Matéria Corrida

Rosa e Karl May

TEXTO José Cláudio

08 de Maio de 2018

O autor Karl May em imagem ilustrada para a edição brasileira de 'Old Surehand'

O autor Karl May em imagem ilustrada para a edição brasileira de 'Old Surehand'

Ilustração Reprodução

O 33 era um arruado de uma única rua com casas só de um lado olhando para a linha do trem de onde lhe vinha o nome por situar-se no km 33 da Estrada de Ferro Sorocabana, São Paulo. Chamavam também Parada dos Padres, embora nada assinalasse que ali houvesse uma parada do trem: descia-se, ou melhor, pulava-se no descampado. A primeira vez, pulei do lado errado e saí rebolando pelo capim molhado do acostamento, bem uns três metros de altura.

Sem calçamento nem calçadas nas casas, apenas pequenas residências de taipa sem reboco, quando chovia virava um lamaçal. Também não tinha luz elétrica nem água encanada e nem sei se nome nessa metade de rua. A casa do meu tio, Manoel de Albuquerque Pinto, irmão de minha mãe, era a última, na beira de um riacho, já contando com uma parte de alvenaria onde eu me arranchava, à espera de dias melhores. Eu desenhava o tempo todo, bico-de-pena sobre papel canson inclusive de um rolo presenteado por Aloísio Magalhães quando fez a exposição A aventura da linha no Museu de Arte Moderna, na Sete de Abril.

Meu tio, servente da estação Domingos de Morais, me disse uma ocasião que a moça da biblioteca lá da estação principal, a Júlio Prestes, vivia insistindo para que lessem, levassem livros para casa, e ele perguntou-me se queria algum, podendo-se trazer três de cada vez. Como eu não tinha nada para ler, nem jornal, disse ao meu tio que pedisse os três romances mais grossos, e ele voltou com Mansefield Park de Jane Austen, Os Sertões de Euclides da Cunha, livro que eu nunca tinha lido direito, e um outro que tinha relação com este e que tinha recém-saído, e a moça recomendou que não deixasse de ler, que era muito bom: Grande Sertão-Veredas, de João Guimarães Rosa. Eu já lera contos de Guimarães Rosa, que através destes já se tornara um autor de renome, mas nada de tão grandioso. Como não havia luz elétrica, eu ia dormir bem cedo para acordar às primeiras luzes do dia e me enfiar na leitura. Tive a sorte de ler sem saber de antemão, nem sequer desconfiar, que Diadorim era mulher. Foi um desfecho estrondoso, de grande impacto. Mas depois de alguns dias, sem perder a admiração, ficou zoando na minha cabeça que já tinha visto coisa parecida, mas sem saber onde nem quando, de maneira que a dúvida persistiria até recentemente, mais de sessenta anos depois, sendo esta a primeira vez que falo no assunto, depois que comi carne de urso trazida da Finlândia pelo amigo Fernando Dourado.

Qual a ligação entre carne de urso e João Guimarães Rosa? Vou chegar lá. Quando interno no Colégio Marista, então rua Conde da Boa Vista, Recife, com treze ou quatorze anos, tomei conhecimento dos livros de aventuras do escritor alemão Karl May. Li Winnetou, que se pronunciava “vinetú”, e Old Surehand, com título assim mesmo em inglês na tradução em português, velho da mão firme. Hoje, aos oitenta e seis anos, só me lembrava, de tudo o que li, três volumes de Winnetou e dois de Old Surehand, de uma passagem em que um deles mata um urso e diz que o melhor pedaço são as patas e que devem ser comidas quando estão criando bicho. Folheei o segundo volume do Old Surehand, capítulo No Vale dos Ursos e botei o dedo em cima. “Ao mesmo tempo comia-se assado de carne de urso. As patas, a melhor parte, como se sabe, foram enroladas e guardadas, pois esse petisco só atinge o seu grau máximo depois que os vermes começam a formigar nele.” Comprei os livros no sebo e a tradução deve ser a mesma que li, de 1936, Editora Globo, Rui Lanner Simões e Stella Altenbernd. Engraçado é que, ao comer a carne trazida por Fernando, senti o mesmo paladar imaginado ao ler no livro, alguma coisa de defumado de sabor intenso. Gostei demais. Outra curiosidade é que o caçador do mundo real a quem Fernando comprou a carne, enlatada pelo próprio caçador, explicou que a maior dificuldade no abate do urso é ter que esperar que ele fique em pé, para acertar uma veia debaixo do sovaco, e esse mesmo pormenor consta do relato de Karl May: “Consegui minha intenção; apenas ele me viu, e já estava de pé, a uma distância de somente seis passos. No mesmo instante desfechei o tiro.”

Com saudades não sei se dos livros de Karl May ou de mim mesmo quando tinha quatorze anos, parti para a leitura do livro todo, pelo menos o Old Surehand. E aí resolvi a minha dúvida histórica que me perseguira durante os últimos trinta e tantos anos desde que lera o Grande Sertão-Veredas: Diadorim, sim, tinha um antecessor, saído da imaginação do alemão, sem nunca ter visitado o Velho Oeste, como se dizia. Está no último capítulo, Junto à “Cabeça do Diabo”. É o guerreiro apache “Tahua, a linda irmã de I-kwehtsi pa” que “quando menina já sabia montar bem e atirar”. Talvez a editora precisasse acrescentar um glossário da língua apache para dizer o que significam esses termos, se é que têm algum significado.

Será que na época de suas leituras juvenis Guimarães Rosa teria lido Karl May, Old Surehand e, como eu, esquecido tão completamente e fora traído pelo inconsciente e reinventado o guerreiro apache na figura de Diadorim? Bobagem. Diadorim é uma figura magna enquanto que o guerreiro apache é um coadjuvantezinho insignificante de um livro de outro patamar bem abaixo de onde se situa o do autor brasileiro. Essa minha descoberta não vai abalar a história da humanidade nem da literatura brasileira, mas que foi bom, foi. Para eu saber que não fiquei doido. Obrigado, urso.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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