENINE O ambiente que a gente está vivendo colaborou para eu não fazer nada. Eu estava sem nenhum desejo, sem nenhuma vontade por causa do ambiente que vivemos, a distopia que vivemos. Não ajudou, atrapalhou. Era difícil, para mim, imaginar um ambiente tranquilo o suficiente para eu criar, como sempre achei que a criação deveria ser.

CONTINENTE Você declarou apoio a Marina à presidência. Você já definiu/vai tornar público seu voto?
LENINE Ela não terá meu voto novamente, porque eu tenho a atitude de achar que, na equação do homem, não se deve botar Deus. De qualquer candidato que ponha, na sua equação humana, Deus, eu já começo a desconfiar. É isso que se deu com a Marina. Não terá meu voto. A Marina é uma pessoa que eu admiro, tenho carinho, só que eu desconfio de candidato que põe a palavra Deus no meio. Não devemos pôr Deus na questão humana. Por isso, retiro o voto que dei a Marina.

CONTINENTE Como foi o primeiro show?
LENINE A estreia em Salvador foi maravilhosa. Teve essa coisa da pressão, que baixou, eu tive uma sensação de desmaio e, por alguns minutos, eu tive esse desmaio mesmo. Mas isso também corrobora muito esta coisa da estreia, estava muito calor, eu estava bebendo pouca água, então me desidratei. Um sucesso gigante, as pessoas todas ali cantando comigo. Aí foi pressão demais para o coração, ele deu uma titubeada, mas foi só isso.

LUIZA MAIA é jornalista e escreve sobre artes e cultura desde 2010.

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