Matéria Corrida

Darel 6/6

TEXTO José Cláudio

06 de Novembro de 2019

'Lucas, o cão', Darel Valença, 1956. Reprodução de litografia, 41/110, 34,3 x 24,7 cm

'Lucas, o cão', Darel Valença, 1956. Reprodução de litografia, 41/110, 34,3 x 24,7 cm

Imagem Reprodução

O seu currículo da última exposição este ano na Galeria Alberto Bonfiglioli começa em 1937, quando aos 13 anos (nascido em 1924) é admitido no escritório técnico da Usina Catende como aprendiz de desenhista. Foi Dr. Passos — pai do Luís Antônio que citei no início — quem, um belo dia, sem nunca ter conversado com ele tira-o da medição da densidade do caldo, a leitura do brix no aerômetro (de meia em meia hora, uma semana do meio-dia à meia-noite e outra da meia-noite ao meio-dia, tendo, neste caso, de fazer o café do químico pela manhã), chama-o e diz que vai passar a ser aprendiz de desenhista, achando que ele tinha jeito para desenho.

Abro aqui um parêntese, um parágrafo para, já que temos esse dado de quando, e como, entrou no escritório, dar uma anedota da sua saída. Anos depois, com 17 anos, apresenta-se a Seu Domingos — o gerente da usina, Domingos da Costa Azevedo, filho do Tenente — e comunica a decisão de deixar o emprego para ir-se embora pro Recife, inclusive para terminar o curso ginasial. Seu Domingos levanta-se e andando pra lá e pra cá, batendo com uma botina na outra a cada passada, comenta: “A gente cria esses meninos e quando eles aprendem a fazer alguma coisa pisam em rosas e vão-se embora”. Frase que, num misto de mágoa e alguma admiração, prenunciadora, nos pinta Darel num quadro de Fragonard ou Boucher. Mas voltemos ao menino em que Dr. Passos via jeito para desenho.

Esse jeito para desenhar ele tinha pegado, ou descoberto, com o pintor dos letreiros do cinema de Catende, vendo-o desenhar a lápis histórias em quadrinhos nos talões de jogo de bicho, Darel ainda com sete anos. “Mas isso existe?” — perguntou-se, encantado. Esse pintor, Euclides Francisco Amâncio, natural de Maraial, Pernambuco, nascido em 1912, filho do refinador de açúcar Manuel Francisco Amâncio e Aureliana Maria da Conceição, reside em Olinda desde 1932. É o conhecido Bajado. Perguntei-lhe se se lembrava de Darel, mas esse nome na sua cabeça não tinha registro, embora se lembrasse dos desenhos nos talões, e, ultimamente alguém tenha lhe mostrado um desses desenhos.

Por isso, na Escola de Belas Artes aqui no Recife, ele “insistia em trocar os modelos do professor por fotografias de artistas de cinema” (Frederico Morais, apresentação à exposição da Bonfiglioli) e a televisão aparece tanto nas suas litografias, inclusive a sequência cinematográfica, o quadro-fotograma e a história em quadrinhos.

O tipo de anotação por fotografia não lhe interessa como fotografia em si, ou de per si, tanto quanto pela agilidade dos vários momentos fixados na sucessão das chapas, nessa espécie de cinema parado e de cenas simultâneas, enriquecidas pela convocação de espelhos, tudo para melhor desfrute do espectador, por excelência ele próprio Darel, que às vezes passa sem disfarces para dentro da tela. A ideia do claro-escuro persiste apesar do uso da cor, a luz violenta, agora frontal, de flash, as sombras densas de teatro “giallo”, já agora — mais do que à Rembrandt — à Hitchcock ou Fritz Lang (minha cultura cinematográfica é escassa e arcaica), o medo transformado em suspense na cruza com o erotismo. Veja numa das suas gravuras, entre duas ninfetas, o cão raivoso que só o espectador vê, ou que a inocência delas carrega, oculto, sem que elas próprias disso se dêem conta.

O Darel objeto, o que ele vê no espelho, como a se expulsar de si mesmo, virado modelo: assim ele é o que dá a cipoada (autor) e o que a recebe (modelo, passivo onde o autor se exerce). Vejo-o seis vezes no mesmo quadro, dividido este em seis tomadas, em todas com a cabeça decepada, pernas trançadas com as de uma garota, ela nua e ele vestido, qual um morto na vala comum, de onde ela finalmente escapa, deixando-o só. Lembrei-me de uma passagem não sei se da vida de São Lucas, talvez de algum livro apócrifo, que Murilo Mendes gostava de citar, em que o apóstolo fugiu nu, na nudez da inocência intacta. Talvez Darel sem querer diga ali que é mais fácil nos deceparmos a cabeça do que nos arrancarmos da roupa transformada em nossa pele. No último quadro a figura da moça lembra a da “Expulsão do Paraíso”, de Masaccio (mais até a de Adão, ou uma síntese dos dois). Mas aqui a atitude da moça não é de quem é expulsa e sim de quem escapa, e apesar de pelos primeiros quadros notar-se que ambos estão deitados e foram fotografados os seus corpos refletidos no espelho do teto de algum motel de cama circular, nos três inferiores ela parece que levita ou corre enquanto ele continua inerte e deitado, restos mortais de si próprio, placenta que a vida nova abandona, ou porta, do Inferno, do qual se livra: Darel parindo Darel, este simbolizado pela moça nua, sem compromisso nenhum. “Prefiro errar do que me repetir” — disse em algum lugar —. Prefiro ser qualquer um do que eu mesmo, ou quanto menos eu, mais eu. Quanto mais me tiro de dentro de mim, mais me vejo, mais me alvejo, mais fuzilo esse condenado que sou e que me enfiaram dentro de mim e que eu quero espremer para fora e trazer à luz como um carnegão.

Benvenuto Accioly Lins, filho de João Accioly com a escrava Francisca, deixou fama em Palmares:

“Usina, só Catende;
Caminhão, Treze de Maio;
Seu Júlio no charuto
E Benvenuto no caraio.”

Seu Júlio era comerciante, primava pelos charutos que fumava. Treze de Maio é uma usina de Palmares, famosa na época pela frota de caminhões. Francisca era preta pura e João Accioly tinha olho azul e era branco. Benvenuto saiu crioulo, terminou herdando todos os bens do pai, inclusive a mãe, que era escrava do pai e passou a escrava do filho. Pela fama do avô (“Benvenuto” — diz Darel — “tinha um pau de 30 cm. As mulheres chiavam, corriam do pau dele.”), não é nada demais que as meninas povoem as gravuras do neto: “No final da vida, Cézanne pintava maçãs, Morandi amava as garrafas, hoje eu pinto belas mulheres, belas bundas.” Darel visitou Morandi em Bolonha e perguntou-lhe: “Professor, o que é que está faltando à arte atual?” Morandi respondeu: “Precisa reencontrar a fé perdida na natureza.” Aí Darel tornou a perguntar, mostrando a cidade através da janela: “Mas qual natureza? Essa aí?” E Morandi: “Não esta que vemos, mas aquela em que cremos”. Esse o caminho que Darel encontrou por enquanto, para abranger as duas coisas, avivar a fé na natureza e nele mesmo, perplexo na sua virgindade fundamental de São Lucas, ou de “Lucas, O Cão”; à mesa, da vida como da arte.

Olinda, 30/junho/85

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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