Mirante

"Quem grita, vive contigo"

TEXTO Débora Nascimento

16 de Março de 2018

Ilustração Hugo Campos

Na coluna do mês passado, escrevi sobre o impacto do descaso com as meninas pobres, que estatisticamente são as que mais engravidam precocemente e sofrem para conciliar o cuidado com o filho e os estudos, lutando para se qualificar ao mercado de trabalho. Marielle Franco foi uma dessas garotas. Em 1997, após concluir o Ensino Médio no turno da noite em uma escola pública, fazia pré-vestibular, mas o interrompeu para cuidar da filha. Sem apoio do pai da criança, tornou-se aquele ser forte que brota aos milhões no Brasil, a mãe solteira.

Marielle só conseguiu voltar a estudar anos depois. Em 2002, ingressou em Ciências Sociais na PUC (RJ), com bolsa de estudos. No pré-vestibular, teve aula de História com o professor Marcelo Freixo, para o qual fez campanha em 2006, como candidato a deputado estadual pelo PSOL. Após a vitória, o parlamentar a nomeou como assessora na Assembleia Legislativa do Rio. Marielle aprendeu a praticar política. E, em 2016, ela própria se candidatou, sendo a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro (46 mil votos), numa lista heterogênea, cujo primeiro lugar foi Carlos Bolsonaro. Nascida e criada na Favela da Maré, Marielle foi um dos poucos exemplares de políticos que vieram diretamente da base da pirâmide social.

Sua morte carrega todos os indícios para ser considerada uma retaliação, após as denúncias das mortes praticadas pela polícia no Rio de Janeiro. Seu assassinato tem um valor simbólico no Brasil de hoje. Não foi o tipo de morte geralmente atribuída aos mais pobres, negros e vulneráveis: “bala perdida”, “troca de tiros com a polícia”, “morreu num assalto”, “o marido matou”. Também não ocorreu nos rincões do país, como os assassinatos dos líderes camponeses. Foi uma execução em pleno centro do Rio. Aconteceu num momento delicado, quando a cidade está ocupada por militares, numa intervenção apontada pelo governo federal como um “laboratório” para o resto do país.

A morte de Marielle decorre de um assunto muito malresolvido no Brasil, fora a desigualdade social histórica: a “anistia, ampla, geral e irrestrita”. O mecanismo, que nos trouxe de volta à democracia, serviu para “perdoar” os “dois lados”: vítimas e algozes da ditadura. Colocou para debaixo do tapete da justiça tudo o que aconteceu nos porões, torturas, estupros, mortes. Veio o período democrático, mas a herança do autoritarismo permaneceu na polícia.

As novas vítimas, em vez de jovens brancos da classe média, passaram a ser os jovens negros da periferia. De raros se sabe o nome, não vão entrar para os livros de História nem nos artigos acadêmicos, como o jornalista Vladimir Herzog, brutalmente torturado e assassinado em 1975. No máximo, esses jovens da periferia constarão nas estatísticas. Sobre essas mortes de anônimos, negros, poucos se indignam e procuram se opor. Marielle era uma das vozes defensoras do básico, do que deveria ser óbvio, os Direitos Humanos. Por isso morreu.

Mulher negra, ela foi mais uma vítima de herdeiros dos capatazes da escravidão. Sua morte lembra uma outra que ocorreu há 50 anos, no mesmo Rio de Janeiro, a do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto. Nascido em uma família pobre, em Belém (PA), mudou-se para a capital carioca para cursar o segundo grau.

Assim como a vereadora, o estudante também protestava por algo básico: alimentação. O Restaurante Calabouço, refeitório estudantil, servia uma comida de péssima qualidade e havia aumentado o valor da bandeja. Os jovens decidiram fazer uma manifestação em 28 de março de 1968. Nesse dia, o comandante da tropa da PM, aspirante Aloísio Raposo, deu um tiro à queima-roupa no peito do rapaz. Edson Luís tinha apenas 17 anos.

Os seus colegas pegaram o corpo e seguiram em passeata até a Assembleia Legislativa, onde ele foi velado numa comoção popular. A morte gerou vários protestos na cidade, que acabaram por motivar o decreto Ato Institucional No 5 (AI-5), estabelecendo o período mais cruel da ditadura, com perseguições, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos. “Pode-se dizer que tudo começou ali – se é que se pode determinar o começo ou o fim de algum processo histórico. De qualquer maneira, foi o primeiro acontecimento que sensibilizou a opinião pública para o movimento estudantil”, afirmou Zuenir Ventura no livro 1968 – O ano que não terminou.

Cinco décadas após a morte de Edson Luís, o Brasil ainda não aprendeu com os seus erros. No dia 17 de março de 2017, num protesto pacífico de moradores na PE–15 contra diversos assaltos em Itambé (Zona da Mata de Pernambuco), um policial atirou num jovem na frente de todos em plena luz do dia. O rapaz, Edvaldo da Silva Alves, de 19 anos, faleceu no dia 11 de abril. Ele não tinha feito nada. Absolutamente nada. Estava apenas no protesto. Há vídeos que provam isso, registraram o momento em que foi alvejado.

No período da ditadura militar, o Brasil perdeu muitos estudantes, intelectuais, lideranças que poderiam ter contribuído em diversas áreas para o desenvolvimento do país. Perdemos. Continuamos a perder. Marielle Franco foi outra perda irreparável. Na quinta-feira (15), dia de seu sepultamento, um alento: milhares de garotas tomaram as ruas em diversas capitais brasileiras e, em especial, na frente da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, onde a vereadora atuava brilhantemente.

Marielle não morreu, multiplicou-se. Assim como Martin Luther King e Malcolm X, mortos à bala ainda jovens, aos 39 anos, por lutarem pela vida dos negros, Marielle Franco também vai se tornar uma referência histórica, um símbolo de luta. Já se tornou.

Dentre as músicas entoadas pelas vozes femininas em homenagem a ela, uma frase era repetida: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, de Maria da Vila Matilde, faixa do disco-manifesto A mulher do fim do mundo, de Elza Soares. Em meio a tanta brutalidade, praticada por homens, ressalte-se, a música vem sendo um alento para nos trazer de volta a esperança na humanidade.

O assassinato do estudante Edson Luís não somente inspirou protestos, que culminaram na Passeata dos Cem Mil, mas também duas composições de Milton Nascimento. Uma delas, feita em Wagner Tiso, virou tema da reabertura democrática e era a música preferida de Tancredo Neves, Coração de Estudante. O coração de estudante era o de Edson Luís, que parou de bater com a bala disparada contra seu peito. Outra canção foi Menino, com Ronaldo Bastos, aquela que começa “Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte”. A quem assiste à violência e à injustiça, Menino dá duas opções: “Quem cala, morre contigo” ou “Quem grita, vive contigo”.



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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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