Matéria Corrida

Sobre 'Corações em paz'

TEXTO José Cláudio

02 de Julho de 2020

José Paulo Cavalcanti Filho

José Paulo Cavalcanti Filho

Foto Reprodução

Eu já tinha começado a escrever outra matéria quando li no Jornal do Commercio, 5/6/2020, sexta-feira, a obra-prima Corações em paz, crônica de José Paulo Cavalcanti Filho. Não nego, passei a semana atrás de um adjetivo que desse a medida da emoção que o artigo me causara. Mas, ao mesmo tempo, doce ilusão, procurando transmitir algum conhecimento de causa, sem o que meus arroubos se dissolveriam no nada.

Logo após a frase inicial, quase um murmúrio, “Minha mãe acabou de partir”, o eufemismo parece querer chamar-nos atenção, com o abre-aspas para uma frase de maior relevo, de autor célebre, como se o próprio José Paulo se acanhasse em dizer algo de sua lavra diante do acontecimento único na vida de qualquer um de nós, citação até certo ponto sem nada de extraordinário, quase comum, que até parece já ouvíramos muitas vezes: “A morte é uma bela mulher, à qual falta somente o coração”, Chateaubriand, Pensamentos. Remetendo-nos ao mesmo tempo à sua recém falecida mãe e à personagem abstrata da Ceifeira, como diz mais adiante.

“Já meu pai se foi bem antes”, continua José Paulo, como a evitar aludir à enormidade da dor mais recente. “Lembro dos dias que se seguiram à essa ausência. O mundo perdeu qualquer sentido. E não queria ver mais ninguém. Penso que é assim com todos.” Quando meu pai morreu, eu tinha 47 anos. Já se vão 41. José Paulo tinha 48 quando o pai dele morreu.

Eu viajara à Europa com minha mulher. Queria lhe mostrar lugares onde estivera, passar nos Alpes à mesma hora da noite, para ela ver os picos nevados brilhando na escuridão. Tinha feito um pacote para a Europa toda, Itália, França, Holanda, Berlim, Londres, Madri. Em Paris, recebemos telefonema dizendo que voltássemos. O meu pai não estava bem. Só passamos alguns dias em Madri. Minha mulher queria visitar a mãe de Títi, mulher do escultor Liêdo Maranhão. Quando cheguei no Recife, minha mãe disse que meu pai tinha dito: “Só morro quando Zezé chegar”. Assim ocorreu, morrendo no dia seguinte, eu lá no hospital na ocasião. O enterro foi em Ipojuca, como ele queria.

“Quero voltar pra Ipojuca pra dormir.” Não vou me alongar sobre o enterro. Uma multidão gritando: “Eu quero ver Seu Amaro”. Abrimos o caixão debaixo de chuva, no escuro do cemitério, sem uma única luz sequer. Mas só no dia seguinte, já aqui nesta casa onde moro, olhando de madrugada pela janela do banheiro, o mar cor de vinho como dizia Homero, me veio: “O primeiro dia que não tenho pai”.

Outra circunstância correlata se deu agora, enquanto escrevo estas linhas, junho de 2020. Minha filha, que mora nos Estados Unidos, resolveu vir me ver com medo de não me encontrar com vida, dizimado pelo coronavírus. Eu não quis interferir, mas achava correr risco desnecessário. Ao mesmo tempo, imaginava o quanto ela iria sofrer o resto da vida se não me visse vivo e quanto seria terrível para mim morrer sem vê-la. Ela veio, e está aqui, meu filho mora a 10 minutos: nunca imaginei que a morte não me incomodasse nem um pingo.

Continuando o artigo de José Paulo. “Foi quando ligou o amigo Hélio Naslavsky. Nasceu um neto. E ele convidava para a festa. Tanto insistiu que não ir seria uma grosseria desnecessária.” Lembro ao leitor, isso logo em seguida à morte do pai, José Paulo Cavalcanti. “Fim da tarde, estávamos na maternidade do Sabin. À entrada, um berçário com 20 recém nascidos.” E aí, o autor da crônica J.P.C. Filho nos ajuda a entender o impacto causado por esse comparecimento aparentemente inoportuno.

“Notícias de vida.” A objetividade se impõe. “E fomos andando, no corredor em direção ao quarto. Era o último.” A trivialidade ajuda a trazê-lo de volta à realidade. “Pregados nas portas que se sucediam, mensagens docemente idiotas dos pais de primeira viagem.” Era o início de mais uma vida ofuscando a tristeza da vida que se fora. “‘Cheguei, meu nome é Pedro’, por aí. Alegria por toda parte. Chegamos.” A vida também é feita de coisa boa. “Hélio logo me ofereceu um puro. Muito bom. Cumprimentamos todos e fomos embora.” Isto é, voltando ao abatimento inicial. Qual nada.

“Ocorre que, ao chegar no carro algo havia mudado. Por dentro. O coração, antes apertado, agora estava em paz.” Abre-se nova era. “Refletindo com mais vagar, à noite, pensei que entendi. Ou essa explicação passou a valer para mim somente, dá no mesmo.” Aí vem a descoberta maravilhosa que todos trazemos dentro de nós, mas só se revela na maturidade. “É que o homem nasce, vive uma vida se possível digna, cumpre seus sonhos (ou parte deles), faz amigos (muitos ou poucos). Até que um dia se vai. Deixando saudades. Exatamente quando nasce o neto de algum Hélio. Já sabendo que, mais tarde, o mesmo acontecerá com esta criança. Que viverá seus sonhos e deixará saudades. Quando outros netos, de outros Hélios, estarão nascendo. E assim será, para sempre, eternamente.”

Sei que o que fiz não passa de transcrever Corações em paz. É que não queria privar o leitor de nem um pedacinho desse texto magistral. E me perdoe ainda terminar com esse final que nem me sinto à altura de comentar. “Por isso, amigo leitor, quando se vai alguém próximo, não devemos lamentar mais que o razoável. Aqui falo só das trajetórias inteiras, claro, e não das precocemente interrompidas. Mas se a pessoa querida viveu todo o seu percurso, então foi como deveria ter sido. Com ela, hoje. E, amanhã, também conosco. Enterramos nossos pais. Como nossos filhos nos enterrarão.

É a ordem natural das coisas.” E, por fim: “E enquanto for possível, nessa curta passagem terrena, há mesmo só uma tarefa que devemos cumprir com paixão. Até o fim. A de viver, intensamente, a gloriosa epifania da vida”.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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