Mirante

Tame Impala e a pressa lenta

TEXTO Débora Nascimento

29 de Fevereiro de 2020

FOTO Reprodução

No mês de fevereiro, a temperatura na Antártida ultrapassou o registro recorde de 20 graus, número que, segundo especialistas, ainda será confirmado e que pode não ter ligação direta com o aquecimento global, pois seria um pico proveniente de um fenômeno meteorológico específico, sendo mais preocupantes as temperaturas médias registradas ao longo de décadas e o derretimento das geleiras. Diante dos alertas que estão sendo enviados a nós pela natureza, o que estamos esperando para ficarmos desesperados e cobrarmos atitudes dos governantes? Os líderes mundiais deveriam estar neste momento reunidos para salvar o planeta. Na realidade, salvar a humanidade, pois a Terra continuará existindo e bem melhor, sem a nossa presença nela. Mas a maioria deles está mais preocupada em iludir, usurpar o povo e salvar a própria pele.

No dia seguinte à notícia dessa assombrosa temperatura no continente antártico, o Tame Impala lançou seu quarto disco, o aguardado The slow rush. Desde a audição da primeira faixa, a dançante One more year, a impressão é que boa parte do disco poderia embalar a festa de despedida da raça humana, pedindo mais um ano para tentar reverter o que já deveria ter sido revertido: segundo os cientistas, temos uma década para tomar as medidas necessárias que salvarão a nossa espécie. O que sabemos em termos práticos é que a temperatura do planeta vai aumentar, mas este aumento não pode ultrapassar o limite de 1,5 graus celsius, pois significa que haverá uma calamidade global. A boa notícia é que a Terra vai permanecer. Mas nós não.

Na longa lista dos discos que eu salvaria para as futuras gerações da espécie que nos substituiria no futuro está o novo do Tame Impala e os três anteriores. Curiosamente, The slow rush quase sofreu o impacto do superaquecimento global. Em novembro de 2018, devido aos incêndios em Malibu (que culminaram com a morte de 80 pessoas), Kevin Parker, músico responsável pelas composições, foi obrigado a sair da casa que tinha alugado. “Era quase como uma piada – ‘Sua casa está pegando fogo, o que você pega?’”, contou em entrevista na época. A ordem das autoridades, enviada pelos celulares, era a de evacuação da área. Kevin deixou a residência apenas com um baixo Höfner e uma mochila nas costas. Dentro dela, estava o laptop com algumas das músicas do novo disco. “Eu literalmente pensei que voltaria em algumas horas.” Mas a casa tinha sido totalmente incendiada. Ele perdeu U$ 40 mil em equipamentos. O mais importante, porém, foi salvo: sua vida e o disco.

Cinco anos após Currents (álbum que transformou o Tame Impala de tesouro indie em headliner dos principais festivais de rock do mundo), The slow rush pode ser encarado como uma espécie de sequência do álbum anterior, aprofundando a disco music psicodélica e o tom confessional de Parker. Um exemplo dessa franqueza é a faixa Posthumous forgiveness, dedicada a seu pai, que morreu de câncer no começo da carreira do filho. A música é dividida em dois momentos, o primeiro traduz em sons os sentimentos conflitantes de um filho negligenciado pelo pai; a segunda parte da música representa o perdão póstumo e a declaração de amor de quem queria apenas o reconhecimento e o orgulho paternos.

O pai de Kevin Parker não descobriu a tempo o talento do filho, mas os fãs e a crítica sim, sendo comumente denominado de gênio pela imprensa especializada. Embora seja tratada como banda, (não custa lembrar que) o Tame Impala é resultado da genialidade desse australiano de 33 anos, um esteta da música retrô, um nerd de gravação, que, além de compor, toca todos os instrumentos, arranja, produz e grava suas composições em estúdio caseiro.

The slow rush foi gravado no período de um ano. E, ao longo desse tempo, algumas músicas iam sendo liberadas, como Borderline, It might be time, Lost in yesterday e Patience (grande canção, com piano no estilo Bennie and The Jets, de Elton John, que acabou não entrando no disco). A cada lançamento de uma nova canção e com a demora da chegada do álbum, a impressão que dava é que Kevin estava observando o feedback do público, para balizar como seria o resultado final do disco. Não é uma suposição descartável, afinal, quantas bandas perderam seu fascínio após um, dois discos aclamados? E, em 2015, o Tame Impala parecia ter chegado ao seu ápice com Currents.

Dentre as melhores das inéditas de The slow rush, estão a faixa de abertura One more year (que nos remete a One more time, do Daft Punk, de 2001, e mostra a maturidade de Parker na utilização de sintetizadores), Breathe deeper, Tomorrow’s dust (faixas que dialogam) e It’s true, composta e gravada em sete horas no mesmo dia em que o músico teve que entregar o disco para a masterização em Nova York. Todas essas músicas podem ser tocadas em pistas de dança, mais uma vez contrariando os antigos fãs do Tame Impala que ficaram pelo caminho depois que a banda deixou de lançar rocks psicodélicos, que inspiraram outras bandas mundo afora, como a brasileira Boogarins.

O primeiro disco do Tame Impala, Innerspeaker, de 2010, trouxe a sensação de que o álbum era uma espécie de continuação da faixa Tomorrow never knows (Revolver, Beatles), inclusive o timbre vocal de Parker, com a contribuição de reverb, lembrava o de John Lennon. Quando apresentei esse disco a um velho fã dos Beatles, contemporâneo dos lançamentos dos Fab Four, ele ficou emocionado como se o próprio Lennon estivesse fazendo música novamente. O disco seguinte, Lonerism (2012), trouxe a mesma atmosfera do anterior e mais canções que estabeleceram o Tame Impala como um dos melhores nomes do rock do começo da década e uma das bandas queridinhas dos festivais, com canções que se tornaram clássicas como It feels like we only go backwards e Mind mischief.

Em 2012 e 2013, no rastro da circulação mundial, a banda fez shows no Brasil, pelo Popload Gig, no Cine Joia, um espaço cultural no centro de São Paulo com capacidade para 1 mil pessoas. E em 2014, pelo Popload Festival, na Barra Funda. Parecia que o Tame Impala viraria nome frequente de shows no Brasil. Porém, um fenômeno aconteceu. Em 2015, Parker lançou Currents, mais uma prova de seu brilhantismo, alçando a banda à protagonista dos maiores festivais de rock do mundo, com hits como Let it happen (obra-prima) e The less I know the better. E o Tame Impala somente voltou ao país para tocar no Lollapalloza de 2016. O cachê do grupo deve ter quintuplicado com a repercussão de Currents, que recebeu, em 2016, o Grammy de Melhor Álbum de Música Alternativa.

Nascido na Austrália em 1986, Kevin Parker vai começar a turnê do novo disco do Tame Impala neste mês – ainda não foram anunciadas datas no Brasil. Do valor arrecadado na turnê, doará U$ 300 mil para seu país, que também foi atingido por outro megaincêndio provocado pelo superaquecimento global, devastando mais de 10 milhões de hectares, uma extensão maior que a de Portugal (9 milhões de hectares), matando 1 bilhão de animais e 27 pessoas. A fumaça da tragédia ambiental deu uma volta no planeta, passando também pelo Brasil e pela Antártida.

Enquanto vai destinar parte do valor arrecado da turnê ao meio ambiente, Kevin Parker entra na contradição contemporânea: cumprir o roteiro de shows por diversos países significa pegar muitos voos, contrariando o movimento encampado por diversos ambientalistas, como Greta Thunberg, para que as pessoas evitem ao máximo usar avião, transporte responsável por emitir toneladas de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Do total das emissões turísticas (8%), os voos representam 20% — um avião é 20 vezes mais poluente que um trem, segundo dados da Agência Europeia do Meio Ambiente. Desde 2015, Greta costuma viajar de trem ou veleiro.

Escolhida em 2019 como personalidade do ano pela Time, a ativista foi deliberadamente chamada de pirralha pelo ocupante do Palácio do Planalto, aquele que quer salvar sua própria pele, em detrimento da democracia e do meio ambiente. O Brasil piorou. A última vez que o Tame Impala tocou no país foi em 12 março de 2016. De lá para cá, muita coisa inacreditável aconteceu. Esse disco demorou cinco anos para sair, e estávamos precisando dele. Vamos sempre precisar da música para renovar a nossa energia em meio a esse mundo injusto, cruel, caótico e à beira de mais tragédias ambientais. Estamos na corrida contra o tempo. Depois não adianta pedir one more year à natureza.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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