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Esse ano promete

TEXTO Karina Buhr

15 de Outubro de 2020

Ilustração Karina Buhr

Foi fazer o mapa astral e recebeu o laudo: áries, ascendente escorpião.
Achou estranha a face da astróloga e perguntou se isso era bom. A resposta foi aquela coisa né, não existe bom e ruim.
Rapaz, existe sim, ó!
E sabia que a astróloga estava dando volta, mas o que ela queria mesmo dizer era:
Rapaz, se desse pra trocar...

Voltou pro estúdio meio noiada, bombando o ar-condicionado no fim do mundo, incêndio pra baixo, pra cima, dos lados e no meio do país em que fica localizado o estabelecimento.

Recebeu as faixas pra botar as letras e reparou que os títulos que tinham dado não tinham nada a ver com o clima das músicas, as capas também não, as ideias que ela tinha tido na véspera não iriam ornar, menor sentido, nada combinava com nada e não tinha o que fazer, não sabia o ponto zero de quem criou as bases pra tentar pelo menos entender como chegaram naqueles finalmentes e também precisa terminar tudo ontem e hoje já é depois de amanhã.
Escreveu tudo na louca, rezando pra alguma coisa funcionar, dois dias pra criar, decorar, gravar, arrasar no resultado. Em menos de um dia mixar, masterizar uma semana depois.

Seu filme é lindo, a trilha é essa aí em anexo, se prestou me diga.
Agora paciência é uma coisa que realmente está em falta no seu modo de conduzir as coisas. E nem tem sido ruim, viu, não vou mentir, é a falta da danada da paciência que está fazendo alguma coisa girar ali.

Lavou cada embalagem com cuidado, enxaguou bem direitinho uma por uma, cada cantinho como se estivesse completamente infectado, viu que assim que tem que ser, pensar como se fosse um troço atômico, pra ter medo mesmo, pra não cair na normalidade e relaxar e, no esperar dos cinco minutos pra desinfetar dos demônios invisíveis, esqueceu delas no quintal. A banana apodreceu, o tomate pior, o resto murchou, deu formiga, azedou.
A semana promete.

Tentei comprar um envelope tamanho bom pra levar pra ela, mas não tem, está faltando em toda loja, queria ir lá na lojona que tem tudo, mas medo.
Gravei, só eu e mais um no estúdio, mas medo. Medo mesmo, bem grande, quem diria, de gente.
Voltei orgulhosa, tranquila e esperançosa, mas já passou.
Ponto zero, aquele que ela não encontrava ali antes, aqui se apresenta, bem limpinho, pra mim, cabeça vazia, pronta pra encher de ideia, mas vontade está faltando.

São tantos mortos lá fora, tantos, tanto aqui dentro. Um lencinho não dá pra enxugar o rio de lágrimas que eu tenho pra chorar. Essa letra podia ser dela, vou até falar pra ela, se bem que não, vou falar é nada.
A internet lá deve de estar bichada ou talvez ela tenha alcançado a iluminação, vencido o vício e está bem plena, trabalhando off-line, inspirada, irradiando beleza no som.
Mas eu precisava da mãe on pra avisar de mais uma morte, ultimamente virei pomba correia de negócio de morte, acordo cedo, fico sempre sabendo primeiro e às vezes tenho que fingir que não sei pra não ter que seu eu, de novo, a dar a notícia de mais um falecido.
O mundo vai trocando a casca, é da natureza, e os pedaços que vão não vão ficar faltando, já que se espalharam há tanto tempo em todo vento que venta por aí.
Isso na poesia, né, porque na vida real morreu e sobrou pra mim de novo desapontar viventes com a informação.

Mas não tem só notícia de fim não, tem começos de tuia mesmo, se for tirar só pelo meu setor tu já vê o movimento. Pense numa esperança!
Esse ano promete.
Mas não cumpre.

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