Matéria Corrida

D. Nancy (1924-2018)

TEXTO José Cláudio

11 de Junho de 2018

D. Nancy retratada por Mario Agostinelli

D. Nancy retratada por Mario Agostinelli

Imagem Reprodução

Foi não foi, morre uma divindade desse Olimpo que vamos formando durante a vida. Não lembro bem a primeira vez que entrei em casa do pintor Carybé (1911-1997), de nacionalidade argentina, nascido em Lanus, na província de Buenos Aires, mas brasileiro, como prova a sua obra. Suas últimas palavras quando ia entrando no candomblé de Senhora, onde estive tantas vezes com ele, uma vez com Pierre Verger, foram: “Puta qui pariu: mi fudi”.

Deve ter sido quando fui trabalhar a primeira vez com ele no mural do Centro Carneiro Ribeiro, na Caixa d'Água, perto do Pau Miúdo, Salvador. Marcamos 7 horas da manhã na casa dele, 2º andar do sobrado do espanhol Jesus, Largo de Sant’Ana, no Rio Vermelho. No térreo era a padaria de Jesus, que morava no 1º andar com a família, e no 2º Carybé.

A família de Carybé se compunha então, dele claro, sua esposa D. Nancy, que ele chamava “Nânci”, como talvez era chamada na Argentina, terra natal de ambos, e o filho Ramiro, também nascido na Argentina, em Buenos Aires. Eu me arranchava no atelier de Mário Cravo, ali perto, na Avenida Garibaldi, hoje extinta, justamente com o gaúcho Geraldo Trindade Leal e o italiano Inos Corradini, que mudou depois o nome para Corradin, além de Agnaldo, ainda ajudante de Mário Cravo, principalmente nas peças em madeira, exímio na lavração a machado. Mário trabalhava numa magnífica Capoeira, uma peça circular, toda ao rés do chão, como jogava o capoeirista Traíra, que às vezes aparecia por lá e de quem fiz um retrato a óleo, cerca de 60x50cm sobre eucatex ou compensado. Carybé elogiou. A Capoeira de Mário devia ter de um a dois metros de diâmetro, num miolo de jaqueira amarelo claro.

Eu fiquei esperando embaixo na calçada, na rua, na porta que dava na escada de madeira e ia direto ao 2º andar, mantida encerada por D. Nancy: certa vez, eu vi, Carybé escorregou e saiu batendo com as costas na quina dos degraus, fez a volta no patamar entre o 2º e o lº andar onde a escada formava um ângulo, e só conseguiu parar quando bateu com a bunda no cimento na entrada da rua. Ele era alto, atlético, felizmente não teve nada. Estávamos somente ele e eu na ocasião. Ele saiu primeiro, eu fiquei olhando cá de cima sem poder fazer nada.

Voltando ao primeiro dia. Eu esperando na rua e Carybé me esperando em cima. Até que cansou de esperar, desceu e me encontrou na porta da rua. Perguntou se eu já tinha tomado café, eu disse que não, ele mandou subir. Subimos. Os outros já tinham comido e eu fiquei sozinho na sala de jantar. Não sei se foi Carybé ou D. Nancy que botou de novo a mesa. Estranhei uma tigela grandona de doce na frente do meu prato. Pensei: “Esses estrangeiros são mesmo diferentes: onde já se viu comer uma quantidade dessas de doce no café da manhã! Mas se botaram, é pra comer. Não comer seria falta de educação”. Só no outro dia vi que era uma tal de geleia, que era só para passar no pão um pouquinho feito manteiga. Não sei se D. Nancy notou que eu tinha batido a tigela toda. Sempre que lhe falo disso, ela acha a maior graça.

Fora uns poucos amigos mais íntimos, na Bahia todos chamavam “Nancí”. D. Nancy era muito bonita de rosto, de lábios excessivamente grossos. Quando Carybé mostrou o retrato dela em preto e branco, julgaram tratar-se de uma negra. Certa vez ela estava sentada numa praça em Miami, um hippie passou e disse: “Beautiful lips”. Há um retratinho dela onde se vê bem isso, de autoria do pintor peruano Mario Agostinelli, que eu cheguei a conhecer, falecido no Rio de Janeiro bem antes de Carybé. Mas Carybé me contou que conheceu D. Nancy, não sei se em Salta ou Buenos Aires, primeiro a perna, saindo de um carro, e pensou: “Vou me casar com essa mulher”. Antes de ver o resto do corpo ou a cara. Ela era 14 anos mais nova do que ele.

A mãe de D. Nancy chamava-se também Nancy e era americana. O pai, argentino, família de fazendeiros, foi estudar nos Estados Unidos e lá casou, tanto que os primeiros irmãos de D. Nancy nasceram nos Estados Unidos. Sendo a primeira filha nascida na Argentina, pespegaram-lhe o nome de Nancy Argentina, nome que ela detestava. De modo que seu nome completo ficou Nancy Argentina Colina Bernabó, este de Héctor Julio Páride Bernabó, vulgo Carybé, apelido que ele próprio não sabia direito de onde veio, se do nome de um mingau ou um peixe, no tempo que era escoteiro no Rio de Janeiro. Parece que estudou o primário no Rio de Janeiro.

Eu às vezes ficava tomando conta da casa de Carybé quando ocorria de tanto ele quanto D. Nancy precisarem se ausentar de Salvador, como quando chegaram Arnaldo Pedroso d’Horta e família, Carybé em São Paulo e D. Nancy na Argentina. Outra ocasião Carybé me chamou para dormir em casa dele, sem dizer o motivo. De manhã, acordou muito cedo, antes de o sol nascer. Ramiro, 6 anos, já estava vestido. Descemos. Atravessamos o Largo de Sant’Ana por trás da igrejinha, passamos a balaustrada e continuamos por cima das pedras mar adentro. Na ponta da pedra, alguns metros acima do nível do mar, ele meteu a mão no bolso, tirou um punhado de moedas, botou uma parte na minha mão e outra na mão de Ramiro. Até aí, a gente sem saber de nada. Então jogou no mar as moedas que tinha na mão e nos mandou jogar também as nossas. Só então falou: “Agradecimentos a Iemanjá pelo nascimento da minha filha Solange”. Com pouco chegou D. Nancy trazendo nos braços uma menininha careca mas se vendo que bem lourinha, já com um brinquinho de ouro, tamanho duma ervilha, em cada orelha, anunciando que ela era de Oxum. Essa, pois, a iconografia da imagem de D. Nancy nesse meu Olimpo.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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