Resenha

A natureza violenta por Jordan Peele

Autor do cultuado 'Corra!', diretor foca nas várias faces e origens da violência com o horripilante 'Nós', que se baseia na ideia de duplos opostos e entra em cartaz nos cinemas nesta quinta (21)

TEXTO João Paulo Barreto

21 de Março de 2019

Lupita Nyong’o é Adelaide. E seu duplo oposto, Red

Lupita Nyong’o é Adelaide. E seu duplo oposto, Red

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Jordan Peele apresenta em seu novo filme, Nós (Us), uma pungente análise da crueldade que fica à espreita. A crueldade que dobra indivíduos e os faz ceder perante aquele sentimento impetuoso vinculado ao sadismo, capaz de vir à tona a qualquer momento. Aqui, a teoria do doppelgänger, originária da cultura alemã e que defende que cada pessoa possui sua cópia oposta em algum lugar, guia o roteiro de Peele. Em sua proposta, a ideia de que as faces da maldade se fazem presentes em todos se sobressai. Mas essa é apenas uma das várias que o cineasta explora em seu rico estudo do comportamento humano e o limite (ultrapassável ou não) definido para este pela violência. Na história da família Wilson, cuja mãe de dois filhos, Adelaide (Lupita Nyong’o), carrega um trauma vinculado à infância, o reencontro da personagem com esse trauma, e as consequências desse mergulhar, é o que move a trama que, sob uma camada de horror slasher, promove uma reflexão precisa acerca do limiar da natureza violenta que cada um pode possuir.

Enquanto em Corra! (Get out, 2017), seu filme de estreia, Jordan Peele criou um ácido e genial texto acerca do racismo e suas formas de manifestação, em Nós, apesar de trazer uma família de protagonistas negros, essa proposta não segue para uma discussão esperada por muitos espectadores acerca desse fato. Aqui, a violência atinge todos, não somente a família afro-americana formada por Adelaide, Gabe e filhos, mas também a de seus amigos caucasianos, cujo encontro com seus duplos se dá na mesma forma sanguinolenta e vingativa. Em Nós, essa violência atinge e se origina em todos, independente da etnia, do gênero ou da classe social. Essa natureza violenta habita a superfície comum e é justamente essa a ideia que Peele quer trazer em seu filme. O mal está na violência e na cultura associada a ela.



ALEGORIA CATÁRTICA
Há diversos túneis não utilizados no subterrâneo de cidades estadunidenses, diz uma das linhas do texto que abre Nós. Descobriremos a razão para tal inserção textual de modo gradativo, quando a explicação para os duplos que invadem a casa da família Wilson se apresenta. Até lá, a percepção desses túneis como labirintos internos da mente de cada personagem daquela história é plena. São nesses labirintos que a dicotomia entre bem e mal reside. E nada mais sugestivo que os coelhos a habitar um deles, quando a ideia de seguir o coelho branco nos remete a Alice caindo pelo fosso de sua mente. A diferença é que a loucura necessária ali surge de modo mais violento para os que habitam o universo sádico de Nós.

Na alegoria dos duplos (ou doppelgänger), Peele concede uma catarse cinematográfica à reflexão vinculada, ao ultrapassar a linha entre o humano e a barbárie. Porém, do mesmo modo que o diretor brinda os fãs do cinema do gênero com um espetáculo visual que beira ao gore, ele nos permite observar algo além do frenesi sanguinolento. Por trás daquela adrenalina, está a percepção de como a compreensão, o diálogo e – com o perdão do clichê idealizado – o amor podem delinear e construir um destino harmonioso para cada pessoa. O olhar de Adelaide para o seu filho e o desvendar de seu passado que lhe chega ao encerrar aquele trauma dão ao espectador essa mesma conclusão. O meio constrói o indivíduo. As relações humanas os definem.

NÓS SOMOS AMERICANOS”
Todos possuem suas causas. Todos acreditam estar certos naquilo que defendem. Jordan Peele está ciente disso ao inserir em seus duplos uma causa, uma luta por uma sobrevivência que eles exigem possuir e que estão dispostos a cometer atrocidades no intuito de alcançar. E isso independe do fato de eles desconhecerem noções de comunidade e respeito àquilo que é diferente. E, aqui, a importância de salientar que as figuras em questão são espelhos de nós mesmos como seres humanos. Nada nos difere deles fisicamente. E quando se chega ao ponto de sobrevivência, nem mesmo o comportamento explosivo e violento se faz díspar. No entanto, a corrente demonstrada pelas mãos dadas por todos aqueles seres, a percepção de que a maioria que está ascendendo é a aquela do outro lado do espelho, nos aterroriza tanto quanto a ideia de um duplo maligno a nos espreitar no quintal de casa.



Trata-se de uma obra que coloca principalmente os Estados Unidos na análise da violência que parece guiar o país. Mas tal análise não se enquadra aqui apenas ao lugar de origem do roteirista Jordan Peele, podendo ser aplicado a atos de crueldade que nascem do ímpeto de indivíduos oriundos de qualquer parte do mundo. E, da mesma forma como os habitantes do submundo a trajar vermelho no universo de Nós, tais indivíduos estão dispostos a machucar inocentes e a morrer defendendo as insanidades nas quais acreditam. E, claro, o foco aqui é, obviamente, a trumplândia. Afinal, foi lá que um homem abriu fogo contra fiéis de uma igreja do Texas e onde carros foram jogados contra multidões durante uma manifestação em Charlottesville, no estado da Virginia, apenas para ficarmos em fatos recentes.

Quando os duplos da família Wilson surgem pela primeira vez, sua apresentação vem acompanhada pela resposta de Red, oposta de Adelaide, para a pergunta “Quem são vocês?”. A réplica? “Somos americanos”.

Nada mais direto e preciso, Jordan.



JOÃO PAULO BARRETO, jornalista, curador e crítico de cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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