Reportagem

Palcos voltados à questão negra

Festivais Feteag e Cena Cumplicidades apostam em temas sociais urgentes (ainda) na contemporaneidade, como o racismo, o lugar do negro no mundo e a herança africana

TEXTO Erika Muniz

18 de Outubro de 2017

A atriz e performer Ntando Cele provoca o público em

A atriz e performer Ntando Cele provoca o público em "Black off", na programação do Feteag

Foto Júnior Aragão/Divulgação

“O projeto racial brasileiro, curiosamente, opera como uma ideologia antirracista, a ideia da democracia racial. O racismo no Brasil tem essa característica de ser encoberto, mas também aversivo. Há uma defesa pública da igualdade, mas no espaço privado os indivíduos só mantém contato com gente da mesma raça. Além disso, frequentemente nos deparamos com exemplos nítidos de racismo institucional, caso da prisão do Rafael Braga ou da declaração do comandante da Rota, segundo quem os moradores dos Jardins não podem ser tratados da mesma forma que os habitantes da periferia. Sempre há a vontade, a intenção, de mascarar a discriminação no Brasil.” A declaração é um fragmento da fala do professor e doutor em Direito Constitucional Adilson José Moreirada, dita na entrevista à revista Carta Capital deste mês. O depoimento veio quando foi questionado sobre a existência de peculiaridades do racismo no Brasil. 

A discriminação – seja ela de ordem racial, étnica, cultural, política ou de gênero – não é exclusividade desta geração. Assola a terra brasilis desde o princípio até hoje. Vivemos tempos – e espaços, sejam eles virtuais ou físicos – em que tem crescido o número de casos bravando discursos de ódio, ausência de se perceber no outro e atos de extrema intolerância. Há quem diga que sempre existiu, mas com a internet só tem vindo cada vez mais a público. E são nessas fissuras que muitas obras artísticas encontram toda sua potência e capacidade de suspensão. Pelo visto, é justamente nesses sulcos sociais que as artes, nas mais variadas linguagens, têm penetrado. Atendo-se às produções que usam o corpo como força de expressão, temáticas urgentes como identidade, ancestralidade e racismo têm permeado um grande número de espetáculos, por exemplo. Não só no Brasil. Afinal, são questões de diversas partes do mundo, mesmo que cada país/região guarde suas peculiaridades. Prova disso é a programação de dois festivais de artes cênicas que chegam estes dias ao Recife e a outras cidades do estado, como Caruaru e Olinda: a 27ª edição do Feteag, Festival de Teatro do Agreste e o 7º Festival Cena Cumplicidades.

Apesar de trazerem linhas curatoriais distintas, há convergências entre os eventos. Além de ocuparem espaços cênicos da capital pernambucana, apostam no grande número de espetáculos que evidenciam reflexões sobre nossa herança cultural oriunda da África, além do lugar do negro na sociedade atual. Os curadores do Feteag, Fábio Pascoal e Marianne Consentino, optaram, nesta edição, pelo tema Africanidade como proposta. Ano passado, a temática Corpos fluidos permeou os limites entre a dança, a performance e o teatro; agora é a vez de um mergulho além dessas fronteiras e, por isso, a programação formada por companhias nacionais e internacionais com este mote, distribuída em diversos espaços do Recife e de Caruaru. Toda a programação é gratuita.

Na capital, a abertura é nesta quarta (18/10), às 20h, no Teatro Apolo, e já acontece com um dos destaques do evento: o espetáculo Black off, de autoria da atriz e performer sul-africana Ntando Cele em parceria com Raphael Urweider. Nele, que é uma mescla de stand-up comedy, show de punk e performance, a artista coloca em cena, a partir de uma abordagem irônica e de um humor mordaz, o enfrentamento de esteriótipos racistas tão presentes na sociedade. Não há uma tentativa de unificar as experiências vivenciadas por todos os negros, ela afirma, visto que é a partir de suas próprias vivências enquanto mulher e negra que parte sua criação.

Black off é dividida em duas partes: na primeira, Ntando assume seu alter ego Bianca White; na segunda, lida com esteriótipos de diversas mulheres negras para, a partir daí, tentar decifrar como o público as vê. Uma das características de seus trabalhos é que ela propõe uma recriação de sua própria identidade em cena. Ela repete a apresentação na sexta (20/10), em Caruaru, no Teatro Rui Limeira Rosal.


Branco, peça que estreou na MITsp este ano. Foto: Guto Muniz/Divulgação

Ainda sobre a temática do racismo, mas desta vez a partir de diretores (Alexandre Dal Farra e Janaína Leite) e elenco formados por pessoas brancas, compõe a seleção do festival caruaruense Branco: O cheiro do lírio e do formol (Tablado de Arruar/SP). A polêmica peça estreou este ano na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), onde Ntando também se apresentou. Nela, a questão da negritude também serve de mote. “Nunca era pra ser um espetáculo sobre racismo. Ele perpassa esse tema. No máximo, é um espetáculo sobre a questão do privilégio do branco. Não se propõe a entender o racismo. No começo, ela tinha essa pretensão, mas foi se modificando. Na primeira versão, eu achava que poderia colocar o meu ponto de vista. Mas meu ponto de vista não existe, porque o fato de ele não existir já é o racismo”, explica o diretor paulistano sobre Branco. A encenação, a primeira em Pernambuco, acontece no Teatro Hermilo Borba Filho, no sábado (21/10), às 20h.

CENA CUMPLICIDADES
O festival Cena Cumplicidades, por sua vez, traz uma proposta mais experimental e ocupa espaços do Recife, como os teatros Apolo, Hermilo e Santa Isabel. A novidade é que algumas apresentações acontecerão na Igreja da Sé (Palco Petrobras), em Olinda. É a primeira vez, inclusive, que a locação recebe apresentações de dança (todas elas no domingo, 29/10).

Dois desses trabalhos enveredam pelo universo da dança afro. O primeiro, às 15h, é o Reencontro Angola-Brasil, do balé Tradicional Kilandukilu (Brasil/Angola), com o grupo Pé no Chão, no qual os bailarinos apresentam músicas cantadas em línguas faladas no país africano que provocam reconhecimento às suas origens étnicas; deles e do público. O seguinte é resultado da residência artística Overseas Culture Interchange, idealizada por Mélanie Freguin e Arnaldo Siqueira (curador do festival): o espetáculo História contêiner (Brasil/Moçambique). Os três bailarinos, o carioca Diogo Ricardo, René Loui (Minas Gerais) e o moçambicano Manuel Castomo, são radicados em terras nordestinas e a partir de suas vivências, um se propõe a testemunhar as experiências do outro.


História contêiner (Brasil/Moçambique). Foto: Divulgação

Castomo, além disso, desenvolve um trabalho com aulas e pesquisa a comunidade Xambá, em Olinda, e defende que diferentes culturas e territórios se unam para agregar diversos conhecimentos. “A dança é universal, a linguagem do corpo é universal. A relação entre as pessoas, independente de cor, que é uma das coisas mais faladas no Brasil, mais discutidas. Nós precisamos de cortar o fio da escravidão, se aproximando das pessoas, o olhar muda. Se a gente der um passo, vamos continuar se afastando. Por isso é muito importante que a gente viva em conjunto, olhe os outros espaços, além de participar dos movimentos e incluir outras pessoas dentro de nossas comunidades. Acho isso importante, é um trabalho de fluxo, de relações humanas acima de tudo”.

ERIKA MUNIZ, formada em Letras, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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