Reportagem

O eclipse da cultura no Brasil? | Debate ou guerra?

TEXTO LUCIANA VERAS E OLÍVIA MINDÊLO

ILUSTRAÇÕES THIAGO LIBERDADE

05 de Agosto de 2019

Ilustração Thiago Liberdade

[conteúdo na íntegra | PARTE 4 | ed. 224 | agosto de 2019]

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Em 2017, a artista visual gaúcha Romy Pocztaruk expunha a série Bombrasil no 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP, e nela perpetuava sua investigação sobre o ideário de um Brasil apartado da imagem projetada no glorioso passado da ditadura em relação ao presente contraditório. Como queremos ser o país do futuro se não sabemos lidar com o passado? Menos de dois anos depois, Romy se diz “assustada”: “Como artista e professora, parece que estou na linha de fogo. A sensação que tenho é de que nos tiraram o chão. Por um tempo, vivemos a fantasia de que um outro Brasil seria possível. Hoje, com tudo que já foi destruído simbolicamente, parece que ficamos esperando um futuro que nunca aconteceu”.

Eis uma vereda simbólica e fértil para contestação de narrativas e combate ideológico. “Nós, os jornalistas e professores universitários representamos uma ameaça concreta. Eles têm medo de ideias”, registra Juliano Dornelles, codiretor de Bacurau. “O mais espantoso é isso: o ódio aos artistas, aos intelectuais, aos cientistas, aos educadores. Chico Buarque ganha o prêmio Camões, o Brasil conquista dois prêmios em Cannes, e o silêncio dos que estão no poder é ensurdecedor. O país perde um de seus artistas mais notáveis, João Gilberto, que projetou a bossa nova no mundo inteiro, e a postura dos atuais governantes é ignorar, como se o país construído por Oscar Niemeyer, Sérgio Buarque de Hollanda, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto tivesse que ser esquecido”, anota a jornalista Maria do Rosário Caetano.

Para a extrema direita, por sua vez, existe uma “doutrinação da esquerda”, mas qualquer argumento contrário é refutado. O campo das ideias é uma negociação, mas agora soa como um “cale-se”. Uma das demonstrações recentes de que a polarização no Brasil ainda não abrandou se deu com a indicação do diretor de teatro e dramaturgo Roberto Alvim para a direção do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional das Artes (Funarte), cargo que, segundo ele, deve assumir este mês (até o fechamento desta matéria, sua nomeação ainda não havia saído no Diário Oficial da União). Com 30 anos de carreira, Alvim se considera, atualmente, “uma vítima da guerra cultural sórdida, assimétrica, perpetrada pela esquerda brasileira”, e que ele vem presenciando neste tempo de construção da democracia brasileira.

“No momento em que declarei meu apoio ao presidente Jair Bolsonaro, no final de 2018, fui absolutamente linchado. A classe teatral do país inteiro me chamou de nazista, fascista, disse que eu ia ser apagado da história do teatro, que eu estava morto para a cultura, todas as instituições fecharam as portas, que antes me abrigavam, e eu me vi, em maio deste ano, com meu teatro falido”, expôs à Continente, referindo-se à sua Companhia Club Noir, em São Paulo, cuja sustentação se deu também, até pouco tempo, por meio de editais e prêmios públicos os quais ele acusa de ideológicos, cerceadores da diversidade criativa, mas que aprovaram projetos desenvolvidos por ele com liberdade e sem a pecha de esquerda ou de direita.

Diante do clima hostil das últimas eleições, do choque de visões de mundo e da enxurrada de fake news via WhatsApp, conflitos dessa natureza seriam inevitáveis, como foram em vários pontos do país. Uma facada de um lado, um mestre de capoeira morto do outro, uma jovem com broche do Ele não espancada no Recife, uma mulher que se mutilou com uma suástica, um gay estapeado na rua, um negro baleado no Ceará, em plena passeata, ou seja, uma síndrome de pânico coletiva. Com muito ressentimento envolvido, o ódio estava no ar. A loucura e o desespero, também. Frente à sombra da história, como lidar com um candidato que, como deputado, havia evocado a memória de um torturador da ditadura militar em pleno Congresso? Ou que, durante a campanha, afirmou que colocaria um ponto final no ativismo do país? Como resolver as tensões? Lula havia sido punido, preso, como segue até hoje, mas era preciso “varrer os vermelhos do país”. E quem seriam os “vermelhos”?

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Extra: Leia nosso artigo sobre o ressentimento na política
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Como resposta à indicação de Roberto Alvim, a Associação de Servidores da Funarte (Asserte) publicou, no dia 20 de junho deste ano, um manifesto de repúdio externando preocupação com “a cruzada ‘conservadora’ que este senhor diz querer empreender afronte os direitos e garantias instituídos pela Constituição Federal Brasileira”. O texto refere-se, por exemplo, a postagens do diretor em seu Facebook, falando sobre “arte de esquerda” como “doutrinação”, e a suposta criação de uma “máquina de guerra cultural” em sua futura gestão.

“Não falei que vou fazer uma guerra cultural, falei que estamos imersos nela”, apregoa o artista, que faz questão de ressalvar que “de maneira alguma” vai fazer como “eles”, transformando “obra de arte em veículo de propaganda de direita”, porque não é “idiota”. Um “ex-esquerdista” declarado e agora admirador de Olavo de Carvalho, Alvim assume-se, hoje, um conservador, graças a um milagre, segundo relata, de ter sido curado de um tumor no intestino após uma oração. Desde então, devota-se ao cristianismo, cuja tradução, no campo da política, é, para ele, a própria direita – embora haja cristãos devotos do lado à esquerda da história. É uma questão de interpretação. A discussão é complexa e, segundo a Constituição Federal de nosso país, o Estado brasileiro é laico.

Para a Funarte, sua proposta é fazer uma revitalização dos teatros nacionais e convidar diretores artísticos para gerir companhias públicas onde encenarão obras de autores renomados mundialmente e dramaturgos brasileiros contemporâneos, além de promover ações de formação e curadoria de outros espetáculos para ocupar a programação de 14 equipamentos, onde estarão alocadas as companhias. Além disso, vai dirigir uma companhia subsidiada pelo governo federal para honrar os “mestres do passado”, condição posta por ele ao presidente, já que, “mais do que um funcionário público”, é um artista. Para isso, não acumulará dois salários, diz, mas duas funções.

“Considero as declarações em um nível alto de desinformação e uma visão simplista do que são as atribuições do Centro de Artes Cênicas da Funarte e da própria Funarte. Em primeiro lugar, só tenho ouvido o Alvim se referir a teatro, e o centro tem atribuições relacionadas ao circo e à dança, linguagens com muita relevância e capilaridade que não podem ser subjugadas”, comenta Leonardo Lessa, também ex-gestor do cargo que o diretor ocupará no Rio de Janeiro, cidade-sede da fundação. Sobre esse ponto relativo a dança e circo, Alvim respondeu que está em discussão e disse que pretende manter os prêmios Myriam Muniz, Klauss Vianna e Carequinha, consolidados há mais de 10 anos.

“Sobre os projetos de companhia e escola estatais, é uma incompreensão do papel da Funarte, que pode ser muito mais uma articuladora, formuladora, provocadora de ações no âmbito mais federativo, junto a estados e municípios, do que uma instituição centralizadora, detentora de estruturas e equipamentos”, contrapõe Lessa, complementando também haver um desconhecimento por Alvim da precariedade estrutural da Funarte e das dificuldades de infra-estrutura, recursos, cargos, servidores com as quais suas propostas irão se deparar.

O vocabulário atual de Alvim inclui palavras como exército, bombardeio, propaganda ideológica e guerra, um repertório traumático na história da humanidade. “O grande problema do Brasil é o apagamento da história do teatro, dos grandes clássicos. Isso gerou uma cena muito desmazelada na contemporaneidade. É preciso que se compreenda isso e fazer um bombardeio dessas diferenças para que, em honra a essa arte de 2.500 anos, a gente tenha a ambição de construir obras de arte, hoje, de grandeza semelhante. Esse é o princípio conceitual que vai nortear minha gestão, para a criação de um referencial de alta cultura”, engata ele, cuja experiência com política e gestão pública resume-se a três anos como diretor artístico na Sala Paraíso, do Teatro Carlos Gomes (2001-2004), e mais dois em função semelhante no Ziembinski (2005-2007), ambos vinculados à Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro.

Seu belicismo encontra respaldo nas falas do cineasta e escritor pernambucano Josias Teófilo. Em 2017, ele lançou O jardim das aflições, documentário sobre o filósofo Olavo de Carvalho. A obra foi premiada no Cine PE – Festival do Audiovisual, numa edição da qual vários filmes se retiraram em protesto à seleção da sua ode ao guru bolsonarista, adepto do achincalhamento nas redes sociais e tido, por alguns, como um dos maiores filósofos vivos do país. “Acho bom o Ministério da Cultura ter acabado, para evitar esse tipo de coisa como Ana de Hollanda ter sido ministra, porque essa senhora não tinha capacidade para ser ministra da Cultura. Nem Gilberto Gil tinha. Mas os editais não acabaram, o dinheiro para a cultura não acabou, os teatros não fecharam, a Funarte não acabou. Agora precisa de ministro? Isso tudo foi uma vergonha. Quem faz a cultura é a sociedade. O dirigismo cultural é a pior coisa que existe”, teoriza Josias, que ainda neste ano pretende lançar Nem tudo se desfaz, no qual defende sua tese sobre a ascensão de Bolsonaro a partir das jornadas de junho de 2013.

Tanto ele quanto Alvim se dizem a favor da Rouanet, afirmando ter sido um erro da direita essa profusão de desinformação. Mesmo assim, Josias fala em “dirigismo cultural”: “No edital do Funcultura, vem dizendo o tipo de filme que tem que se fazer, com a temática. Eu digo: ‘Mas quem é o governo que deve dizer qual o filme que deve ser feito e qual o filme que não deve ser?’ Onde já se viu um negócio desse? Que coisa ridícula! Essa história de que deve ser feito filme sobre quilombolas, deve ser feito filme sobre LGBT, não sei o quê. Esse dirigismo cultural acabou. Os filmes têm que vir da sociedade e o governo deve ajudar na medida do possível e, de preferência, não atrapalhar, entendeu?”

Com relação às críticas da direita aos editais de viés ideológico, ou “dirigismo”, o gestor cultural e jornalista Tiago Montenegro, que atuou oito anos na comunicação da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) e da Secretaria de Cultura do estado, afirma que a construção dos mecanismos de seleção de projetos culturais não é uma imposição de um partido ou um governo, mas resultado de demandas sociais de seu tempo em diálogo com o Estado. Essa é a proposta das democracias contemporâneas. “Essas demandas são por representatividade. Têm a ver com o tempo em que vivemos, com o questionamento de quem somos, com as nossas urgências. O edital do Funcultura Audiovisual, por exemplo, reflete hoje conquistas de movimentos ligados às pautas de gênero e raça, de pessoas que lutam pelo direito de mulheres negras dirigirem seus filmes, narrarem sua verdade artística, como se percebem no mundo. É o lugar de fala e o argumento da direita é, na verdade, contra o lugar de fala de populações historicamente oprimidas e renegadas”, explica ele, sem entrar no mérito artístico disso, mas ressaltando que esse discurso sobre dirigismo é antidemocrático.

“Não é apenas o poder público, é a sociedade civil exercendo o controle social. Se quem define é a sociedade, o que temos hoje é um retrato possível da articulação dessa sociedade. No caso de Pernambuco, os editais têm sido discutidos e aprovados no Conselho, que deliberou por pontuações diferenciadas para produções de indígenas, por exemplo. Parece óbvio que o pensamento de esquerda, alinhado a estratégias de reparação histórica, tem se destacado mais nessas instâncias ao longo dos anos”, aponta Tiago.

Uma parte da direita, como é o caso de Roberto Alvim, diz que a esquerda nunca se importou com negros, gays, mulheres, usando as pautas identitárias como “massa de manobra” para se sustentar no poder. Tal formulação ignora uma luta legítima de movimentos sociais ao longo da história, entre elas, a emergência das chamadas minorias, que pressionaram partidos, governos e até mesmo empresas e produtos a considerarem a diversidade de suas existências. Há pelo menos 40 anos, já havia manifestações nos Estados Unidos pelas liberdades individuais, sem contar a luta dos negros norte-americanos por espaço na sociedade que até hoje os violenta.

Eis uma pauta encampada, inicialmente, pelo liberalismo e pela social-democracia, não pelo socialismo. As esquerdas e direitas contemporâneas abraçaram isso de diferentes formas, mas não quer dizer que resolveram completamente as questões. Porque o Estado conduz, mas a sociedade aponta. Vai além da dicotomia política e do desejo por divisões sociais, a realidade é complexa, multidimensional e envolve disputa. Mas se numa democracia os conflitos e incômodos podem se resolver no debate, no afeto e na empatia, em governos autoritários ou pseudodemocráticos, não temos esta opção.

Continua:

PARTE 5 | O eclipse da cultura no Brasil? | Perspectivas

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