Matéria Corrida

Naquele tempo

TEXTO José Cláudio

02 de Fevereiro de 2021

Juliana Monteiro. 'Convento de Ipojuca'. Desenho sobre papel, 32 x 42 cm, 2003

Juliana Monteiro. 'Convento de Ipojuca'. Desenho sobre papel, 32 x 42 cm, 2003

Imagem Reprodução

Eu não gosto de ficar gabando a cidade onde nasci porque se ela fosse essa bondade toda eu tinha ficado lá. Agora, o barro de que sou feito, foi amassado lá. Lá nasci e era o único lugar no mundo que existia. O Recife, tão próximo que hoje Ipojuca é considerada região metropolitana, naquela época era independente, pode-se dizer, vivendo dos engenhos, cujos nomes ressoam na minha cabeça, Arimbi, Ioiô de Arimbi, freguês da loja de meu pai, e outros, Caité, que depois me disseram que era Ca-e-té, Jitaí e Montevidéu, Engenho Novo, Macacos, Pará, Amazonas, Maranhão, Pindoba, um que não consigo lembrar o nome, onde Gil Leôncio foi barranqueiro, casado com Déa, filha de José Vasconcelos, onde pela primeira vez tomei aguardente e achei que era a coisa que precisava ser inventada, maravilha de que estava precisando, e olhe que isso eu já era homem feito, apesar de estudante no Recife. Vou perguntar a Ilminha se ela lembra do nome, Ilminha do Engenho Piedade, onde Seu Crescêncio pai dela era barraqueiro, casada com Henrique de Seu Otávio, irmão de Breno, que formou-se em engenharia, um ano mais velho do que nós, eu e Henrique, e morreu este ano, aliás 2020, não sei a data, quem me disse foi Isa, irmã de Ilminha, Henrique falecido há anos em Ibotirama, BA, aliás morreu em Feira de Santana; Ibotirama onde tinha uma fazenda, se não me engano de Breno. Henrique e Isaldo, irmão de Ilminha, foram tomar conta. Me lembrei do nome do engenho de Gil: Boacica.

Eu e minha irmã Nena íamos passar as férias escolares no engenho onde morava minha tia Edith, casada com seu Zé Dias: primeiro no engenho São Paulo, perto de Camela; depois em Aratanji, idem; e por fim Burarema, já na usina Cucaú, Cucaú onde meu querido primo Amaro Antônio, filho de minha tia Edith, teve uma padaria. Pai de Ceça, que mora na Alemanha e andou fazendo umas pinturas por lá, em Xanten. E tem Daniel Cavalcanti, pintor, neto de Amaro Antônio, filho de Toinho. Por aí se vê que minhas referências continuam a ser, em grande parte, e as mais antigas, ipojucanas. Mas hoje comecei a escrever por me ter passado pela cabeça uma ideia de quando ainda não tinha saído de lá. E pensava que não ia sair nunca. Pensava numa eternidade naquelas plagas. Recife, o resto do mundo, poderia se apresentar esporadicamente, por exemplo as maçãs que meu pai trazia às quintas-feiras: o comércio fechava em Ipojuca às quintas-feiras, dia em que os comerciantes iam fazer compras e pagamentos no Recife, e geralmente traziam alguma novidade, maçãs ou peras, também mangas e cajus, numa bolsa de palha de coqueiro, da estação da Ilha, de onde uma vez saímos para Garanhuns, a família toda, nossa única grande viagem. Eu com seis anos.

Eu achava bonito como os antigos ipojucanos eram referidos pelos atuais, o nome precedido respeitosamente do título “finado”. Não raro acrescido da expressão “no tempo do” ou “no tempo da”: “no tempo do finado João Leôncio” ou “no tempo da finada Dna. Inês”. Parecia que tinham sido anos dourados, e talvez tenham sido. Dna. Inês, eu inda alcancei, dando cocorote nos meninos para aprenderem o latim de ajudantes de missa. Eu também comecei mas logo desisti. Não levei cocorote. Introibo ad altare Dei, ad Deum qui laetificat juventutem meam (entrarei ao altar de Deus, ao Deus que alegra a minha juventude). A missa em latim era mil vezes mais bonita. Eu já tinha perdido a fé mas usava como desculpa, para evitar delongas, o fato de a missa mudar para português. Em parte eu tinha razão porque quando andei pela Europa, naqueles lugares em que não conhecia ninguém, só os quadros dos pintores nos museus, e de línguas difíceis, me exprimindo por gestos feito macaco, alemão, holandês, o único refúgio era assistir missa, quando ainda conseguia discernir alguma fala, repetir alguma oração, Sunsum corda, corações ao alto, Dominus vobiscum, o Senhor esteja convosco, et cum spiritu tuo, e com o vosso espírito. Se há algo de que me arrependo na vida é de não ter estudado bem latim. Tenho uma pena danada de não poder ler Sto. Agostinho no original. Tive vontade de decorar aquele capítulo das Confissões em latim, Tarde te amei, para repeti-lo feito papagaio, que quando leio me dá um nó na garganta desde a primeira frase. Saiu numa revista de poesia de Minas Gerais. Cataguases? Revista muitíssimo boa. Mas como tudo que é bom...

Naquela Ipojuca de poucas ruas, subir a ladeira do convento era um belo passeio. O piso de barro é mais gostoso de andar. O clímax era olhar a várzea do rio Ipojuca em toda aquela extensão, alcançando o canavial imenso. O mar, o verde do canavial, com perdão do imenso lugar-comum. Isso tem ligação com o mar que posso ver da minha casa em Olinda, meio de longe, que não me canso de pintar, com a sensação de estar sentado na grama do lado do Convento, acordando e dando de cara com a antiga vista do canavial, ou lembrança dele. Por isso que nunca consegui morar em canto nenhum até que arriei aqui o matulão, no antigo Sítio dos Padres, em Olinda. Rejuvenesço a cada manhã.

Tenho pintado também o canavial a partir de dentro dele. O cortador de cana, o amarrador de feixe, o cambiteiro, o carro de bois, a moita (o engenho propriamente dito, que faz o açúcar). Me pedem, eu pinto. Pouca gente hoje terá visto um burro com a cangalha e os cambitos, daí o nome do seu condutor, cambiteiro. Também mulheres, tanto cortando como amarrando. Hoje é tudo no caminhão. Logo logo não vai ter quem saiba amarrar um feixe de cana.

No minuto final, não me levem para o hospital. Esta declaração é válida, caso não possa escrever na ocasião. O pior de morrer é morrer no quarto, nem sequer da minha casa, dando adeus a paredes. Ah, Mané meu filho, você que também é pintor, prepara os apetrechos e me bota virado para a paisagem. Só vai ficar faltando quem me chame de “finado Zezé”, naquele tom comovido de profunda identificação com que no meu tempo eram referidos os antigos ipojucanos.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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