Matéria Corrida

Darel 4/6

TEXTO José Cláudio

02 de Setembro de 2019

Litogravura 'Luz negra III', por Darel Valença

Litogravura 'Luz negra III', por Darel Valença

Imagem Reprodução

O drama dareliano está para além da carteira de identidade ou limites geográficos. Interessa-lhe o problema da maldade, do anjo decaído, da insensibilidade. Por mais que pinte corpos eróticos, ele é um pintor de almas, é um pintor de Cristos, de crucificados, de vias-sacras. Crucificação de que não abdica, crucifixo que reivindica para si, ainda que não se trate de fé religiosa. Mas se não é fé, é cultura religiosa, que vê o homem, e não os homens ou países ou raças que são circunstâncias e não lhe — ao homem universal, Cristo ou Darel — servem de desculpa. O homem para ele é um só e é a esse homem ético que ele chama à responsabilidade, olha nos olhos, acima ou através de quaisquer barreiras epistemológicas. Esse homem dareliano tem uma idade — adulto —; e um tempo — a eternidade —. Também classe para ele não conta — a não ser talvez no que tenha a ver com a miséria da alma, se é que tem —: mas de qualquer maneira será o caso isolado, e não a classe, que o toca; ou a classe toda ou todas as classes, mas sempre vistos os indivíduos, de um em um, como para Deus. Por isso acha arte social “careta”. O Diabo, vara toda concepção de classe. Darel considerará que a grande luta não é essa. E seu olhar duro estará ali, incorruptível, sob qualquer regime. O assunto é o pecado. No escuro do confessionário ninguém tem nome, época, cara ou classe. Não é nem o que o homem fez contra si ou seu semelhante. É o que fez contra Deus; em que ponto trocou a primogenitura por um prato de lentilhas, o reino por um cavalo, o eterno pelo temporal; em que ponto quebrou em si a semelhança com o Criador.

Na sua casa, em São Conrado, surpreendeu-me o atelier, ou melhor dito, abaixo do atelier, um compartimento de um metro quadrado — pelo menos foi o que me ficou na memória —, sem porta nem janela, sem espaço nem para botar uma cadeira de onde ele pudesse estirar o braço para pintar, onde pintava seus pastéis, de pé com a cara encostada no quadro, no ponto mais baixo do terreno total da habitação que poderia ser dividido em três planos: casa, atelier e masmorra: casa ampla, terreno amplo, mais para casa de fazenda do que de cidade, e atelier também de bom tamanho. “É aqui que eu me escondo”, ou “me tranco” — não lembro bem a expressão — “para pintar”, disse. Quase não cabíamos os dois naquele espaço, quase não dava para fechar a porta. Tela pregada na parede, fez menção de pintar, como se estivesse com um giz na mão, o punho retraído contra o peito como nos ensinam em colégio de padre a rezar o Confiteor: “mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”. Ele estava ali para depor diante do Absoluto. Como seus quadros, não estava em canto nenhum, senão diante de si próprio. E ia ali vertendo o mel ou o fel de suas imagens como quem defeca, como quem confessa, como quem vive e morre, como quem ora. “Por que ele e não eu?” — deverá perguntar-se —. “Por que a cipoada no lombo dele, e não no meu?” Para qualquer pessoa cristã, embora a cidade ensine a não escutarmos — nem sequer virar o rosto para olhar — a aflição de alguém que esteja sendo assassinado junto de nós, há o dever de nos pormos no lugar do outro, porque o outro para o cristão chama-se o próximo, e o próximo somos nós mesmos, sou eu. O rompimento com o próximo equivale a romper consigo mesmo. Se rompi com o que apanha, aderi ao que bate; entronizo-o em meu coração incrustando-o a mim, e a cada vez em que tento expulsá-lo, tenho de arrancar um pedaço de mim, cortar por baixo um pedaço da carne sã, sensível, junto com a podre da iniquidade, iniquidade esta com a qual somos obrigados a conviver sem sequer nos indignarmos; tendo, a cada dia, de nos sacrificarmos um pouco à podridão. Desculpem o tom de prédica de padre de Ipojuca — ou de Catende, se é que lá já teve algum padre —: mas onde nós, onde Cristo, nesse cotidiano despertar de Gregor Samsa, da Metamorfose de Kafka (um dos autores prediletos de Darel), transformado em barata?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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