Entrevista

“Bob Marley deve estar se revirando em seu túmulo”

Roger Steffens, maior colecionador e pesquisador de reggae no mundo, que conheceu Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer, fala sobre bastidores do gênero e critica a atual música jamaicana

TEXTO Débora Nascimento

22 de Abril de 2019

O pesquisador e colecionador norte-americano Roger Steffens guarda um museu do reggae em sua casa

O pesquisador e colecionador norte-americano Roger Steffens guarda um museu do reggae em sua casa

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online |
extra da reportagem de capa Canções da liberdade]

A primeira vez que Roger Steffens escutou reggae foi em 1973, ano em que Bob Marley and The Wailers lançaram Catch a fire. Desde então, nunca mais deixou de ouvir. Virou a paixão de sua vida, ao ponto de transformá-lo no maior colecionador do gênero musical surgido na Jamaica no final dos anos 1960. Hoje, sete cômodos de sua casa em Los Angeles abrigam uma coleção de discos, pôsteres, flyers, livros, revistas, filmes, vídeos, broches, autógrafos. Na sua residência, uma espécie de meca do reggae nos Estados Unidos, Steffens recebe visitas de estudiosos e também de celebridades como Keith Richards, Leonardo DiCaprio, Gisele Bündchen. O seu sonho é reunir esse material em um Museu do Reggae na ilha onde nasceram e despontaram as maiores estrelas do estilo musical. Algumas delas, ele entrevistou pessoalmente, como os membros fundadores dos Wailers, Bob Marley, Bunny Wailer e Peter Tosh, que considerava um amigo e cuja notícia do assassinato, em 1987, fez os filhos de Steffens verem o pai chorar pela primeira vez.

Em 1979, o colecionador criou o programa Reggae Beat na rádio pública KCRW, que acabou sendo transmitido para 130 estações pelo mundo, contribuindo para divulgar o reggae em diversos países, durante 10 anos. Por conta da boa repercussão do programa, no qual Steffens entrevistou artistas como Keith Richards, Nina Simone, Little Richard, Sinead O'Connor e Ray Charles, ele recebeu o convite da gravadora Island Records para acompanhar a turnê do álbum Survival, de Bob Marley. Em duas semanas, pôde comprovar de perto o imenso carisma e a simplicidade do mais icônico nome do reggae. Em 1984, atendendo a pedidos do American Film Institute, em Hollywood, estreou a palestra multimídia The life of Bob Marley, apresentada posteriormente em diversos países.

Possivelmente o maior especialista em reggae no mundo, Steffens presidiu, durante 27 anos, o comitê do Grammy para o gênero (cuja premiação começou em 1985) e lançou, em 2017, o livro So much things to say: the oral history of Bob Marley, que será traduzido para o português e lançado em breve no Brasil – ele revela nesta entrevista. Segundo a Rolling Stone, “pode ser o melhor livro sobre Bob Marley de todos os tempos ... definitivo ... um marco”. Isso em meio às mais de 500 publicações dedicadas ao compositor já lançadas em todo o planeta.

Radialista, pesquisador, escritor, consultor de livros, documentários e relançamentos de discos do gênero, Steffens, também fotógrafo que registrou a Guerra do Vietnã e o movimento da contracultura nos Estados Unidos, concedeu uma entrevista exclusiva à Continente com observações relevantes sobre o mais influente gênero musical oriundo do chamado Terceiro Mundo.


Um dos sete cômodos da casa que abriga o acervo do colecionador. Foto: Divulgação

CONTINENTE Em 1964, Bob Marley & Wailers tiveram seu primeiro sucesso na Jamaica com a música Simmer down. Nesse mesmo ano, os Beatles fizeram a Invasão Britânica nos Estados Unidos. Por que o quarteto não teve o mesmo impacto na Jamaica?
ROGER STEFFENS Os Beatles eram vistos como um atrativo para meninas adolescentes brancas. Apesar de suas músicas terem recebido versões jamaicanas, como And I love her, gravada pelos Wailers, a empolgação da cena local do ska, então em seu auge, ofuscou o trabalho dos Fab Four. Além disso, naqueles primeiros dias da beatlemania, suas músicas não estavam dizendo nada.

CONTINENTE Existe um motivo para a transição do ska ao rock steady e, depois, ao reggae?
ROGER STEFFENS A teoria popular para o surgimento do rock steady em 1966 é que o verão daquele ano foi significativamente mais quente que nos anos anteriores. O estilo frenético da dança ska cansou as pessoas e as multidões estavam procurando por algo que permitisse dançar junto a seus parceiros, ao som uma batida mais sensual. Os sons de big band foram substituídos por arranjos sem metais, e grupos vocais se tornaram dominantes. Dois anos depois, como os jamaicanos continuavam procurando um novo som, o reggae assumiu com sua batida hipnótica “chukka-chukka”.

CONTINENTE Reggae foi o gênero musical do chamado Terceiro Mundo que mais teve repercussão internacional e ainda hoje é influente. Para você, como explicar isso?
ROGER STEFFENS O segredo do domínio do reggae e da penetração mundial é que seu ritmo é a batida do coração humano saudável em repouso. O fato de Bob Marley ser, até hoje, sua figura-chave, ajuda. Marley é visto como uma figura rebelde, um ícone quase religioso, um José reencarnado da Bíblia que veio alimentar a geração atual com alimento espiritual. Sua música significa algo. Ao olharmos para o século anterior, vemos sua posição dominante como o “Artista do Século”, cuja obra será tocada e compartilhada durante séculos, se o planeta tiver sorte o suficiente para sobreviver. O reggae nos dá esperança, regras para viver e conforto para os aflitos. É o ritmo escolhido para simbolizar resistência em todo o mundo.

CONTINENTE Você acha que Bob Marley conseguiu ultrapassar Bob Dylan e John Lennon em termos de ser um ícone de rebeldia?
ROGER STEFFENS Sem dúvida. Recentemente, fui entrevistado por Phil Keoghan, 10 vezes vencedor do Emmy, apresentador e criador da série de TV The Amazing race. Ele queria falar comigo, porque esteve em 130 países e, em cada um deles, encontrou evidências de Bob Marley. Como você traduz Subterranean homesick blues (música de Bob Dylan) em Urdu? No entanto, todos podem entender os sentimentos em No woman, no cry, independentemente das barreiras linguísticas.

CONTINENTE No One Love Peace Concert, festival realizado por Bob Marley em 1978, com o objetivo de pacificar a Jamaica, Peter Tosh chocou o público com um discurso que denunciava a violência e a injustiça que o país enfrentava, acusando os políticos e a polícia, que estavam presentes no evento. Até que ponto esse tipo de comportamento corajoso prejudicou a vida e carreira de Peter Tosh?
ROGER STEFFENS Isso certamente danificou sua vida quando cerca de cinco meses após sua histórica apresentação, sete policiais jamaicanos o espancaram impiedosamente durante 90 minutos e o deixaram em uma cela de prisão. Eles abriram seu crânio e ele nunca se recuperou totalmente dos efeitos posteriores que essa brutalidade provocou. Em termos de carreira, provou ao mundo que ele era um defensor sem limites dos pobres e oprimidos, sem medo de falar a verdade ao poder, independente das consequências. Ele era como Malcolm X para o Martin Luther King de Bob Marley, e pagou o preço por isso.

CONTINENTE O professor Ray Hitchins, da Universidade das Índias Ocidentais, disse que “enquanto no exterior eles acham que Marley é um superstar, na Jamaica ele é visto como muitos outros artistas do gênero”. Isso é verdade?
ROGER STEFFENS Talvez uma estrela maior na Jamaica, na época do falecimento de Marley, em 1981, fosse Jacob Miller (vocalista do Inner Circle, uma das estrelas do filme Rockers, de 1978). Imediatamente depois de ambas as mortes, o rapper homofóbico, misógino e desbocado Yellowman tornou-se um superstar muito querido na Jamaica, para o horror dos rastafáris de toda parte. Na verdade, Bob nem sequer foi considerado uma estrela na Jamaica até 1975, quando se tornou grande na Grã-Bretanha. Quando os estrangeiros o aceitaram, os jamaicanos também o aceitaram.

CONTINENTE Como você, que conheceu Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer, os define como pessoas e artistas? De qual deles você se sentiu mais perto?
ROGER STEFFENS Eu viajei com Marley por duas semanas, em novembro de 1979, em sua última turnê pela Califórnia, divulgando seu álbum Survival. Eu o conheci e fiquei impressionado com sua abertura com os fãs, sua humildade e disciplina. Ele era, como se costuma dizer, o último a ir para a cama à noite e o primeiro a se levantar pela manhã. Sua mãe, Cedella Booker, me disse que ele só dormia duas ou três horas por noite. Em 1969, ele disse a dois jovens amigos em Delaware que ele ia morrer aos 36 anos. Ele era um profeta, um médium, e percebeu que tinha pouco tempo para alcançar seu objetivo de espalhar a palavra de Haile Selassie I, como um deus encarnado, para o mundo. Como artista, ele estava constantemente trabalhando, escrevendo partes de novas músicas quase todos os dias. Alguns de seus trabalhos mais interessantes ainda permanecem nos cofres, desde sua morte prematura.

Peter e eu éramos amigos e eu o entrevistei muitas vezes para o rádio e a televisão. Ele geralmente usava óculos escuros que impediam as pessoas de ver o brilho nos olhos dele. Muitas vezes, ele parecia combativo e ocasionalmente delirante; um escritor negro do L.A. Times o chamou de “louco”. Peter fumava erva nos aviões e nas ruas de Nova York diante da polícia, sem medo. Ele foi o principal defensor da legalização da maconha. Ele também tinha um maravilhoso senso de humor, chamando seu empresário (manager) de damager (danoso) e o juiz (judge) de drudge (rancoroso). Ele chamava minha cidade natal Hollywood de Follywood (Falsawood) e Hellay (“Infernosangeles”). O primeiro-ministro (prime minister) da Jamaica era referido como “O ministro do crime que faz merda na Casa dos Representrapaceiros” (“Crime Minister who shit in the House of Represent-a-Thief / Prime Minister who sits in the House of Representatives).

Peter era mais músico do que seus outros dois parceiros. Ele tinha um estilo inventivo de tocar guitarra, piano e gaita. Sua voz é a mais aguda nas harmonias do grupo.

Bunny é outra história. Meu parceiro de escrita Leroy Jodie Pierson e eu passamos com ele 64 horas trancados em um quarto de hotel em Kingston, em outubro de 1990, entrevistando-o para o projeto de autobiografia, Old fire sticks. Bunny é uma das histórias mais tristes do reggae. Ele não lançou uma música ou um álbum significativo desde a coleção Liberation, de 1986. Existe um tremendo abismo entre Blackheart man, seu álbum de 1975, e uma faixa absurda como Don't touch the president, sua canção de louvor ao líder da sanguinária (gangue) Shower Posse, responsável por milhares de mortes na Jamaica e no exterior. Os insultos enlouquecidos de Bunny na internet, acusando alguns dos associados mais próximos de Bob de serem seus assassinos, o fizeram perder muito respeito em todo o mundo. Ele roubou promotores de shows, aceitando adiantamentos para apresentações que nunca fez. Seu abandono do nosso projeto de autobiografia, sem comunicar a mim e a Leroy, após 10 anos de trabalho, continua sendo uma traição surpreendente para nós e para todos os fãs dos Wailers em todo o mundo. Mil e oitocentas páginas de transcrições contando a história que todos os fãs de Bob estão esperando para ouvir, ditas apenas como ele pode dizer, estão sentadas em uma caixa nos meus arquivos do reggae.

No entanto, muitas das discussões mais cruciais que tive com Bunny, Bob e Peter, estão finalmente vindo à luz em meu último livro, que em breve será publicado no Brasil, chamado Muitas coisas a dizer: a história oral de Bob Marley. Dos mais de 500 livros sobre Bob, a Rolling Stone disse recentemente que “pode ser o melhor livro de Bob Marley de todos os tempos ... definitivo ... um marco”. O poeta Kwame Dawes disse ser “um triunfo da capacidade de contar histórias do povo jamaicano”, porque contém as vozes de 75 das pessoas que melhor conheciam Bob, os jamaicanos relatam a história de Bob com suas próprias palavras sem que algum cara branco ponha palavras na boca. Levei 15 anos para escrever, 38 anos de entrevistas e 44 anos de pesquisa para dar forma. Junto com Bob Marley e os Wailers: a discografia definitiva, coescrito com o Sr. Pierson, esses dois livros se tornam marcos definitivos para todos os pesquisadores dos Wailers no futuro.

CONTINENTE Por que Bunny desistiu do projeto do livro? Você espera publicá-lo algum dia?
ROGER STEFFENS Depois da luta de uma década e meia para terminar A história oral de Marley, eu, aproximando-me dos 77 anos, não tenho nem interesse nem energia para concluir o projeto. Eventualmente, essas 1.800 páginas vão acabar em um museu e alguns futuros estudiosos irão montá-lo muito tempo depois que Bunny, Leroy e eu sumirmos. Meu único consolo é que a história o terá, mas todos aqueles que permaneceram, que estiveram aqui no momento da ascensão dos Wailers e estariam mais agradecidos pelo material, nunca o verão, para meu pesar.

CONTINENTE Por que Peter Tosh e Jimmy Cliff não tiveram a mesma repercussão internacional que Bob Marley?
ROGER STEFFENS Peter era muito feroz, muito argumentativo. Ele assustou as pessoas um pouco, e suas declarações negativas sobre Bob após sua morte o fizeram perder muitos fãs.

Jimmy perdeu a liderança depois que o filme The harder they come foi lançado, porque ele fez dois álbuns pop e se identificou como muçulmano. No entanto, Jimmy continua a percorrer o mundo tocando para grandes plateias e tornou-se uma superestrela mundial cujas energias permanecem inalteradas.

CONTINENTE Qual foi a figura mais importante na carreira de Bob Marley & The Wailers: Joe Higgs (professor de música), Coxson (o produtor Clement Seymour “Sir Coxsone” Dodd) ou Chris Blackwell (dono da gravadora Island Records, que lançou Catch a fire em 1973)?
ROGER STEFFENS Estes três, junto à parceria do mafioso Danny Sims (primeiro empresário de Marley) e do cantor Johnny Nash (quem primeiro divulgou o reggae nos Estados Unidos), são as figuras cruciais sem dúvida. Higgs preparou pessoalmente o adolescente Marley durante anos antes de gravar, ensinando-lhe técnicas de respiração, técnica de palco e composição. Coxson trouxe os Wailers à atenção do mundo. Eles gravaram cerca de 100 músicas para ele, recebiam três libras por semana e, de acordo com Bunny, quando deixaram o selo depois de vender centenas de milhares de discos para ele, receberam indenizações de apenas 99 libras cada. A maioria dessas músicas nunca pararam de ser editadas nos últimos 55 anos.

CONTINENTE Que análise você faz entre o reggae dos anos 1970 e o que é feito hoje?
ROGER STEFFENS Com exceção de um pequeno número de artistas chamados “revival roots”, como Kabaka Pyramid, Chronix, Jesse Royal e Jah9, atualmente a música reggae está em um eclipse quase total na Jamaica. O movimento foi assumido por artistas estrangeiros, na América e especialmente na Europa. Na Jamaica, o som estridente do dancehall, com suas letras de apologia às armas e sua bravata machista, domina as paradas. Bob deve estar se revirando em seu túmulo. Dois anos atrás, na Universidade das Índias Ocidentais, em Kingston, o veterano Max Romeo anunciou tristemente que “a música reggae está morta”. Os sons de Bunny, Bob e Peter são considerados “música de vovô” e, exceto em torno de datas comemorativas, ganham pouco play na ilha.

CONTINENTE Você acha que o fato de um disco de reggae nunca ter ganho um Grammy para Álbum do Ano significa que a indústria ainda estigmatiza o gênero musical?
ROGER STEFFENS As vendas de reggae na América são realmente minúsculas. Um álbum recente do vencedor constante do Grammy de Melhor Disco de Reggae, Ziggy Marley, oficialmente vendeu apenas 13 mil cópias. Há cerca de 100 categorias diferentes no Grammy e a probabilidade de um álbum de reggae ganhar o Álbum do Ano é de cerca de mil para um.

CONTINENTE Quais são os seus planos para o futuro?
ROGER STEFFENS Minha missão de 30 anos é tornar meus arquivos do reggae, que enchem até o teto sete salas de nossa casa em Los Angeles, em um museu na Jamaica. Isso já passou da hora. Várias propostas falharam ao longo dos anos. Minha conclusão sempre foi de que a coleção deve permanecer intacta para sempre e disponibilizada ao público, respeitando todos os direitos dos artistas. Estou perto agora de ter esses desejos cumpridos, mas não posso falar publicamente ainda. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da Continente e colunista do site da revista.

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