Matéria Corrida

Homo sapiens

TEXTO José Cláudio

07 de Maio de 2019

Primeiro quadro de José Claudio, óleo sobre madeira, 25 cm de diâmetro, 1940 ou 1941

Primeiro quadro de José Claudio, óleo sobre madeira, 25 cm de diâmetro, 1940 ou 1941

Imagem Reprodução

Você, não sei, mas eu menino pensava que quando fosse grande saberia tudo, nada me seria estranho debaixo do sol. Conheceria todas as matérias, todas as palavras do dicionário de português que papai tinha em casa, o que me indicou existirem compêndios contendo todas as palavras das outras línguas e que eu poderia consultá-los. Não me passava pela cabeça diferenças de escrita, como árabe, chinesa e outras mas nada poderia obnubilar minha certeza do saber absoluto.

Nada me seria estranho na química nem na física. Conheceria todas as substâncias, para que serviam, em que eram usadas na saúde ou na indústria. Conheceria todas as leis de todos os países e todos os mandamentos e dogmas de todas as religiões. Saberia latim.

Certa vez Vinicius de Moraes ainda menino, sem saber o que significava ao certo Libertas quae sera tamen traduziu “libertas que serás também”. Eu, no primeiro ano ginasial, de férias em Ipojuca, na loja de meu pai, alguém me perguntou, já que alardearam que eu estudava latim, o que significava Vis mea in labore, acho que era isso, me apontando no símbolo da Editora Vecchi. No desenho, uma abelha. Traduzi na hora: “faz mel e trabalha”. Depois procurei saber. “Minha vida para o trabalho”. A tradução de Vinicius fazia algum sentido. A minha, imbecilidade pura.

Diretor do Arquivo Público, ex-diretor da Cepe onde o conheci, Evaldo Costa, sertanejo de Patos de Espinhara, sabendo que estudava em colégio, faziam-lhe perguntas como: “Qual foi o dia da batalha tal [diziam o nome de uma cidade alemã que não tem no mapa] da guerra de 14?” Ante o silêncio de Evaldo, o cidadão respondeu: “Eu não troco o meu primeiro ano primário pelo teu ginasial”.

Ele me contou que, na escola primária a professora deu como tema de redação: “A cambaxirra e as gralhas”. Ora, ninguém, nem ela, nunca tinha visto uma cambaxirra nem gralha. Tive curiosidade de procurar no Aurélio “cambaxirra”. É “garriça” no Rio de janeiro e, no Amazonas, “cotipuriú”. “Gralha”, tenho para mim que é o mesmo que corvo. O único corvo de que ouvi falar é o do poema de Poe. Ver, nunca vi. Era uma das atrações turísticas que eu queria ver na Europa onde passei um ano inteiro. Mas esqueci.

Evaldo também não entendia a fábula da cigarra e da formiga. A formiga guardava no verão para ter o que comer no inverno, quando lá onde ele morava guardava-se algum feijãozinho no inverno para comer no verão.

Engraçado: pintura nunca entrou nas minhas cogitações. Deve ser porque eu achava que já sabia.

Como no 2º ano de ginásio se estudava inglês e, no primeiro, latim e francês, calculava que no fim dos respectivos anos falaria à perfeição essas línguas. Lembrei-me agora da amiga americana Nancy (nênci). Falava português, tendo vivido em Garanhuns na infância. Certa vez aqui em casa esboçou sua estranheza em se estudar inglês. Inglês era uma língua tão banal que ela achava ridículo sua irmã estar ensinando inglês no Piauí. Ela achava surrealista. Se alguém se dispusesse a aprender uma língua, estudasse grego, sânscrito, por aí.

Naquela época, eu tinha convicções. Por exemplo, bastava saber as operações fundamentais. Quando apareceu álgebra, considerei, afetação. Já na própria aritmética descartava mínimo múltiplo comum, máximo divisor comum, raiz disso, raiz daquilo, logaritmo, coisa de quem não tem o que fazer. Estudava porque era obrigado mas reconhecia naquilo pura ficção. Que outras almas escolhidas enveredassem por esse caminho. Não seria o meu. Mesmo na pintura, quando qualquer coisa cheira a cientismo, corro às léguas.

Contudo, gostava do enunciado de alguns teoremas. “Um corpo mergulhado num líquido recebe um impulso de baixo para cima igual ao peso específico do líquido deslocado.” “O quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos”. “Matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias”. Gostava quando o Irmão Carlos Martínez demonstrava no quadro negro a paralaxe solar. Que fim levaram aquelas salas onde estudei no Marista? Parece que fazem parte de uma loja de presentes. Ali recebi o maior presente da minha vida: a instrução. Estendo meus agradecimentos a Dna. Dulce e Dna. Guiomar, em Ipojuca. Numa aula de artesanato criada por Dna. Guiomar, pintei meu primeiro quadro a óleo com dez anos no máximo. O solvente era óleo de banana, que Samico disse ainda existir. Talvez se tivesse continuado com ele não tivesse me intoxicado com terebentina e parado de pintar com óleo. Mas depois de alguma prática o acrílico serve do mesmo jeito.

Nunca me ocorreu conhecer outros países. Ninguém pensava nisso. Ninguém sentia necessidade de saber inglês. Ninguém nos cobrava. Mesmo o francês, língua em que peças de carro, termos de costura, eram nomeados, etiqueta, restos do século 19, continuavam em seu mundo restrito ou eram considerados de mau gosto. E até ofensas ao bem-falar. É por isso que os mais velhos costumam dizer “quando o Brasil era Brasil”. A respeito de arte e ciência podíamos estar tranquilos: Olavo Bilac, Vítor Meireles, Oswaldo Cruz, Santos Dumont: precisava mais?

Naquela época a Europa, o mundo todo estava em guerra, década de 1940. O Brasil era o refúgio. Autossuficiente. Veja as frutas. Papai trazia do Recife às quintas-feiras maçã, pera, umas frutas meio sem graça, ou uva: como minha filha Maria Júlia, nunca gostei de fruta azeda. Nem da melhor, abacaxi. Mas bastava banana para ter mais que todas as frutas estrangeiras: banana-prata, banana-anã, banana-maçã, banana-dendê, banana-salta-do-cacho, banana-roxa, banana-imbigo-verde, banana-pão, banana-comprida, entrou pela perna de pinto, senhor rei mandou dizer que contasse mais cinco.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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