Entrevista

“Eu era um estranho e vocês me acolheram”

Nesta entrevista exclusiva à Continente, o artista Olu Oguibe, presente na 'documenta 14', fala sobre seu trabalho e a importância de acolher com hospitalidade os povos do mundo

TEXTO Bárbara Buril

09 de Agosto de 2017

O artista e professor nigeriano Olu Oguibe

O artista e professor nigeriano Olu Oguibe

Foto Acervo pessoal

O Monumento para os estrangeiros e refugiados, do artista Olu Oguibe, é certamente uma das obras mais impactantes a serem vistas em Kassel, na documenta 14. O obelisco de 16 metros, situado no centro da Königsplatz, tem em sua estrutura a seguinte frase, tirada de Mateus 25:35:“Eu era um estranho e vocês me acolheram”. A expressão é vista em cada uma das quatro faces do obelisco em um idioma específico: inglês, alemão, turco e árabe, as línguas mais faladas na pequena cidade alemã. Desde que foi inaugurado, o obelisco tem sido o centro das atenções de todos aqueles que passam pela principal praça da cidade, ponto nevrálgico onde se encontram diariamente imigrantes e nativos para fazer pequenas compras ou realizar conexões de trem. O obelisco não só é fotografado constantemente, como virou ponto de encontro. 

Devido ao impacto e à repercussão positiva à obra pelos residentes em Kassel, Oguibe foi o vencedor do Prêmio Arnold Bode 2017, entregue pelas mãos das autoridades municipais de Kassel [ver foto abaixo]. O prestigiado prêmio, que recebe o nome do fundador da documenta, tem o valor financeiro de 10 mil euros e valor o simbólico de reconhecer os artistas contemporâneos que tenham emprestado os seus esforços mais intensamente à arte contemporânea.



Oguibe é atualmente professor de arte e estudos afro-americanos da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, e uma referência dos estudos pós-colonialistas e dos estudos sobre nova informação tecnológica nos Estados Unidos. Além disso, foi curador de diversas exposições de arte, entre elas a 2ª Bienal de Cerâmicas na Arte Contemporânea, realizada em Gênova e Albisona, na Itália, em 2003, e o Festival Internacional de Vídeo e Arte Midiática no Palácio Postal, no México, em 2002. É ainda conselheiro fixo das comissões das bienais de Dakar, Johannesburg e Havana.

Também autor de vários ensaios e livros, Oguibe concedeu esta entrevista exclusiva para a Continente. Nela, falou sobre questões como o processo criativo do obelisco da documenta, os desafios enfrentados na sua construção e as repercussões que se seguiram à inauguração da obra. 

CONTINENTE Foi muito impressionante ver um obelisco no centro da Königsplatz, em Kassel, sustentando a poderosa frase “Eu era um estranho e vocês me acolheram” em quatro línguas diferentes. Em alguns momentos e lugares (espaços), em Kassel, é possível ver mais imigrantes do que alemães, embora Kassel não seja "a cidade multicultural" da Alemanha, como é Berlim ou Frankfurt. Eu imagino que a rotina diária envolvendo imigrantes e alemães não seja tão natural em Kassel, como parece ser nas capitais (política e econômica) da Alemanha. O que você realmente quis provocar com o monumento? Ele parece ter um relevante potencial transformativo.
OLU OGUIBE Obrigado pela gentileza. Você provavelmente está certa sobre a diversidade mais visível de cidades maiores como Frankfurt e Berlim, mas Kassel, é claro, tem uma história mais íntima e longa com imigração e refugiados que Frankfurt ou Berlim. O Edito de Kassel, por exemplo, emitido em 1685 por Landgrave Carlos I, declarava Hessen-Kassel como um refúgio seguro para huguenotes franceses perseguidos em busca de refúgio. Foi uma das primeiras anistias reais para imigrantes e refugiados na história moderna. Milhares de huguenotes receberam este benefício e hoje seus descendentes e suas heranças são uma parte muito importante e estabelecida de Kassel e da região de Hessen. Reversamente, há mais ou menos um século, Landgrave Frederico II adotou a medida de alugar seus soldados para lutar como mercenários em guerras no exterior. Foi com o lucro destes aluguéis que ele construiu o Fridericianum em Kassel, o primeiro museu de arte pública da Europa, que também é o principal local da documenta. Milhares desses soldados, que vieram a ser conhecidos como os hessianos, lutaram pelos britânicos contra os norte-americanos durante a Revolução Americana, e muitos deles finalmente se estabeleceram na América do Norte após a guerra como refugiados. Hoje, ainda é possível encontrar comunidades hessianas em lugares como Pensilvânia, Nova Inglaterra e Canadá. E, nos últimos anos, milhares de imigrantes se instalaram em Kassel onde, com exceção de alguns incidentes, encontraram ampla aceitação na sociedade. É por isso que a inscrição no obelisco situado na Königsplatz está nas quatro línguas mais faladas em Kassel. Árabe e turco são mais amplamente falados em Kassel do que inglês ou francês, porque existem grandes comunidades turcas e árabes que residem lá. Os eritreus e os somalis também estão presentes e instalados lá. O nível de integração transcultural entre essas comunidades é uma questão completamente diferente – o que obviamente não é o assunto do meu trabalho. Penso que minha intenção era reconhecer e registrar a longa história da cidade com a migração dentro e fora de Kassel, na Europa e no resto do mundo. Como afirmei em outro lugar, todos nós somos viajantes no final do dia e todos os viajantes esperam que, não importa o propósito de sua jornada, haja alguém pelo caminho que seja gentil o suficiente para dizer, nas palavras famosas de Bob Dylan: “Entre, e eu vou te dar abrigo da tempestade”. Além disso, o tema da documenta 14 é Aprendendo de Atenas, e há um grande aprendizado com o antigo preceito ateniense de xênia (hospitalidade), que criou um vínculo vitalício entre nativos e estrangeiros através da hospitalidade e da gratidão. Os usos e abusos do xênia na Atenas antiga e as repetidas tentativas de regulamentá-lo legalmente, ou até mesmo restringi-lo sob Péricles e outros no século 5 a.C, nos lembram certos aspectos das crises de imigração na Europa hoje. Para mim, a própria conexão de hospitalidade e gratidão de xênia é muito instrutiva e ela se vê nas palavras de um pregador de rua em Mateus 25:35, as quais usei no obelisco porque são intemporais.



CONTINENTE Você teve que lidar com resistências políticas, econômicas e sociais antes de construir este monumento em Kassel? Se sim, quais?
OLU OGUIBE Eu diria, sobretudo, que não houve resistência ao conceito e quaisquer desafios foram de natureza estritamente técnica. Desde o início, minha proposta foi fazer uma escultura pública monumental, usando essas palavras do Livro de Mateus, centradas nos princípios universais subjacentes de hospitalidade e gratidão. Essa ideia foi aceita pela documenta e pela cidade de Kassel sem qualquer problema. Quando eu e Adam Szymczyk nos encontramos com o prefeito da cidade em junho de 2016, fomos informados simplesmente que precisávamos identificar um lugar adequado para o meu trabalho. No entanto, naquela época – isto é, apenas um ano atrás –, o conceito não assumiu a forma de um obelisco. Eu tinha em mente uma ideia inteiramente diferente, muito mais sobressalente e severa; apenas o texto era o mesmo. Depois que identificamos o lugar para a obra, logo ficou claro que os desafios técnicos e de segurança envolvidos seriam quase insuperáveis ​​especialmente pelo lugar. Eu tive que retornar à mesa de desenho e, de fato, a ideia alternativa de um obelisco não se concretizou até o final ano, em novembro ou dezembro de 2016. Em outras palavras, nós quase não tivemos tempo para realizar o trabalho. No entanto, acho que todos gostaram da ideia imediatamente, e então conseguimos fazer tudo mais rápido. Também sabíamos que a localização ideal seria realmente a Königsplatz, sem sombra de dúvidas. Adam, em particular, sentiu que o lugar precisava ter um ponto central e o meu curador direto, Bonaventure Soh Ndikung, que é o curador-geral da documenta 14, sempre observou o forte simbolismo da Königsplatz. Toda a equipe da documenta também notou que a praça é provavelmente o único local na cidade onde a parte do norte, principalmente imigrante e menos privilegiada de Kassel, e a parte nativa, mais afluente do sul, se encontram regularmente. Assim, a Königsplatz é um ponto de encontro muito importante, tanto social como historicamente. Com um projeto desta escala tomando forma quase no último minuto, obviamente sempre haverá todos os tipos de pressões, principalmente em relação aos recursos. Do lado de fora, muitas vezes parece fácil, especialmente porque as pessoas pressupõem que a documenta está nadando em dinheiro. O fato, porém, é que, com esta documenta ocorrendo em dois países diferentes este ano, e o diretor artístico fazendo um esforço para distanciar a documenta 14 das galerias comerciais, a equipe teve que ser extremamente engenhosa em unir adequadamente o financiamento para os meus projetos. Não foi fácil, mas com o apoio firme do diretor e da equipe da documenta, bem como de outras instâncias fora da documenta que acreditam no meu trabalho, conseguimos encontrar os meios para realizar o trabalho ao mesmo tempo em que fizemos alocações práticas e os compromissos necessários aqui e ali. Nós ainda fazíamos ajustes técnicos de contingência até poucos dias antes da abertura da imprensa. Isso leva experiência tanto do artista como da equipe técnica. A equipe técnica da documenta e os engenheiros da cidade foram extremamente dedicados e muito importantes para tornar possível a construção do obelisco.

CONTINENTE Que tipos de reações você viu depois que o monumento foi inaugurado? O time da documenta recebeu comentários de imigrantes que se sentiram contemplados pelo monumento?
OLU OGUIBE A resposta pública para o trabalho foi esmagadoramente positiva em cada canto. Nós até recebemos relatos de pessoas chorando quando viram o obelisco. Jovens agora se reúnem lá, pessoas se sentam na base do obelisco para socializar ou para esperar pelo trem ou para usar o wi-fi público, e foi exatamente isto o que eu planejei criar, ou seja, um trabalho com o qual as pessoas se sentissem suficientemente confortáveis a ponto de terem um senso de propriedade, ao mesmo tempo que a obra comunicasse uma mensagem universal poderosa. Eu não quis fazer um trabalho que fosse ou simplesmente didático, ou um mero espetáculo. Em uma manhã na semana passada, alguns colegas passaram pelo obelisco e viram que alguém escreveu uma mensagem na base do obelisco. A mensagem escrita à mão simplesmente dizia: “Thank you”. De todas as partes da comunidade imigrante de Kassel, nós recebemos apenas reações muito positivas, e muitos locais expressaram um forte desejo para que o trabalho fique no mesmo lugar permanentemente, algo que obviamente não nos compete decidir. Apesar de termos construído o obelisco para que ele sobrevivesse por várias centenas de anos, se fosse necessário, eu também o desenhei para que ele fosse facilmente desmontado e removido no final da documenta em setembro, se a cidade assim desejasse. Meu objetivo foi fazer um trabalho com o qual a comunidade pudesse fortemente e emocionalmente se identificar, e até agora este objetivo tem sido firmemente realizado.

CONTINENTE Você imaginava que o trabalho provocaria estas reações?
OLU OGUIBE Claro, mas também prefiro antecipá-las no próprio trabalho, isto é, levando em consideração o contexto e o lugar ao conceber o trabalho. Eu ministrei seminários de pós-graduação em arte pública. Também escrevi e publiquei vários ensaios sobre arte pública que remontam à década de 1980. Na verdade, criei uma das minhas primeiras obras de arte pública permanente na Alemanha, em Friedberg, em 1994. O processo envolveu transparência completa e envolvimento completo da comunidade, embora, no meu raciocínio, o trabalho não tenha sido tão significativo ou bem-sucedido quanto o obelisco de Kassel. Então, estou plenamente consciente do que pode acontecer quando o público se depara com uma intervenção criativa ou a considera uma imposição ou mesmo uma transgressão. Eu sou muito sensível à política e à logística do espaço aberto, e eu tento usá-las no meu pensamento como fatores no momento que realizo um trabalho a ser situado em local público, especialmente um lugar como a Königsplatz, de Kassel, que não só é usada por uma pequena comunidade bastante diversificada, como também está bastante carregada de história. Bonaventure Ndikung gosta de comentar sobre o que ele chama de senso definitivo de precisão. Eu tento prestar atenção a detalhes significativos, não importa o quão pequenos são, para que meu trabalho possa atravessar pessoas sem se afogar em distrações desnecessárias.

CONTINENTE Querido Olu, eu li que você nasceu na Nigéria e também realizou lá a sua graduação, mas que você passou grande parte de sua vida na Inglaterra e nos Estados Unidos. Por que você migrou?
OLU OGUIBE Eu me mudei para o Reino Unido em 1989 para completar os meus estudos de doutorado, que concluí em 1992. Antes disso, eu era um estudante ativista. Por causa disso, fui expulso da minha universidade e também declarado um fugitivo da lei, mesmo depois de eu ter me mudado para o Reino Unido. Apesar disso, na Inglaterra, eu me envolvi muito com a comunidade de imigrantes e também com os movimentos progressistas de imigrantes, e com o então movimento pró-democracia do Terceiro Mundo. Isso me preocupava pelos inícios dos anos 1990. Em 1995, eu deixei o Reino Unido e me mudei para os Estados Unidos. Finalmente, eu renunciei à minha cidadania da Nigéria oficialmente e devolvi o meu passaporte do governo federal da Nigéria em 2013. Explorei a minha longa luta com assuntos complexos como lar, exílio, pertencimento e nostalgia em vários ensaios que publiquei no decorrer dos anos, entre eles Exílio e a imaginação criativa.

CONTINENTE Como se sente um imigrante?
OLU OGUIBE Esta é uma pergunta muito difícil de responder, porque há diferentes tipos de migrantes ou imigrantes. Pessoas deixam os seus lares por diferentes razões, e a recepção que encontram um migrante ou imigrante na sua chegada percorre um longo caminho até determinar como eles realmente se sentem. Por exemplo, um exilado é bastante diferente de um refugiado, e um refugiado é diferente de um mero expatriado. Exílio e a imaginação criativa percorre um longo caminho para responder esta questão.

CONTINENTE Como você descreveria hospitalidade?
OLU OGUIBE É provavelmente melhor deixar que a arte fale às vezes, porque é por causa disso que obviamente nós fazemos arte. Há também diferentes formas de hospitalidade. Eu acredito que o significado da hospitalidade está na raiz mesma da palavra. No particular exemplo que eu tenho em mente, a hospitalidade implica abrir as portas da própria casa e receber um estranho ou viajante; abrir a própria comunidade e receber um estranho que necessite de um lar ou abrigo; permitir a entrada de um estranho que está fugindo da perseguição ou fome; abrir-se ao que é não familiar com a confiança de que esta é a coisa certa a se fazer.

BÁRBARA BURIL jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE.

* A repórter foi a Kassel através de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

Publicidade

veja também

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 2]

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 1]

“Arte demanda um completo sacrifício”