Matéria Corrida

Coisas ao contrário (continuação)

TEXTO José Cláudio

04 de Dezembro de 2018

[se não leu a primeira parte, clique aqui]

Quinta história: A cocheira.
Como sempre não pensei em nada. O desenho também é quase nada. Fui puxando a linha que saía da pena quase sem olhar mas Hermilo inventou a história – ou “estória”, como escreveu neste caso – tão sem rumo e também puxando por uma perna o que lhe ia passando pela mente de modo tão irresponsável quanto a linha seguida pela pena no desenho. Se a história se originou do desenho ou se o desenho veio depois, tão inconsistentes e divagatórios ambos, não seria possível adivinhar. Imagino que o escritor ao pegar na folha de papel, também não tinha a menor ideia do que iria escrever, deixando que desenho e escrita se encontrassem ao bel prazer, quase sem a sua interferência, como se em vez de contar um acontecido bastasse fazer suposições, sem compromisso com verossimilhanças. Como se lembrasse vagamente de alguma coisa que não sabe se poderia ter ocorrido. Só nos restando sofrer, umas vezes agente ou instrumento, outras paciente, vítima sempre. Por isso não cabe procurar lógica nas histórias. Nem nos desenhos.



No sexto desenho, Eleições, Hermilo captou bem o burburinho de um ambiente eleitoral, como deve ter visto muito no interior, na sua Palmares ancestral na zona da mata sul. Ele mais do que eu, também da mesma mata sul, porque mais velho, e esses anos antes de nos entendermos de gente por poucos que tenham sido parecem muitos, de coronéis se digladiando sem ordem nem lei, clima de brutalidade que percorre o livro, os desastres da natureza, como se o mundo fosse regido por um deus caprichoso e perverso.



Sétima história: O mateus. Nada tem lógica, como a vida nos canta todo dia. Nada é prêmio ou castigo. Para os crentes resta a teoria da graça, que não nos é dada por merecimento. Como a vida. Inexpressivo que seja, o desenho cai, é capturado pelo mundo hermiliano, até talo de capim vira mateus de bumba-meu-boi e já entra na história em plena ação, o próprio texto dançando no compasso do ganzá. Eu acho que ele mal via o desenho e à primeira ideia, desse certo ou não, ia para o papel. E aí era só batucar o resto. Tanto faz em Palmares, beirando o Rio Una, que significa preto, como debaixo da cajazeira no boi de Zóro, beira do Rio Ipojuca, que significa lama podre. E meu desenho não tem nada com isso, digo eu, tanto quanto a história dele dirá.



Oito. A família. Pergunto-me se Hermilo não escolhia de propósito o desenho mais reles dentre os que eu oferecia. De fato a ideia era de um papel rabiscado com alguma coisa qualquer que justamente desse ideia de incompleto, de partes não concordes, como quem diz: quero ver como ele vai se sair dessa. Mas Hermilo nem-nem, não se deixava tocar pelo maquiavelismo, que só estou formulando agora. Pelo contrário, isso em vez de causar dificuldade parece que o deixava completamente livre de qualquer compromisso. Eu de cá dizendo dane-se e ele de lá vá às favas. Em todo caso, o fato de um escritor do porte de Hermilo se deter nessa parceria, proposta por ele, demonstra o imenso respeito que ele tinha por mim e que fez questão de demonstrar, nesta como noutras vezes. Há quem vá criticar a reverência com que me refiro a artistas com quem convivi, eu hoje bem mais velho do que eles quando tivemos essa convivência, e até mais velho do que na idade em que alguns morreram. Essa reverência parecerá exagerada. Não é. Outra coisa que vale salientar é que não me meto a crítico, embora, como disse Lionello Venturi, você pode achar crítica de arte em tudo, até num rótulo de comida. Quanto à literatura, nem sei para onde vai.

Nove. Barriga-de-ouro. Para confirmar a regra, esse foi o único desenho que quando eu estava fazendo me lembrei de uma história que saiu no jornal, muita gente deve ter lido. Aconteceu aqui em Pernambuco, numa cidade do interior, década de 1960 ou depois. Um indivíduo pediu dinheiro emprestado, uma quantia vultuosa a um amigo e, passado o prazo do pagamento, a pessoa que emprestou o dinheiro, o credor, precisando, começou a cobrar. Dinheiro emprestado faz inimigo. Foi o que se deu. O miserável que recebeu o empréstimo pegou o dinheiro que devia, matou o amigo e enfiou-o na barriga. Pensei que Hermilo se lembrasse dessa história e queria ver como ele iria recontá-la. Mas pelo seu texto não se lembrava nem devia estar por aqui quando o fato ocorreu. Criou uma história onde não faltam suas personagens palmarenses, reais ou inventadas, seus coronéis, suas safadezas, seus tipos populares, sua irreverência em relação à classe dominante, antepassados seus, na decadência vertical em que caiu a sua família, como ele me contou, de usineiros a empregados de engenho, sendo que um seu irmão nem aprendeu a ler, história cujo desfecho é à moda das novelas exemplares, “dinheiro e merda”. Aliás todas as suas histórias são pretexto para falar das coisas e pessoas de que gosta e de que detesta apesar da sua capacidade de aceitação de tudo que não presta neste mundo. Tudo são honras da casa. Como pintor de uma paisagem em que nada é omitido e pintado com o mesmo gosto, como existe na natureza.

Dez. O boi. Nascidos e criados em cidade do interior totalmente encravadas e dependentes do mundo rural não nos foi possível escapar desse fato. Cada vez mais constato minha origem rural, embora nascido e criado bem no centro da cidade de Ipojuca, e assim Hermilo em Palmares, cidade bem maior na época, hoje Ipojuca pode-se dizer Recife, zona metropolitana. No desenho só dava para discernir um boi, ele então inventou uma história que poderia ser a do bumba-meu-boi. Entrou pela perna do pinto, passando pela do mateus, saiu pela perna do capitão do boi da Mustardinha e assim termino essas desnecessárias explicações, meu canário morreu uô, ô lelê ô bambu, ói a morte, digo, a vida, atrás de tu.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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