Resenha

Ana Guadalupe das preocupações de sempre

Sendo breve, leve e densa, poeta lança o livro 'Preocupações' e vai na esteira da poesia contemporânea brasileira, dialogando com outras Anas e o doloroso tempo presente

TEXTO Erika Muniz

21 de Julho de 2020

A poeta e tradutora Ana Guadalupe

A poeta e tradutora Ana Guadalupe

Imagem: Efeito sobre fotografia de Fernanda Vallois

[conteúdo exclusivo Continente Online]

hoje não me convidaram para nenhum passeio
nem amanhã
nem amanhã
(versos de não haverá passeio, de Ana Guadalupe)

Entre as primeiras leituras do livro Preocupações (Edições Macondo), de Ana Guadalupe, à escrita deste texto, lá se vai cerca de um mês e 15 dias. Ler, reler, anotar fragmentos e insights que o título provoca. Ultimamente, o tempo tem se encaminhado dessa maneira, confusa e interrompida. E as leituras também seguem esse ritmo, desde que o período de isolamento social começou por conta da pandemia. As leituras encontram-se intercaladas às idas ao supermercado, ao álcool em gel nas mãos e às incansáveis lavagens de produtos no retorno para casa. São constantes na televisão, jornais ou pela internet as notícias tristes ou tragédias sufocantes dividindo suas audiências com histórias de resistência e lives – fenômeno que tem feito alegria de muitos através das telas de smartphones e computadores, mas também consumido a paciência de outros – com apresentações musicais e entrevistas sobre vários assuntos.

No início, eram comuns relatos de artistas e outros profissionais a respeito de como produzir tornou-se mais laborioso nos últimos tempos. É como se estivéssemos preenchidos por algo que, até então, não soubéssemos precisar o quê. Mas há também os que consideraram o período de isolamento para dar continuidade a projetos e planos que estavam parados há algum tempo. Dá para dizer que, cada um, à sua maneira, em meio a suas respectivas realidades, cuidou – e segue cuidando – de procurar um respiro e um modo de seguir adiante. Isso mais coletivamente, claro. Talvez o mundo até permaneça o mesmo. Só que é inegável que ele vem se reapresentando para nós dia após dia. Que a arte é uma fresta em busca de semânticas e caminhos possíveis – nesses e em outros momentos – não é novidade, tampouco exclusividade do agora. E a poesia é desses ambientes de reconfiguração das formas do sentir, compreender, tensionar e atuar por este vasto mundo.

Lançado no final de 2019, Preocupações é o terceiro livro de uma das representantes desta geração: Ana Guadalupe. Trechos de seus poemas e a capa da recente publicação são vistos com frequência pelas redes sociais. “Não tinha como saber, obviamente, mas (esse período) deu novos sentidos a ele. Vejo muita gente dizendo que está muito difícil escrever poesia agora e acho que está mesmo”, afirma Ana, em conversa por telefone com a Continente. Ela, de sua casa em São Paulo, cidade onde vive há cerca de 10 anos; a repórter, do Recife. Ambas cumprindo quarentena e trabalhando remotamente.

Dentre os vários assuntos, conversamos sobre tradução, o atual momento do país, mas o tema central foi seu livro Preocupações e as distintas leituras que vêm aparecendo. Inclusive, de algumas publicações especializadas em poesia. Nas mais recentes, a propósito, algumas encontram associações entre os poemas e o melancólico contexto que experimentamos.

Embora alguns dos 45 textos que tecem Preocupações se comuniquem fortemente a aspectos e situações deste período, é importante pontuar que a escrita deles se deu bem antes, o que evidencia a sensibilidade da artista. Enquanto uns poemas datam de 2012, logo após o lançamento de seu primeiro livro Relógio de pulso (7Letras, 2011), outros foram sendo produzidos mais recentemente. Imersos em uma certa melancolia, mas também adoçados com lampejos de humor, os poemas de Ana Guadalupe, muitas vezes, trazem referências e elementos do nosso contemporâneo, como quando envolvem distanciamento, dinamismo de redes sociais, sensações de estranhamento, medos ou desamores. “Peguei os (poemas) que ainda gostava, os novos e tentei separar num fluxo que criasse uma espécie de diálogo existente”, revela sobre suas escolhas.

Desde os poemas de abertura, é possível encontrar um fio condutor consistente, graças ao modo como eles parecem cuidadosamente distribuídos. Embora também funcionem muito bem sozinhos, um leitor atento consegue estabelecer relações dialógicas entre os textos com facilidade. Exemplo bastante ilustrativo desse movimento está na sequência  e , segundo e terceiro poemas, respectivamente. Em um, há dores e acenos à empatia; na página seguinte, é a vez de alguém que está experimentando essas dores e lamentos. Em ambos, a brevidade dá o tom. Ana consegue equilibrar leveza e densidade em vários momentos. E essa capacidade de ser breve, leve e densa, aliás, se faz presente na poesia de algumas de suas xarás contemporâneas, como Ana Estaregui e Ana Martins Marques, por exemplo. Outra constante nos poemas de Guadalupe também é o uso de versos livres e curtos, sem maiores preocupações com uma regularidade métrica, mesmo que encenem ritmos contínuos e bastante firmeza.

O poema A dor dos outros tematiza – aberto a infinitas possibilidades de leitura, para além desta – algo que faz parte do zeitgeist (termo alemão para “o espírito do tempo”, que está meio saturado devido à sua presença em inúmeros textos de jornalismo cultural), isto é, uma necessidade de materialização dos sentimentos, mesmo que através de postagens em redes sociais. “o amor destruído é uma peça sobre a mesa” – aqui, o amor é transformado num objeto e colocado à exposição e ao toque sobre a mesa. Também é trazida a efemeridade, além da ilusão de perfeição que os filtros virtuais costumam ofertar aos nossos olhos. Nossa capacidade de sentir empatia estaria pronta para lidar com a dor alheia sem grandes ajustes ou suavizações?

No verso final, o papel celofane remete a artifícios que atenuam e deixam as dores dos outros mais suaves e palatáveis. Mais parecem os ajustes comuns às imagens, selecionadas, fixas ou efêmeras do Instagram.

No poema seguinte, intitulado infeliz em santa catarina, a mescla entre o autobiográfico e a ficcionalização se acentua. Essa é outra associação frequente à poesia de Ana Guadalupe, característica de outras poetas como Ana Cristina César, por exemplo. Nas imagens que compõem o poema, as intempéries de alguém que enfrenta “tardes chuvosas escorregando nas ruas”, cultiva bicho-de-pé e outros parasitas, cria animais de estimação e experimenta um date falido, ganham contornos em versos cheios de humor e de uma leveza desconcertante. “fui infeliz em santa catarina/ quando meu primeiro amor me chamou para um encontro/ que não passava de um culto religioso/ em que apenas o espírito santo me beijaria.” Em meio a tanta comunicabilidade que alguns textos capturam, aparece bastante a sensação de conexão entre a autora e quem a lê, como se essa distância fosse constantemente minimizada pelo artifício da linguagem.

O PROJETO



No tocante ao projeto gráfico de Preocupações, assinado por Otávio Campos, editor da Macondo, novamente a editora mineira apresenta uma publicação delicada, precisa e que preza por um trabalho estético minucioso. A força que a arte de Juliana Bernardino configura à capa não passa despercebida. Nela, a técnica utilizada pela artista foi acrílica em vidro. Em contraste ao bege que emoldura a pintura, as cores vibram, as pinceladas chamam atenção e os olhos das personagens evocam desde os primeiros contatos com o livro. “Eu me conecto muito com o trabalho da Ana e ela com o meu. A gente já imaginava um dia fazer um projeto juntas. No momento em que ela estava fazendo a seleção, eu estava pintando sobre as inquietações femininas. E ela achou que conversava muito. Dessa série, escolheu essa (imagem), que foi completamente feita para ela. Uma troca nossa e muita identificação entre nossos trabalhos”, relata Juliana, que, há oito anos, mora em São Paulo (SP). Também pelo sucesso que a arte vem fazendo por aí, um pôster acompanha as vendas mais recentes pelo site da editora.

Ainda sobre o projeto, são marcantes as divisões através de páginas pretas intercaladas entre os poemas. Essa fragmentação é uma escolha editorial acertada, pois acabam dando um respiro aos estímulos que as leituras proporcionam. Por não receberem títulos, a possibilidade de quem lê construir suas próprias interpretações se amplia. Cada uma dessas partes tem conjuntos de poemas que convergem em elementos e/ou temáticas. Numa delas, por exemplo, há sete textos mais metalinguísticos, nos quais a poesia e o labor com as palavras é que conduzem. Estamos falando do grupo de a eventual visita da poesia, dois poemas, três poetas, os livros, os olhos, pronúncia e a palavra.

Mais adiante é a vez das casas habitarem o compilado de poemas – casas, me sinto em casa, dezenove casas, no quarto escuro, quando cortam a internet, cenários, a/c proprietário do imóvel e lazer. A partir de diferentes pontos de vista, referenciando, inclusive, mudanças constantes de casas e perrengues de aluguel, uma das preocupações de quem não tem a casa própria, muito comum à juventude. Há ainda, desamores, ausências e medos como questões que surgem ao longo dos textos. O título Preocupações, a propósito, veio de um texto que acabou não entrando na seleção final. No entanto, além de a escolha funcionar bem ao todo, gera, midiaticamente, bastante curiosidade em torno do conteúdo da obra.

Assistir a filmes e episódios pendentes das séries, ler livros e poemas, cozinhar, trabalhar…  Vivenciamos um catalisador de ausências. Mas de memes e gracinhas também, já que ninguém é de ferro. Com um didatismo cruel, compartilhamos atentar para questões – solidão, melancolia, relações superficiais, estruturas econômicas falidas, para citar alguns – que talvez já estivessem por aqui em alguma medida. Ao menos é isso que nos faz refletir uma obra como Preocupações, de Ana Guadalupe. Em outros tempos, lugares e contextos esse livro ganhará novos sentidos, certamente. Seja no impresso ou na internet, seus poemas têm mobilizado cada vez mais longe. “Esse livro chegou a pessoas que eu nunca vi, lugares que eu não imaginaria, deu uma viajada mesmo. É emocionante. A arte é isso, né? Você faz ali na sua solidão, pensa que ninguém vai ver e, daí, aparecem os diálogos.”

A POETA, A TRADUTORA
Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá, Ana Guadalupe nasceu em Londrina (PR), onde viveu durante a infância. É poeta e já integrou algumas antologias. Atualmente, dedica-se à revisão e, sobretudo, à tradução. É, portanto, mais um nome a endossar o conjunto de mulheres que vêm traduzindo literatura no país. Aliás, para citar algumas outras: Stephanie Borges, poeta e tradutora de vários títulos, inclusive Irmã outsider, de Audre Lorde; Tatiana Nascimento, Prisca Agustoni, Lubi Prates, esta traduziu poemas de Maya Angelou; Francesca Cricelli e Beatriz Bastos, que traduziu Frank O’hara e John Cage.

A valorização deste importante ofício, no Brasil, no entanto, ainda não equipara à remuneração que merece. Muitas tradutoras e tradutores, por conta disso, ainda precisam conciliar tradução a outras atividades remuneradas, de modo que não conseguem se dedicar integralmente à profissão. Ana é uma das que intercala a tradução com outras remunerações vinculadas ao ofício com o texto. Os poemas acontecem nas frestas.

“A tradução me fez voltar mais ao texto, voltei a ler mais. Estou até me animando para escrever prosa, mas se você não tem um apartamento próprio ou não é aposentada, é muito difícil se manter só com tradução por aqui. Por isso, também fico tendo vários empregos, todos na área de texto. Só que ela (a tradução) tem sido uma paixão para mim”, revela. Ana já assina projetos com importantes editoras no Brasil. Com relação à poesia, ela conta que não há uma constância em sua escrita. Costuma produzir nos intervalos, quando encontra tempo entre os trabalhos que realiza.

ERIKA MUNIZ é jornalista, formada em Letras pela UFPE, queria ser uma escritora, mas se alegra mesmo em ser leitora nesta vida. 

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