Entrevista

“Eu ficarei no meu país”

Em rápida conversa com a Continente, Monica Benício, arquiteta, militante e viúva de Marielle Franco, fala sobre a luta por justiça um ano depois do assassinato de sua companheira

TEXTO FLÁVIO CARVALHO, DE BARCELONA

14 de Março de 2019

Mônica Benício no desfile da Mangueira, campeã de 2019

Mônica Benício no desfile da Mangueira, campeã de 2019

Foto Celso Pupo/Fotoarena

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Semana passada, aqui em Barcelona, o ator José de Abreu ironicamente me confessou: “Há que se agradecer, cada dia, à família Bolsonaro, pois antes poucos, como eu, sabiam quem era a vereadora assassinada no Rio de Janeiro – agora vim de Paris, voltarei à Grécia, e por todos os cantos, cada dia, tenho que responder quem era Marielle Franco, transformada por eles em um ícone mundial; tanto fala-se nela como no Lula no exterior”.

Marielle Franco não foi assassinada por denunciar milícias. Não somente por isso. Ela foi morta por uma equação. Histórica progressão aritmética de discriminações no maior país da América do Sul.

Somando o fato de ela amar Monica, por andar na favela, pela cor da pele, por ousar… Agora é que ela não parará. A informação sobre seu assassinato multiplicou-a pelo mundo todo. Monica Benício, sua companheira de vida, é uma importante expoente de como revive Marielle. Entrevistei-a, aproveitando sua vinda à capital catalã recentemente. Carioca, 32 anos, criada na Favela da Maré, Monica faz o Mestrado na PUC-RJ, onde estudou Arquitetura (“como bolsista”, ressalta). Desde a adolescência, é militante em defesa de direitos humanos. Além de “mangueirense de coração desde criança”. Depois desse Carnaval, com a vitória de sua escola, sem dúvida a paixão verde e rosa só aumentou.

Felizes as câmeras de televisão que conseguiram captar toda a emoção da arquiteta urbanista e atual assessora legislativa do Psol, em Brasília, chorando ao ver a sambista Cacá Nascimento puxando o samba-enredo na Sapucaí. De tanta emoção, Monica a presenteou no ato com a própria camisa que vestia.

A veremos, em seguida, como parlamentar eleita? Essa é a única pergunta que ela objetivamente não responde, argumentando que agora estaria mais centrada em toda a informação sobre a prisão recente do sargento da Polícia Militar Ronnie Lessa, acusado de executar os tiros, e do ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz, apontado como condutor do veículo de onde vieram os disparos.

Sua agenda está lotada de atividades (entrevistas, documentários, mesas temáticas sobre feminismo e questões relacionadas à população LGBTI) pelo Brasil e em outros países, principalmente na Europa. Cansada, por tantos compromissos, considera de extrema importância a luta por justiça para Marielle. Sempre sem se esquecer de Anderson, o motorista assassinado junto à vereadora do Psol: “Infelizmente, meus projetos profissionais ficaram de lado para cumprir essas agendas. Minha vida hoje é dedicada a isso”.

CONTINENTE A agenda de lutas em defesa dos direitos humanos no Brasil, e em todo o mundo, promete para 2019, não é?
MONICA BENÍCIO Sem dúvida. Estamos em plena luta contra o fascismo. Em vários países, a situação política é semelhante ao Brasil. Nosso maior desafio é criar pontes e romper com as fronteiras, para que as nossas lutas se cruzem. Lutamos para reafirmar as nossas existências como mulheres, LGBTIs e representantes de diferentes etnias. Lutar pela manutenção da laicidade do Estado e ocupar os espaços institucionais são as nossas prioridades. Além disso, haverá a importante data do 14 de março, quando completará um ano da execução política da Marielle.

CONTINENTE Afinal, quem mandou matar Marielle?
MONICA BENÍCIO Precisamos entender que o que a matou foi o sistema brasileiro desse Estado machista, racista, misógino e LGBTfóbico, que viu em seu corpo, nela, na Marielle, a expressão de um corpo descartável nesse país.

CONTINENTE Que se faz atualmente do legado da Marielle?
MONICA BENÍCIO Seu legado está nas diversas lutas contra as opressões.

CONTINENTE Existe uma teoria fascista de acumular ódios?
MONICA BENÍCIO No Brasil, sempre existiu. Os altos índices de assassinato da população de mulheres, negras e lésbicas nos fazem refletir sobre o que temos hoje no poder. Um processo que vem de décadas atrás.

CONTINENTE Como uma questão de sentimentos, de afeto, da sua relação com Marielle impulsiona, ajuda, visibiliza toda uma questão coletiva, de respeito aos direitos de pessoas que amam LGBTI?
MONICA BENÍCIO Minha vida com a Marielle era de um casal como qualquer outro. Tínhamos nossa casa, rotina, afeto, divergências e parceria. Existe um antes e um depois. Se a nossa história serve para fortalecer outros relacionamentos, que bom!



CONTINENTE Quais os espaços políticos que lhe definem como coletivo, hoje em dia?
MONICA BENÍCIO Toda a esquerda tem pensado e repensado sua trajetória e sobre novas formas de intervenção. Meu espaço é o coletivo por justiça e liberdade. Com todas aquelas pessoas que queiram somar. Na luta por uma sociedade verdadeiramente democrática.

CONTINENTE Como têm sido suas viagens fora do Brasil?
MONICA BENÍCIO Infelizmente, nas agendas não consigo outro tempo que não seja para muito trabalho. Não são viagens para passear. Viajo muito pelo trabalho: por justiça para Marielle. Na Catalunha, por exemplo, as pessoas me recepcionaram muito bem. Como no caso do sindicato Comisiones Obreras. Espero sempre poder retornar com mais tempo a cada um desses lugares. Sou encantada pela arquitetura de cidades como Barcelona. Mas, como eu disse, são viagens exaustivas, em que não disponho de tempo para conhecer a cidade em si. Eu nunca havia ido à Europa antes do dia 14 de março…

CONTINENTE Quais suas principais esperanças?
MONICA BENÍCIO Tenho muita esperança de que haja resolução real, e não falaciosa, sobre a execução da Marielle.

CONTINENTE Como enxerga o trabalho com as famílias, principalmente de adolescentes, enfrentando juntas as discriminações em coletivos como o Mães pela Diversidade?
MONICA BENÍCIO Mães pela Diversidade é uma organização de fundamental importância. As nossas famílias precisam ser acolhidas e respeitadas. Essas mães, essas famílias, têm promovido muitos atos pelo Brasil. Pouco se fala ainda sobre a situação das adolescentes e dos adolescentes LGBTI. Há muito moralismo sobre a infância e adolescência. É fundamental pautarmos nossas vidas desde o desenvolvimento dessas etapas, inclusive para diminuir o índice de suicídios.

CONTINENTE Você e Marielle se conheceram em atividades da igreja católica, que já demonstrou ser tão contrária a temas como os direitos reprodutivos, à sexualidade e ao corpo...Como foi isso?
MONICA BENÍCIO Nos conhecemos na porta da igreja, eu e a Marielle. Mas gosto de lembrar que estávamos indo para o Carnaval. A igreja precisa compreender o sentido do amor em Cristo e de solidariedade. E não discriminar a população LGBTI. Compreendendo que o amor é a principal mensagem de Cristo.

CONTINENTE Assusta o aumento do fundamentalismo religioso de pastores evangélicos ultraconservadores no Brasil?
MONICA BENÍCIO É, sem dúvida, um projeto político muito bem-articulado. No Brasil, está em curso desde o processo de colonização. Mas nós somos teimosas e não aceitamos tais doutrinamentos. Não podemos esquecer que “esses” chegaram ao poder no parlamento. Isso reconfigura nossa disputa.

CONTINENTE No atual momento político brasileiro, aumenta o número de pessoas que falam em autoexílio e saem do país, quando o próprio Estado se torna uma ameaça aos cidadãos que deveria proteger.
MONICA BENÍCIO Não sabemos se haverá fechamento do regime. Se as pessoas quiserem sair do Brasil, será legítimo. Mesmo acreditando que devemos resistir e lutar por um país democrático.

CONTINENTE Você já pensou em autoexílio? Dar um tempo do Brasil?
MONICA BENÍCIO Não. Eu ficarei no meu país.

FLÁVIO CARVALHO é sociólogo e vive em Barcelona, na Espanha.

Publicidade

veja também

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 2]

“O que eu ouvia é que isso não era uma profissão” [parte 1]

“Arte demanda um completo sacrifício”