Ficção

Conversa terra & ar

TEXTO André Capilé

30 de Dezembro de 2020

Ilustração Mozart Fernandes

[conteúdo exclusivo Continente Online]

1.
[o sol baixa a guarda. a luz, parda, espraia pela areia. memória que tem é o marulho do abandono. tendo aprendido a paciência do corpo coçando até ferir, aguarda  chegar. lembra de como é barulhento, ele, o que vem, em cada gesto largo à banca de rei. estranhará o chamado, decerto. seu espírito matuta o senso de justo, que é de dar medo, quando o raio escolhe a casa. se é da vida piar miúdo e dar passo medido, temperança não é de ser covarde ouvir do trovejo a ordem de encontrar abrigo. as ideias, muitas, não fixavam, não. todavia ficava detido na impressão móvel das águas assistindo o remoinho do cardume insistindo em se morder às voltas pelo pão dos dias. distraídos, nem viam chegar a boca, a maior, de assalto sem escolher entre os prontos e as ovas. os ciclos traíam de bulir com força a força do mais pequeno que faz o mais grande engordar. os ciclos. uns nutrem esperança pela fruta de vez, outros pela madura,  por nenhuma delas. conhece a pacatez devota na viragem do fruto no chão. dos ciclos nem o tempo suporta a pústula da espera, move-se conforme o vento das estações, e elas chegam.]

2.
o chiu sabe como decidir é duro, claro que sabe. agora entrou na cisma de mandar recado e me quer ver, e eu não sei não; se alguém me tem esperança, campo aberto é onde marco. se mel, com sua horda de espelhos infensos, estivesse aqui, facilitava a partida sem muito pensar, ela me ensinou que quem dorme com amores difíceis nenhuma escaramuça atocaia. dizem que andou com cariá aprendendo ronda, depois cuido disso. de agora, o chiu. se vier crispado, rolo pedreira, nem dó. cada qual que cuide suas quizilas, engulho só de pensar ter que assistir de perto o erisipela. mas há em tudo mais lado, também há o de lá dele. se preferiu silêncio, disso não me coube julgamento. quando a vila dividiu, tomei pedaço à dúzia. aqui de cima tomo conta. temos comércio, afinal. houve um rebuliço lá na beira d’água, justo onde marcou. não podia fazer nada, nem não era decisão minha. cuidava outra sorte da sobrevivência de nós. equilibrar as balanças, ser mais que o fiel, o peso nos pratos. dar peso à dupla lâmina das asas do machado não deixa em pé nem o ladrão em fuga, menos ainda o inocente útil distraído. o chiu sabe como decidir é duro, claro que sabe. vou terminar as tranças de corda nos cabelos e sigo para saber, afinal, com quanta areia se faz terra.

3.
[desconfiança é pelo arisco no sentido. o atavio da conversa, para que não desvie, menta. é vício. virá com pelo em trança, se sabe do que gosta o aparecido. vai haver palavra dita sem maginar, de certeza. o costume prepara. a língua não pode o falhanço. se gaguejar, encontra e desencontra, descarrila. tempera a boca com canela, cravo, pimenta da costa. esquenta o hálito. nenhum dizer cuspido. também por isso o silêncio. ir mais dentro no cabimento de existir na demuda. quando a semente explode em muda, feito quem troca a pele contra o sol a pino, deixa estar. ainda esse o trago da espera, deixa estar. a brisa já mudou a direção. o vento, quando tem vontade, não é destino domável. se o tempo é da ventania, desconfiança é pelo arisco no sentido. o pé de caminho já caiu no mundo atrás da fuga dos espelhos; foi por dor o segredo ser roubado por mel. o silêncio, que é bom aliado da noite, não deixa que a areia esfrie na passada. um inteiro coração de boi é ouvido pela pisada.]

4.
então, aqui estamos. eu & tu. não somos semente da mesma vagem, mas se me chama, deve ter motivo. há muito não te vejo, imagino que seja sério, espero que seja sério, tenho o que fazer lá do alto, você sabe. não vim tomar sua hora cara. é de necessidade. todavia, era cabida mais cordialidade. se você é rei nos astros, cá embaixo não sou somenos rei, se é que importa realeza, coroa, diante do que morre. é muito do esquisito como trata as coisas, desde sempre. a gente era moleque e você já tratava tudo pelo sinistro. essa lamúria de finito, por favor, nem comece. sua pele parece melhor, ao menos no escuro. não é que o sinistro atraia, ele existe, convivo com o contraditório, não com a finalidade. você é que sempre correu e não sabe o choro dos que ficam. e ficam, até o fim. a mim não me parece que veio até aqui só pra confabular feito rábula do fim do mundo. confesso que já te achei melhor nessa gincana. mas me cobrou o pendão de ser cordato, então vamos lá: soube que teu cachorro morreu. como era mesmo o nome dele…? lázaro. isso, lázaro. é, , lamento… iungo, esse é meu nome, detesto desde criança que me chame a chiu. para. não vai colocar coisa de criança na conversa, vai? eu sempre achei que teu silêncio era falta de mãe. eu tive, eu tenho mãe. a minha e a nossa. mas não é essa a conversa… não, não, vamos lá. há muito tempo não te vejo, ora. gostava saber mais de você, como anda, o que tem feito. lembro de você mirradinho, só o caroço, com mãe te tratando a casca de pele à casca de papaia. tem visto os outros? sim, eventualmente. as coisas cá na beira da areia costumo saber, me chegam logo. cariá, você conhece, não para e se faz notícia. é giramundo na ponta dos cascos. pocó é ferramenta, serve a todo mundo, vira e mexe bate a bigorna mais perto de mim. xitu ainda de encanto com papo amarelo, não há muito que fazer. imagino que soube do ocorrido, mas como sempre, assunto daqui é corda que corre solta pra você. não é bem assim, não. há outras contendas que preciso acertar. anda mais difícil de conter os levantes. já não dá muito pra saber com quem se come. tomar decisão é duro cabresto… sei bem como faz a decisão difícil, zazi, sei bem como faz. teu problema não é o levante, mas não duvidar a culpa, não dividir inocência. culpa, inocência, mesma moeda lançada no ar. bom, vou te poupar de agulhas e camelos, não veio aqui pra isso. também vim, mas não por isso. soube que mãe voltou, não soube? salvo engano não era ela o assunto, mas soube sim. não veio ter comigo. ainda. senti o zum zum zum do que ela tem feito e pensado. não digo que meu desejo não seja ver isso parado. há coisas demais em jogo, inclusive a ordem, pesos e medidas… zazi, você tem notado que o vento mudou? que os ares são outros? não diria melhores, não. mudados, só. se não cuida, vai acabar na forca. a loucura que a ventania traz também é doença, tem sido assim esse tempo, você não consegue se atentar? o cheiro de podre que tem sentido, manomeu… de podre entende é você. se há vida fértil na praia, na pedreira, nas bordas do rio, no mangue e na mata funda, foi meu fogo de venta que gerou e tenho gerido. não carecia, não, você vir de alma penada aqui dar aviso, logo o senhor que nem cachorro teve cuidado, valha-me o raio que te parta! cá comigo, não. é a doença, zazi. é a doença que chega e ela não é tua regência, vem no vento, mas não é tua regência. o levante que tem te assustado, a brasa que te aplaca, é o sopro que alimenta o exército de fantasmas. anda tão cego que nem viu os espelhos em fuga. nem o pombo, teu pai, vai poder intervir dessa vez. sai daqui, , cala-te boca e sai daqui. de casa, eu sei bem, da vila eu sei é mais. são doze casas corridas que vejo lá de cima, melhor nem tentarem. entre rosas e socos, sou o inferno da pedra caindo lá do firmamento. se há um corpo quente nessa terra de , esse calor é meu, o peso do meu coração quando bate, bate justo. pra mim essa conversa já deu. a noite só se serve de quem se arrasta. lá de riba eu sou clarão e até doença corre da luz. até mais ver, chiu. e que lá se demore. se é assim, assim é, não tem parlatório que te convença. fico mais aqui, mas aviso: há quem trabalhe a noite, espero que tenha escudo, pois à noite elas fazem moradia nos topos das árvores, a noite serve aos que se fantasmam. lembra dessa, meiomano, lembra dessa na subida de volta.

5.
[a lua, continente longe, escurece. sobe ladeira em passo pesado. atravessa de chispa marimbondo, ê raio. os olhos dele, um brasil só. arte do imponderável, não tem chiu no mato da subida, só vento virando. não há bandeiras. o estômago que arde é só de quem se alimenta a fogo. o rei na barriga. pulmão, pulmão de corredor. como pensa, não faz. nunca correu. tentava cada lado de olho e não via. ouvia era bulha, era farfalho, era zangaria, barulho de tuju, de caburé, mas ver, não via. olho afogueado e seco. fedia a medo. nem voz mais tinha. rimbombo de grito, acabou. fedia a medo. era loucura irrespirável queimando. queimando todo. pensava no que conseguia, não era justo. carreira que caía. tropeça, levanta, tropica, se arranca, cai pelas tabelas, nas tamancas e rola ladeira abaixo, mais pesado que passo dado e bate a cabeça no tronco firme da cola, a que dá fruto da vida. “sai, bruxa”, murmura. tudo que fica escuro, pelo claro, é sombra. a sombra dela que vem. a cabeça varia. se agarra no capim suado. escorrega. as tranças vão se enroscando pelo pescoço, feito cobra de amargura. afoga aterrado. o ar, mais que o ar, ar, arrepio vermelho na frente da fuça. veio a serena ver o rei de nenhum reino, nenhum medo, nenhuma promessa. “me leva, senhora, me lava”. a noite pende da vara do orvalho, o dia logo vem. será de céu nimbo civil de sonho. “a vida vai ser justa?” quem for lembrar, vai saber a procura. quando a lua se escondeu e veio  no canto dos galos, saíram em busca do corpo do raio. acharam pedreira marcada. lá de baixo a terra gritava: , virou talismã.]

6.
mãe, eu vim dar aviso, mas a fome foi maior, como a de quem bebe da loucura pela medida justa e sufoca. na vida não me cabia, senão o calor da palha. queria eu o descanso de ser chamado como a terra que sangra, mas se foi o naco concedido, aceito. uma coisa que me ensinou, ainda miúdo, quando a mais velha me deixou na beira do mar, e me tomou a senhora no braço quando meu corpo era comido na areia, foi que só as crianças não veem a cara bruta da serena. eu, quando tinha medo, lembrava do grão duro do milho que no calor é transformado em flor. falei com ele, mãe, falei. a terra é lenta demais para ensinar. o céu é rápido demais para aprender. talvez o mar, talvez só o mar ensine vazio. esperar a esperar. os que virão, tomara, serão crianças.

ANDRÉ CAPILÉ é poeta, professor, tradutor & performador. Tata Kambondo de Kavungo, confirmado para Kongobila. Publicou os livros de poesia: rapace, balaio, muimbu, chabu & rebute; a plaqueta de orelhas curtas, paratexto; traduziu, recentemente, pela Editora Bazar do Tempo, Não digam que estamos mortos, de Danez Smith.

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