Resenha

'Parasita' e as fissuras do capitalismo

Considerado um dos filmes do ano, o longa do sul-coreano Bong Joon-ho, vencedor da Palma de Ouro, chega como um desses espelhos de 2019

TEXTO Thaís Schio

03 de Dezembro de 2019

No filme, família Kim vive amontoada em um “porão” situado na região periférica da Coreia do Sul

No filme, família Kim vive amontoada em um “porão” situado na região periférica da Coreia do Sul

Foto Divulgação

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Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o novo longa de Bong Joon-ho, Parasita (2019), é uma das apostas mais contundentes para o Oscar 2020. Com bilheteria expressiva dentro do circuito de diversos cinemas nacionais e internacionais, chegando a ser a sexta maior no Brasil este ano, o filme tem sido unanimidade entre crítica e público, façanha notável para qualquer cineasta, especialmente os que retratam realidades distintas do mundo ocidental.

De volta às origens, o diretor sul-coreano – também conhecido pelos longas O hospedeiro (2006), Expresso do amanhã (2014) e Okja (2017), escancara as feridas do capitalismo e do pensamento meritocrático que, como fantasmas, assombram e atiram, aos poucos, os personagens em estado de completa histeria coletiva. Como em Bacurau (2019), dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho, e Coringa (2019), pelo nova-iorquino Todd Phillips, o filme aponta não só um mal-estar sintomático, mas novas formas de abordar uma questão antiga: a luta de classes.

Nos primeiros minutos do filme, somos apresentados, de maneira tragicômica, aos membros da família Kim. Vivendo amontoados em um “porão” situado na região periférica da Coreia do Sul (facilmente confundida com as comunidades urbanas brasileiras), o primogênito Ki-woo, sua irmã Ki-jung, o pai Ki-taek e mãe Chung-sook buscam sobreviver ao desemprego e à fome através de trapaças e soluções criativas, arquétipo historicamente explorado dentro do gênero picaresco espanhol ou da literatura ácida de Ariano Suassuna.

Constantemente perturbados pela presença de bêbados e insetos ao redor da casa, primeira introdução ao conceito de parasitagem, os Kim recebem a visita inesperada do amigo de Ki-woo. Além de os presentear com uma pedra que promete trazer riquezas materiais, o universitário respeitado apresenta ao filho mais velho a oportunidade de ensinar inglês, por meio de artimanhas, na mansão arquitetonicamente planejada da abastada família Park.

A partir de então, as lentes de Bong Joon-ho, voltadas para o absurdo, parecem se movimentar de forma ainda mais dinâmica, acompanhando o infiltramento de toda a família na casa e o ultrapassar de limites em busca da ascensão social. Com domínio de linguagem em vários gêneros, que passam pela comédia de costumes e pelo terror até chegar ao drama social, o diretor apresenta uma destreza hitchcockiana de narrativa, arrancando o público da zona de conforto e o arremessando à realidade de milhões de famílias, ao horror das relações sociais marcadas por conflitos, desejos e hierarquias forjadas pelo capitalismo.

Enquanto é observado por Yeon-kyo, a ingênua e simpática mãe da família abastada, Ki-woo ensina Da-hye, filha mais velha dos Park, a dominar uma prova, mesmo sem nunca ter tido condições para ingressar em uma universidade – “É como cortar através de uma selva. Perca esse instante e você já era”, diz ele. Seu discurso pronto, no estilo coaching, desvela inúmeras outras fissuras dentro de um país considerado oásis asiático, devido ao recente crescimento econômico, e ajuda a compreender o olhar cirúrgico do roteiro de Parasita. Assim como em diversos países, as universidades coreanas não conseguem abrigar o enorme contingente de estudantes, optando por um sistema rigoroso de ingressão que dita perspectivas futuras de empregos, relacionamentos, moradia, entre outros.

Para famílias como as Park – espécie de duplos (ou doppelgänger) ricos, similares ao filme Nós (2019), dirigido por Jordan Peele, pagar por um tutor é uma realidade que torna a entrada e, consequente, manutenção de status social mais fácil. Mas para os Kim, o processo “meritocrático” é pura utopia. Melhor seria não sonhar, como sugere o pai desempregado Ki-taek.

Outra questão tensionada, de forma irônica, é a forte relação comercial do país com os Estados Unidos. Diversas vezes, Yeon-kyo reforça a preferência por mercadorias norte-americanas. Seu filho mais novo, o excêntrico Da-song, também demonstra um fascínio pelo “espírito livre” do índio norte-americano, mas essa admiração é, na verdade, a fetichização de uma cultura estrangeira.

Da mesma maneira, a mansão minimalista com grandes janelas voltadas para um jardim perfeito, outro contraste em relação à janela suburbana da família pobre, representa a plasticidade de um olhar limitado para o mundo externo. Fazendo da casa objeto igualmente plástico, sem personalidade, onde cabem as projeções das classes subalternas.

Distantes da realidade, os Park não conseguem enxergar a dimensão do outro e demonstram total aversão aos problemas e sentimentos de seus empregados, os descartando com facilidade. Na obra A paixão segundo G.H. (1964), livro mais kafkiano de Clarice Lispector, a personagem principal é surpreendida após descobrir o quarto de sua funcionária. Essa atmosfera conflitante provoca uma epifania capaz de tensionar toda as suas perspectivas. Em Parasita, um processo semelhante acontece. Contudo, ao contrário do livro, a violência dessa desigualdade social – simbólica e material – é quem faz as vezes da protagonista. O título “parasita” serve como metáfora para pensar não só a relação entre os personagens, mas toda a estrutura capitalista que sobrevive através da subordinação, incapaz de produzir finais felizes.

THAÍS SCHIO é jornalista em formação e estagiária da Continente.

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