Matéria Corrida

Sapato de duas cores

TEXTO José Cláudio

06 de Fevereiro de 2019

Ilustração Janio Santos

Sapato de couro de crocodilo e sapato de duas cores. O primeiro dinheiro que ganhei na vida, que não me lembro quando foi mas já era taludão, deve ter sido em São Paulo, e sei por que foi em São Paulo que comprei, com dito primeiro ordenado, um par de sapatos de couro de crocodilo. O primeiro que vi. Até andou, desculpem o trocadilho, fazendo uns calos, mas aguentei firme. A felicidade era maior.

Meu pai era dono de loja em Ipojuca. Na loja tinha de tudo, miudezas, ferragens, tecidos, chapéus, o que você imaginar. Menos molhados. Quanto a calçados, o que de melhor se poderia encontrar em Ipojuca em sortimento e qualidade era na loja de meu pai. Amaro Silva. Crepe-sola, se é que se escreve assim, DNB, Fox, Scatamacchia, mas entre todos os que me fascinavam eram os de duas cores, até a adolescência, digamos. Tanto preto e branco quanto marrom e branco.

Não lembro mais quem engraxava sapato em Ipojuca. Talvez João Sapateiro, pioneiro dos novas-seitas, homem sério, humilde e correto. Eu observava que os sapatos de duas cores exigiam grande esmero dos engraxates, havendo na parte preta ou marrom uns furinhos brancos que eram pintados com a ponta de um palito.

O de couro de jacaré, adquirido em São Paulo, quando eu já me emancipara da tutela da família, da tácita proibição de meus pais, que ficariam consternados com a vulgaridade da escolha, era amarelo, até meio escandaloso, puxando para alaranjado, denunciador de que não se tratava de couro legítimo. Eu estava pouco me importando. O que me interessava era a imposição da minha vontade. O mundo que aguentasse. A fôrma meio comprida não dava certo com o formato do meu pé, mais para largo. Nos últimos tempos já queria me livrar dele porque continuava incômodo, apertado, única maneira de me livrar dos calos. De fato, depois, nunca mais tive calos.

Nunca tive coragem de fazer como meu pai que cortava, bem por cima, seus calos com uma gilete nova. Diziam que era perigosíssimo embora a Rua da Praia estivesse cheia desses cortadores de calos, os calistas, exibindo em cima do tampo de um caixão os inúmeros calos retirados. Quando papai cortava os calos, eu já sabia que no dia seguinte ele ia pro Recife, dia de os comerciantes fazerem compras na capital, feriado quinta-feira em Ipojuca. Domingo era dia de feira, em que se vendia mais.

Quanto ao sapato de duas cores, vou levar para o túmulo a frustração. Nem sei se ainda existem, a não ser nas fantasias de passista de escola-de-samba do Rio de Janeiro. Às vezes aparece na televisão. Hoje, às oitenta e sete primaveras neste ano que se inicia, ligo apenas o aspecto comodidade. Há muito deixei de usar sapato de enfiador, pela dificuldade de alcançar os pés. No banho, das canelas para baixo me sirvo de uma escova de cabo longo própria para banho, boa também para lavar as costas.

Sou, além de velho, obeso. Sempre fui obeso. Há algumas décadas, Lula, filho de Miguel Arraes, vindo aqui em casa, época de eleição, lhe disse, por brincadeira, claro, que sempre votei em Miguel Arraes, não por precisar de óculos nem dentadura, que era com que na época se comprava voto. Ele disse: “Então vou lhe dar um check-up” e danou-se a passar exames. O de sangue deu diabete tipo 2. Mandou-me para uma endocrinologista que passou um regime feroz. Com medo, que nunca ficara doente, cumpri à risca. Só comia folha. Paulo Cavalcanti, que também fazia regime, preveniu um dia almoçando aqui em casa: “A gente tem de comer muita folha para substituir a alimentação normal”. Castiguei na folha. Emagreci tanto que as pessoas perguntavam se eu queria entrar numa garrafa. Eu já não me reconhecia nem física nem espiritualmente. Até que comecei a maneirar. Depois de tempo, a obesidade voltou em parte. Mas nunca voltei ao que era. Sempre tenho cuidado. Aprendi a gostar de coisa de que nunca imaginara, como alho, cebola, peixe cru, quibe cru e a última aquisição: 100 gramas diárias de uma batata chamada yokan, que vi Ranulpho, da galeria, comendo, e Marinês, a secretária, me deu a receita. Ultimamente tenho sido acompanhado por um geriatra. Exames mil. A rigor, não encontrou nada, a não ser o açúcar à beira do abismo. As radiografias não acusaram nada no pulmão, o meu ofego resultado do tempo que fumava. Do que deixei há trinta anos. Passou um remédio para aspirar.

Hoje, 16/12/18, domingo, li no Jornal do Commercio uma crônica muito boa. Um sujeito ia sendo levado para o pátio da prisão para ser executado e dando gargalhadas. Apesar de pouco verossímel, é o que acontece com todos nós (Ricardo Araújo Pereira, Está rindo de quê?). Nutri esperanças de chegar ao céu de sapato de duas cores, já que não tive essa oportunidade aqui embaixo. Isso agora está ficando mais difícil com a moda da cremação. Ou se a gente deve chegar lá como nasceu.

Há um grande choro intitulado André de sapato novo. Sempre o imaginei de sapato de duas cores. Aliás meu amigo Miguel Coelho, que sempre me presenteia com sapatos trazidos de lá onde mora, Nova Iorque, da última vez me trouxe um par de duas cores, de plástico, amarelo e preto. Aliás muito confortáveis. Não posso reclamar da sorte.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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