Mirante

Virá! Impávido que nem Muhammad Ali

TEXTO Débora Nascimento

29 de Agosto de 2019

O combatente político Muhammad Ali

O combatente político Muhammad Ali

Foto Reprodução

A História é implacável com os autoritários, que são, por sua própria natureza, injustos e covardes. Mas também com os que se acovardam diante das injustiças dos autoritários. Estes não escapam ao filtro do tempo. A História, ao lançar seu olhar ao passado, identifica aqueles que não ladearam as causas incontestáveis. E uma delas, hoje, no Brasil e no mundo, é o meio ambiente. Porque o nosso futuro, como espécie, obviamente depende dele. Ao abraçar essa causa, ninguém vai virar lulista, esquerdista, comunista. A não ser na cabeça dos que consideram como tais aqueles que ousam discordar das inconsequências do ocupante do Palácio do Planalto, mesmo que este não tenha comprometimento com o meio ambiente, como ficou evidenciado com as terríveis queimadas na Floresta Amazônica.

O mundo assistiu horrorizado às chamas consumindo em poucos dias parte da sagrada vegetação que filtra o nosso oxigênio e contribui com o equilíbrio do ecossistema. Com isso, não demorou para que diversos artistas – com milhões de seguidores nas redes sociais – se pronunciassem, a exemplo de Madonna, Leonardo DiCaprio (produtor do documentário Uma verdade inconveniente, de 2006) e até Anitta, anteriormente acusada de isenção durante a campanha do #elenão e, logo, de caroneira do pink money – usufruindo do “dinheiro rosa” de seus fãs LGBTs, sem se comprometer com as causas que envolvem esse público, erro que a mencionada Rainha do Pop aprendeu muito cedo a não cometer.

A pauta do meio ambiente, no entanto, é a mais agregadora de todas. Costuma ser o consenso universal, atraindo vozes não somente de ativistas de esquerda, mas também de direitistas, celebridades, playboys, modelos, blogueirinhas e aspirantes. Já virou até questão abordada e cantada por Roberto Carlos em música, naquele disco de 1989, cuja capa apresenta o Rei com uma pena no cabelo: “Amazônia, insônia do mundo...”

Enquanto o mundo está insone, alguns artistas evitam manifestar solidariedade ao próprio país e à própria vida, sem postar nada sobre o fato chocante. Nem mesmo uma foto da Amazônia em chamas, uma singela árvore ou uma mísera folha. Uma possível explicação para essa gritante “neutralidade” de alguns pode ser o receio de contrariar os eleitores intransigentes do ocupante do Palácio do Planalto, evitando, assim, a fúria dos seres que costumam fazer vigília em todos os perfis de famosos, jornais e revistas nas redes sociais, na espreita de alguma notícia ou opinião que os contrarie, para rebater e constranger com reclamações equivocadas e ofensas gratuitas. E não estamos falando de robôs, mas gente de carne, osso, preconceito e grosseria.

A propósito, por falar em artista/celebridade que se posiciona em prol de uma causa, não pode passar despercebido o lançamento do documentário What's my name: Muhammad Ali (HBO, 2019). Lançado três anos após a morte do esportista, o filme narra a busca implacável para se tornar o melhor boxeador do mundo. Em paralelo, o documentário mostra que Ali nunca se esquivou de abraçar causas importantes, mesmo ainda bastante jovem. Com 20 e poucos, já estava ao lado de Malcolm X e de Martin Luther King contra o racismo nos EUA.

Dois momentos que exemplificam sua postura são destacados no filme: quando, em 1967, recusou-se a se alistar na Guerra do Vietnã, após ser convocado. Na época provocou um escândalo, foi chamado de antipatriota. Embora praticasse um esporte considerado violento, Ali era pacifista e consciente de que não queria ser massa de manobra do governo, garoto-propaganda da guerra anticomunista e mais um soldado negro a morrer pela pátria que desprezava os negros. Sabia que seu heroísmo seria reconhecido de outra forma. “Não vou percorrer 10 mil quilômetros para ajudar a assassinar um país pobre simplesmente para dar continuidade à dominação dos brancos sobre os escravos negros”.

Por causa dessa rebeldia, o boxeador perdeu o título de campeão mundial e o direito de lutar. Ainda foi processado, correndo o risco de ser condenado a cinco anos de prisão. Mas o Supremo Tribunal de Justiça o absolveu, sob a justa alegação de que o alistamento contrariava sua religião, o Islamismo, que, em 1964, o fizera mudar de nome, deixando para trás o antigo Cassius Clay. Para ele, o nome remetia ao passado escravizado de sua família. “Cassius Clay é o nome de um escravo. Não foi escolhido por mim. Eu não o queria. Eu sou Muhammad Ali, um homem livre.”

Outro momento importante registrado pelo documentário foi quando, em 1990, Ali, já aposentado, viajou a Bagdá para tentar uma reunião com Saddam Hussein. Esperou uma semana, mas finalmente ficou frente a frente com um dos ditadores mais sanguinários da história e o convenceu a libertar 15 reféns norte-americanos. “Aquele que não é corajoso o suficiente para assumir riscos não conseguirá alcançar nada na vida”, dissera o boxeador. Voltou aos Estados Unidos levando os 15 homens brancos para suas casas – que tal essa resposta ao racismo? E por um negro que sempre se colocava altivo diante dos brancos.

Seu trunfo para obter no Iraque tal feito – maior que os quatro títulos mundiais que conquistou – eram os imensos carisma e inteligência, evidenciados nos trechos das entrevistas exibidas pelo documentário. Nelas, os jornalistas se deleitavam e muitos não conseguiam esconder a admiração e a adoração pelo esportista. As falas de Ali, antes do surgimento das sequelas do Mal de Parkinson, eram sempre ágeis, brilhantes, perspicazes, bem-humoradas. Quando não vinham em formato de rimas. Ele costumava fazer e declamar seus versos sobre as lutas mais importantes. E também escrevia poemas a respeito da questão racial.

Três anos após a morte do maior boxeador do mundo, seu nome esteve na boca de diversos manifestantes que estiveram na orla de Ipanema para protestar contra as queimadas na Amazônia, no último domingo (25/8). Naquele mesmo dia, internautas questionavam a presença de Maitê Proença no protesto. No ano passado, a atriz havia apoiado, em vídeo, o ocupante do Palácio do Planalto (“Ele ganhou porque ele foi autêntico!”, foi uma de suas frases), responsável agora pelas queimadas na Amazônia. Em certo momento, Caetano Veloso, que estava à frente da manifestação e manteve uma cautelosa distância da atriz, entoou Um índio à capela, seguido pelas vozes em uníssono dos presentes. Naquele momento, o heroísmo glorioso do lutador foi novamente evocado:Virá! Impávido que nem Muhammad Ali”.

O documentário What's my name: Muhammad Ali, que eterniza o espírito grandioso desse homem, é um encorajamento aos que têm uma luta de muitos rounds para enfrentar.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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