Matéria Corrida

O pintor Hercílio Santos

TEXTO José Cláudio

09 de Março de 2020

Pintura de Hercílio Santos. Acrílico sobre tela, 0,5 x 1 m, 2019

Pintura de Hercílio Santos. Acrílico sobre tela, 0,5 x 1 m, 2019

Imagem Reprodução

Eu admiro muito a pachorra, a curiosidade, o deter-se em cada ponto do quadro como se tudo ali se completasse; não como se o mais dependesse, tivesse como ponto de referência, esse pormenor. Não. Não existe “o mais”. O fato de haver a intenção de pintar um quadro, a essa altura ainda não surgiu, ou é como se não tivesse ainda despontado, no horizonte de suas perspectivas. Fica para o futuro. O futuro a Deus pertence. Não nos cabe perscrutar os desígnios de Deus.

Hercílio é muito religioso, cristão, católico. Toda vez que diz o nome de um morto, se benze, como aconteceu na nossa conversa em que falamos de Brennand e Samico, suas primeiras influências, como presumi, pelo que mostrou nas fotos no celular.

Nada pode perturbar a execução deste trecho, não importa se, depois de pronto o quadro, nem será notado. O que vale é o prazer da execução. Pode ser que ele faça algo parecido mais em cima, logo abaixo, ao lado, do mesmo jeito ou invertido ou de cabeça para baixo. E assim fique feliz de ter “saído do zero”, de ter desvirginado o branco da tela. Enquanto um Kandinski faz tudo para não cair numa composição, procurando destruir o primeiro vestígio de que isso possa ocorrer, Hercílio, pelo contrário, trata de geometrizar desde o primeiro minuto: e isso porque suas composições são sempre uma única, ou terminem em algo símile, por mais estranho que isso possa parecer. Ele consegue que cada quadro, sendo praticamente o mesmo, se constitua um salto no desconhecido.

Seus quadros na maioria, pelo menos os que vi em seu atelier, têm a medida de 1/2 metro por 1, alguns na posição vertical, como um com a figura dominante de uma cruz. Mas prevalece sempre, ou quadro é o urdido, digamos assim, com triângulos e que se vão harmonizar com a figura esquemática de um peixe: não há pretensão de representar um determinado peixe e sim um peixe simbólico do cristianismo primitivo do tempo das catacumbas romanas. Ocorre, como informação dispensável, que aqui vai em homenagem a Guita Charifker, fanática por astrologia, que peixes é o signo do pintor. Informação do próprio.

Pedi a Hercílio que escrevesse um currículo. Ei-lo:

José Hercílio Nascimento dos Santos nasceu em Recife no dia 14 de março de 1956 no Hospital Getúlio Vargas no bairro do Cordeiro. Aos 8 anos de idade se mudou com a família para as Graças, passando toda sua juventude na Rua da Amizade. Começou a se interessar por pinturas em 1978 quando fez sua primeira pintura. Autodidata, frequentou por algum tempo a Escolinha de Arte do Recife, na Rua do Cupim, onde entrou em contato com diversos tipos de técnica, tendo aula com a professora Tereza Carmem. Professor de História e com especialização lato-senso, lecionou por 3 anos em escola do município de Jaboatão dos Guararapes. Participou de diversas exposições na década de 80, entre murais pintados na rua até exposição internacional de arte out-door do Recife, organizada pela Associação dos Artistas Plásticos de Pernambuco, nessa época dirigida pelo artista Paulo Brusky. Teve aula com o professor Fernando Guerra. Atualmente Hercílio desenvolve projetos de Preservação e Patrimônio em Pernambuco com temática sobre o barroco em nosso estado; como produtor cultural lançou 2 livros pelo Funcultura através do Governo do Estado sobre a importante coleção do antiquarista e colecionador José dos Santos (Zé Santeiro). O primeiro chama-se O Universo Mágico do Barroco Pernambucano e o segundo Fotografia da Memória Pernambucana, que retrata essa importante coleção de objetos de inestimável valor artístico e cultural. Foi membro do OBSERVAMUS, projeto esse em que se discutiu o patrimônio material e imaterial do nosso estado, programa vinculado à UFPE, através do Departamento de Antropologia e Museologia, tendo como coordenador o Doutor professor carmelita Frei Tito, também participando do inventário da capoeira em Recife e região metropolitana com apoio do IPHAN local. Passado esse tempo todo Hercílio vem se dedicando a usar sua imaginação para criar figuras e símbolos através dos pincéis, dentre as exposições coletivas e individual apresenta uma pintura carregada de cores fortes. Vem participando da exposição coletiva anual do IMIP que acontece no Museu do Estado de Pernambuco.

Recife, 19/02/20

O José dos Santos ou Zé Santeiro a que o pintor se refere é seu pai. Perguntando sobre a influência de ter vivido entre tanta coisa bonita da coleção de seu pai ele disse que naturalmente isso teve grande importância na decisão de se tornar pintor, é uma coisa que deve ter se incorporado a ele sem que tivesse uma data, o tempo todo. Também quando o assunto pendeu para pós-modernidade, ao falarmos sobre materiais usados no seu trabalho, ele disse que sua arte não se pretende efêmera, que ele queria que seus quadros durassem. Ainda falamos de vários assuntos, como da mudança entre o banguê e a indústria. Nunca casou. Hétero 100%. Nunca foi à Europa, onde moravam suas duas irmãs, na Itália, uma recentemente falecida em Milão, a outra separada morando atualmente no interior da França, mas deste ano não passa. Terminamos falando sobre Roma. Eu disse a ele que não esquecesse de visitar as catacumbas de San Sebastiano para ver o peixe que ele tanto pinta riscado singelamente nas milenares paredes de barro cru de debaixo do chão.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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