Entrevista

“O riso sempre teve má reputação”

Escritor e humorista português Ricardo Araújo Pereira fala sobre o seu novo livro, 'A doença, o sofrimento e a morte entram num bar', uma espécie de manual de escrita humorística

TEXTO Mariana Filgueiras

11 de Setembro de 2017

Fenômeno em Portugal, Ricardo agora forma sua plateia no Brasil, onde já lançou dois livros e escreve uma coluna semanal na Folha de S.Paulo

Fenômeno em Portugal, Ricardo agora forma sua plateia no Brasil, onde já lançou dois livros e escreve uma coluna semanal na Folha de S.Paulo

FOTO Divulgação

Quem quer compor música geralmente vai estudar num conservatório, quem quer pintar vai para uma escola de belas-artes, quem quer ser arquiteto vai para a universidade. E quem quer escrever humor faz o quê? É uma das questões que motivaram o humorista e escritor português Ricardo Araújo Pereira a escrever o livro A doença, o sofrimento e a morte entram num bar, uma espécie de manual de escrita humorística recém-lançado pela Tinta da China Brasil. Fenômeno absoluto em Portugal, onde assina colunas de TV, rádio e revista, Ricardo agora forma sua plateia no Brasil, onde já lançou dois livros e escreve uma coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo.

Com a experiência de quem faz rir milhares de pessoas praticamente todos os dias – sem auxílio de figurino, maquiagem ou cenário, mas apenas com as palavras, vale ressaltar –, Ricardo revira, em seu livro, as entranhas dos textos de humor para mostrar como funcionam. Em capítulos divididos pelas estruturas comuns ao gênero, como a “oposição”, o “exagero” ou a “repetição”, o autor enriquece as lições com exemplos que vão de Molière a Seinfeld, da Bíblia a Fernando Pessoa, de Shakespeare a Woody Allen.

“Sobre quem quer escrever pesa ainda uma espécie de mito romântico segundo o qual isto (o humor) não se aprende”, diz Ricardo, explicando por que resolveu ensinar o que sabia aos leitores. Pouco estudado por filósofos, e sendo sempre associado ao mal, à frivolidade e à loucura, o humor não mereceu nem atenção divina, lembra o humorista: “Quando lemos os evangelhos, constatamos que Cristo chorou duas vezes, mas não riu nenhuma. O modelo de ser humano para grande parte da humanidade nunca riu”.

Em conversa para o site da Continente, Ricardo faz duras críticas ao “politicamente correcto” que engessa os humoristas, tenta entender por que o humor mais qualificado hoje em dia acaba indo para a TV e explica qual a grande vantagem de ser humorista em países como Portugal ou o Brasil.

CONTINENTE O seu livro A doença, o sofrimento e a morte entram num bar já vendeu 40 mil cópias em Portugal. Por que acha que tanta gente está curiosa pelas entranhas do humor?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA O tema talvez seja intrigante: por que é que a gente ri? É um pouco bizarro: trata-se de uma convulsão física razoavelmente violenta que abala precisamente as únicas criaturas do mundo que sabem que vão morrer. Há qualquer coisa muito estranha nisso.

CONTINENTE É um livro que estava prometido há um ano. Foi difícil escrever sobre a escrita do humor?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Sim. É difícil escrever sobre escrita – e sobre escrita humorística mais ainda. É fácil sentirmo-nos ridículos: a conversa sobre humor não costuma ter graça.

CONTINENTE Logo nos primeiros capítulos, vê-se que a sua pesquisa sobre o humor é muito extensa e acurada. O humor sempre foi um objeto de estudo para você?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Quem, como eu, tenha tido desde sempre um interesse especial na atividade de fazer rir os outros confronta-se com uma dificuldade: não tem aonde ir aprender o ofício. Isso não acontece com outras artes: quem quer compor música vai para o conservatório, quem quer pintar vai para a escola de belas-artes, quem quer ser arquiteto vai para a universidade. Mas sobre quem quer escrever pesa ainda uma espécie de mito romântico, segundo o qual isso tal coisa não se aprende. Isso é ainda mais verdadeiro para quem quer escrever textos humorísticos. Por isso, não temos alternativa senão construir o nosso próprio curso: lendo, vendo o modo como os outros exercem o ofício.

CONTINENTE Em um dos trechos do livro, você diz que a filosofia ocupou-se pouco do humor – poucos filósofos, como Platão, Sócrates, Aristóteles, teriam refletido sobre o tema. Por quê?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA O riso sempre teve má reputação. É frequentemente associado ao mal, à frivolidade e à loucura, por exemplo. Talvez por isso não constitua um assunto “sério” sobre o qual os filósofos sintam que devem se debruçar. É possível que também haja razões religiosas. Quando lemos os evangelhos, constatamos que Cristo chorou duas vezes (quando viu Jerusalém e quando Lázaro morreu), mas não riu nenhuma. O modelo de ser humano para grande parte da humanidade nunca riu e, durante muito tempo, houve quem concluísse, por causa disso, que Deus considera este mundo mais apropriado para o luto do que para a alegria. O livro O nome da rosa, de Umberto Eco, é, em parte, sobre isso.

CONTINENTE Você explica o humor a partir de alguns traços: o exagero, a imitação, a oposição, a repetição etc. Há algum desses que seja natural no homem? Somos todos naturalmente engraçados?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Há, no olhar humorístico, uma noção de jogo com o mundo que é parecida com a que a gente identifica na relação de uma criança com os brinquedos: uma vontade de experimentar, de deformar, de mudar as peças para outro lugar. Talvez aquilo que nos surpreenda com mais frequência seja a oposição entre duas coisas muito diferentes. Somos o único animal que se impressiona pela diferença entre o que as coisas são e o que deveriam ser.

CONTINENTE Os exemplos mais contemporâneos que você cita no livro são séries de TV. É onde está o melhor humor hoje?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Provavelmente, é onde está o dinheiro e o público (embora cada vez menos). Acho que foi Harold Bloom quem disse que, se fosse vivo hoje, Shakespeare seria roteirista de TV. Nos EUA, há quase um circuito que todos os maiores roteiristas de humor percorrem: formam-se em Harvard e dão nas vistas escrevendo para o Harvard Lampoon, o jornal satírico. Daí, vão para o Saturday night live, depois para Os Simpsons, depois para o programa do John Oliver… Mesmo os grandes humoristas que costumamos associar mais aos livros ou aos jornais acabam tendo as suas obras adaptadas a formatos televisivos ou radiofônicos. David Sedaris e Luís Fernando Veríssimo, por exemplo.

CONTINENTE Em nenhum momento do seu “manual”, você fala acerca dos limites do humor, ou dos temas a serem evitados, se é que existem. O debate sobre o politicamente correto já está feito?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA O debate deve ser feito, mas não cabia neste livro. Recentemente, a propósito do caso Charlie hebdo, perguntou-se se era possível fazer humor com a religião. O próprio papa, apesar de condenar o ataque, disse que não se podia ofender a fé das pessoas. O problema é que cada pessoa tem os seus temas sagrados. Para uns é o seu deus, mas para outros é o seu partido político, o seu time de futebol, a sua família, o seu artista preferido, a sua profissão, o seu hobby. Quando começamos a traçar limites, percebemos que muito rapidamente todos os temas serão interditos.  Hoje, parece-me que há um novo puritanismo: aquilo a que se costuma chamar “politicamente correcto”.

CONTINENTE Como assim?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Fui educado por freiras e padres, e por isso cresci a ouvir dizer: “Isso não se diz”. Não se diz um palavrão, não se deve falar de sexo, não se pode blasfemar. Ao puritanismo da direita religiosa, sucedeu o novo puritanismo, que parte de uma certa esquerda: há determinadas palavras interditas por causa da sua etimologia (por exemplo, mulato ou até denegrir), outras que não devem ser usadas porque são desagradáveis (por exemplo, velho ou gordo) e há grupos de pessoas sobre os quais o olhar humorístico não deve pousar (por exemplo, as minorias). Eu acho que a afirmação “não se pode fazer piadas sobre gays” remete os gays para um gueto. Trata-os como se fossem de cristal, o que é contraproducente, porque é perigoso. Mas, não há piadas estúpidas sobre gays? Há, e eu não gosto. Tenho esse direito. Mas não tenho o direito de proibir aquilo de que não gosto. Uma declaração homofóbica causa mais dano à reputação de quem a profere do que ao grupo que pretende ofender. Os gays sempre transformaram – e bem – um insulto numa forma de resistência. A palavra queer era uma ofensa. Hoje, designa uma área acadêmica: os queer studies. Nesse ponto, parece-me que estou quase sozinho. Parte da direita condena o “politicamente correcto” porque acha que a ignorância, a falta de educação e o ódio devem ser celebrados. Parte da esquerda acha que devem ser proibidos. Eu acho que não devem ser celebrados nem proibidos. Salvo raríssimas excepções, responde-se a palavras com palavras, e não propondo silenciar quem as profere.

CONTINENTE Você acompanha a avalanche de piadas que os brasileiros têm produzido em meio a esta crise política?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA A imaginação do povo brasileiro é lendária. Uma vez cheguei ao Brasil e havia passeatas contra o preço dos transportes públicos. Uma das palavras de ordem era: “Ah, que vergonha, o busão está mais caro que a maconha”. Magnífico. E uma crítica justa, porque a maconha tem potencial para nos levar muito mais longe do que qualquer busão.

CONTINENTE Em episódios como esse, em que o público responde a uma tragédia com o mesmo nível de comédia, sua tese sobre o humor como uma espécie de vingança do mundo só se confirma. É assim também em Portugal? Ou você acha que há algo que diferencia esse tipo de humor rápido da internet entre brasileiros e portugueses?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Acho que é assim em toda a parte. Costuma dizer-se que o humor é mais requisitado em momentos de crise. A vantagem de fazer humor em Portugal e no Brasil é que os nossos países estão sempre em crise. De qualquer modo, o humor tem muito pouco poder. As coisas más permanecem. Acontece apenas que são um pouco mais fáceis de tolerar, se formos capazes de rir delas. Jesus Cristo dizia que os pregadores eram o sal da terra: espalhando a palavra, impediam a corrupção. Os humoristas são o orégano: não impedem a corrupção, mas dão-lhe um saborzinho mais agradável, para que ela seja mais fácil de engolir.

CONTINENTE Qual é o traço mais curioso que te salta aos olhos neste furacão político brasileiro?
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Impressiona-me que, no Brasil, a política esteja ausente da discussão política. A luta política transforma-se apenas em luta. Há conversas sobre o Fla-Flu mais sofisticadas e menos sectárias. Mas o mais assustador talvez seja isto: o atual presidente é acusado de corrupção e organização criminosa. A antiga presidente é acusada de manipular ilegalmente as contas do Estado. Outro ex-presidente é acusado de lavagem de dinheiro. O candidato derrotado na corrida à presidência é acusado de ter recebido propinas. Para falar apenas em alguns. Ou seja, os brasileiros sabem que aqueles que os governaram, governam e poderão vir a governar são todos acusados de ilegalidades. Imagino que seja aflitivo.

CONTINENTE Afinal, o que acontece quando a doença, o sofrimento e a morte entram num bar? A gente lê o livro até o final à espera da resposta…
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Quando a doença, o sofrimento e a morte entram num bar, ou seja, quando a gente submete o que é triste a uma fórmula humorística, a tragédia transforma-se em comédia. Essa operação oferece uma redenção muito insuficiente: a doença, o sofrimento e a morte, na prática, acabam vencendo. Trata-se apenas de não deixar que a tragédia tenha a última palavra. Não é muito, mas nós não temos muito mais.

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