Matéria Corrida

Levagantes

TEXTO José Cláudio

09 de Fevereiro de 2018

Ilustração, dentre as muitas, dos diários de Francisco Brennand

Ilustração, dentre as muitas, dos diários de Francisco Brennand

Imagem Reprodução

Sentei-me de manhã, a porta da sala aberta, e comecei a escrever mentalmente esta crônica sem saber como continuar, vindo-me apenas as primeiras palavras, “Em frente ao mar”, porque daqui da minha sala vê-se uma nesga de mar. Sem nem mesmo a ideia de escrever esta crônica. Aí lembrei do verso de Carlos Pena: “Em frente ao mar sonhando levagantes”. No meu caso, sem sonhar levagantes, primeiro que tudo por não saber o significado de “levagantes”. Até aventei algumas possibilidades, como a de os poetas acrescentarem ou suprimirem sílaba às palavras, ou trocarem letras, em função da métrica, da sonoridade, tendo eu antes o cuidado de consultar o Aurélio e o Houaiss, que não registram a palavra.

Sem sonhar levagantes nem fabricar centopeias, como continua o soneto: “Em frente ao mar, sonhando levagantes,/Maria fabricava centopeias” (Soneto macedônico), nem muito menos me chamar “Maria”, lembrei de um concurso de poesia havido em Porto Alegre há muitos anos e do verso: “Em dezembro o mar fica tão claro”. Acho que o título era “Pampo” ou “O pampo”, que nada tinha com os pampas gaúchos e sim com a pesca do peixe pampo. Era manhã de dezembro, esta em que olhava o mar daqui de minha sala, dos meus 85 dezembros. Nada de extraordinário hoje viver 85 dezembros. E o pensamento foi pousar no livro de Paulo Rónai Como aprendi português e outras aventuras, onde ele diz que, quando começou a aprender português, lá na Hungria, sua terra, e tentou traduzir uma poesia brasileira, não conseguia acreditar na palavra “dezembro” significando luz, sol, cor, calor, claridade, para ele dezembro sinônimo de frio, escuridão, agasalho, neve, recolhimento, tudo enfim que o severo inverno húngaro trazia. A essa hora, nove da manhã ou menos, os raios do sol batendo no mar nos pegam de topo, adiando a cor para quando ele vira para o lado de cá, por enquanto somente faíscas a tremeluzirem, cegando-nos, deixando-nos encandeado e aturdido, impossibilitado de pensar na infinidade de dias já vividos. “Idos e vividos” como diz outra poesia, não me lembro qual.

Cheguei à conclusão de que todas as vidas são iguais em relação a ela própria, isto é, à única que interessa, viva o portador um dia, um ano ou um século, por mais que isto pareça brutal.

Eu agora virei “o homem feliz”, depois de um artigo de José Paulo Cavalcanti Filho no Diário de Pernambuco, talvez porque gosto de ficar sem camisa e exista lenda sobre o rei que queria vestir a camisa de um homem feliz e, quando encontraram esse homem, viram que não tinha camisa. Minha ideia de felicidade é a mesma de Santo Agostinho. Santo Agostinho não concebia felicidade que tivesse fim. O fato de terminar, de haver tal possibilidade, de término, mesmo que essa pseudo-felicidade durasse a vida inteira, a sombra da morte, logo de término, sempre presente, excluiria qualquer noção de felicidade. Felicidade, para merecer esse nome, tinha de ser eterna. Isso fez com que eu deixasse de me preocupar com o assunto. Melhor pensar em tomar um caldinho de caranguejo ou outra coisa ao nosso alcance.

Minha teoria de vida sempre foi a da Gata Borralheira, a de que um dia apareceria um sapatinho que coubesse no meu pé. E aparecem com mais frequência do que a gente pensa. Também o exemplo de Santo Antão no deserto, que quando perto de morrer de fome vinha um corvo e jogava-lhe um pão. Isso não quer dizer que não madrugue, que não me atire ao trabalho desde as primeiras horas do dia.

Mas voltando aos levagantes, tudo a ver com Carlos Pena, o poeta do azul: uma lagosta azul das costas de Portugal. A única pessoa que disse já ter ouvido falar em levagantes foi a jovem amiga portuguesa Joana. Um dia eu lhe confessei não saber se ela Joana era bonita ou feia. Venceu a primeira hipótese, depois desses mais de dez anos que nos conhecemos. Recém-separada do pintor Fernando Areias, mãe de João e Maria, nascidos aqui no Recife, apareceu para se despedir. Ai, Joana, você vai voltar para Portugal. Pensei em duas coisas. Primeiro, que sua vida aqui tem sido um sucesso e lembranças de belos dias vividos que os filhos tratarão de eternizar. Segundo, que a gente deve viver sem grandes expectativas. Veja bem, o que não exclui aquela história da Gata Borralheira, embora você esteja mais para princesa.

Tanta coisa no ano que termina, 2017, e eu divagando. O maior acontecimento foi o lançamento do Diário de Francisco Brennand, que não é somente um diário mas uma obra bem maior, de longo curso, que dialoga com vários Brennands, levanta voo firme e raramente baixa de novo ao chão, para que nos recuperemos do ar rarefeito das alturas. Pretendo relê-lo pelo menos uma vez cada ano dos poucos que me restam sabendo que nunca terei estatura para alcançar tudo que ali está dito, mesmo nessa área de pintura, mais próxima. Poucos estarão preparados para penetrar na densidade dessa floresta brennandiana. Mesmo aquém, estou satisfeito por se constituir algo próximo de mim até geograficamente e pela contemporaneidade. Como se eu é que tivesse me salvado.

Também queria dar um toque sobre Poesias/Natividade Saldanha. Obrigado Sidney Rocha. Lembro de ter falado de Natividade Saldanha no textinho introdutório de Artista de Pernambuco, um álbum que fiz no tempo de Bandeirinha, mostrando a grande precedência do poeta quanto ao regionalismo, tendo citado os poemas sobre o suco de caju e sobre o galo-de-campina.

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necessariamente a opinião da revista Continente.

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