Matéria Corrida

Francisco Brennand (Recife, 1927-2019)

TEXTO José Cláudio

04 de Fevereiro de 2020

Detalhe de autorretrado pintado por Brennand (1997)

Detalhe de autorretrado pintado por Brennand (1997)

Pintura Reprodução

Antes que me esqueça, devo um grande muito obrigado ao pintor Francisco Brennand, maior do que teria coragem se ele estivesse vivo, por ter existido, na qualidade de grande artista de Pernambuco, por me surpreender sempre com apoio de todo tipo, encontrando oportunidade de me valorizar, me causando até sobressaltos, temendo eu se desvalorizasse ele próprio, comprometendo-se de tal modo. É que, diante da estatura moral e artística, nele uma coisa só, não há quem não se surpreenda.

Eu o conhecia desde os meus começos, através da admiração de Aberlado da Hora. Nessa época ele andava pela França, onde estudou com Léger. Hoje é difícil de avaliar o impacto que isso causava. A televisão nos transporta a todos os lugares. Jornais, revistas, nos trazem em cores, quadros e tudo o mais. Naquela época, década de 1950, conviver com quem já tinha ido lá onde as coisas aconteciam fazia grande diferença. Até o acesso a reproduções era fruta rara. No Memória do Atelier Coletivo cito uma visita que fizemos ao jornalista Otávio de Freitas para ver sua coleção Skira. Apesar disso, minha aproximação com o pintor Francisco Brennand partiu dele. Eu morava em Rio Doce, Olinda, quando vi foi ele entrar. Olhou meus quadros pelas poucas paredes e a partir daí nos escrevíamos, ao mesmo tempo em que podia visitá-lo na oficina sem constrangimentos, às vezes levado por Maria Carmen. Apesar da diferença diametral entre a minha importância e a dele, eu com o tempo todo tomado, batendo ponto na Sudene, aquele conhecimento valia muitíssimo para mim. O pior do matuto quando chega à capital, já dizia Joca Souza Leão, é não conhecer ninguém. Eu a essa altura já tinha passado um ano na Europa depois de bem dez anos fora de Pernambuco mas isso equivalia a ser um matuto desconhecido, tendo, em matéria de relacionamento, de recomeçar quase do zero. Ou pior, porque o fato de ter passado dez anos fora, na Bahia, em São Paulo, na Europa, fazia com que de antemão me olhassem com uma certa desconfiança: Pernambuco é assim.

Aliás, nesse ponto, continuo matuto, sem saber nada de quem é quem no Recife, quem é parente de quem, quem é sócio de quem, quem joga em que time. Sempre acreditei que um dia poderíamos estar mais disponíveis. Mas a velhice tanto aproxima quanto atrapalha. Nós, velhos, temos que nos ocupar o tempo todo conosco, com nós próprios, porque temos mais viva a noção de que o tempo passa e do muito que temos a fazer, pedindo desculpa ao leitor por essa minha fração autoajuda.

Tiziano viveu 99 anos pedindo a Deus que lhe desse ao menos mais um dia de vida para pintar o quadro que lhe faltava para salvar sua obra. Gostaria de termos tido mais tempo a perder. Não para falar de grandes temas, e também, mas mais para amenidades, curiosidades das nossas vidas. Que eu quando estava em Roma vi todos os dias de manhã, quando ia para a Accademia di Belle Arti, Marcello Mastroianni conversando com os amigos, uma perna dobrada, a sola do sapato um pé na parede, na calçada estreita e ele até estirava a perna, botando na posição vertical para que eu pudesse passar. Até hoje me lembro de sua voz, sua risada, a capa de gabardine bege. Faltou dizer que um dia vi Giulio Turcato atravessando a rua. Que vi o pintor Morandi com o restaurador brasileiro do Vaticano; subimos só nós três no elevador. Brennand teria mil vezes mais dessas coisas para contar.

Lembro-me da evolução de sua barba cada vez maior, da separação embaixo do nariz. Me lembro de quando sua mão começou a tremer, mostrando que às vezes ia almoçar sem que estivessem perfeitamente limpas, meladas de tinta. Recentemente, depois de publicar a autobiografia, quando mandou buscar uma garrafa de vinho que tomei toda sozinho porque ele não bebia, enquanto conversava com Cecília Scharlach sobre a publicação do Diário do Urso que estava escrevendo. Também conversei sobre o dia em que eu tirava cópia heliográfica, juntamente com o cartógrafo francês Sabatier, no primeiro andar de um prédio da Tramways na esquina Aurora-Princesa Isabel, e Brennand vinha do Palácio do Governo pela Ponte Princesa Isabel enquanto um soldado armava a metralhadora no meio da ponte em direção ao palácio, única vez em que o vi de paletó e gravata, uma gravata vermelha e amarela salvo engano, ele dando com a mão já do lado da Rua da Aurora. “Ele ameaçou atirar em mim”, lembrou-se Brennand. Gostou que Sérgio Buarque de Holanda me dissera que só aprendeu mesmo o que era metáfora quando chegou na Grécia e pediu um carregador para as malas que lá é metáfora, e aí viu que metáfora é uma palavra que carrega o sentido de outra, o mesmo acontecendo com êxtase que é parada de ônibus em Atenas.

Ah, como eu gostava quando ele comentava os quadros de Courbet. Bonjour, Monsieur Courbet, em que só o pintor é que tem sombra. As últimas vezes em que fui ao Louvre, em 1979, com minha mulher Leonice, eu fiquei o tempo inteiro plantado na frente dO Enterro em Ornans (314 x 663cm) e tinha imaginado pintar algum dia um quadro grande todo em marrom escuro para mostrá-lo a Brennand.

Vendo de longe a ponta do seu nariz sob um véu me deu vontade de ir lá e dizer a ele que continuo com esse projeto.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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