Resenha

Para ficar APKÁ!

Um disco de 2019 para ser todo ouvido. Eis o novo trabalho de Céu, que nasceu no período de puerpério do seu segundo filho, Antonino

TEXTO ERIKA MUNIZ
FOTOS JENNIFER GLASS

10 de Dezembro de 2019

Foto Jennifer Glass

[conteúdo exclusivo Continente Online]

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Nas
palavras de Céu, APKÁ! é um grito de amor. Mas é também de “ternura, contrastes, raiva, incompreensão, incômodos, desejos de renovação”, como escreveu em seu perfil do Instagram, ao disponibilizar, nas plataformas digitais, este que é o seu quinto álbum. Na noite da sexta 13 de setembro – a mesma data, aliás, em que o músico Itamar Assumpção, um dos grandes nomes da Vanguarda Paulistana, completaria seus 70 anos –, a cantora e compositora divulgou, além das 11 faixas inéditas, o videoclipe de Coreto, uma das novas composições de sua autoria. “A gente quis priorizar os fãs, quem curte e acompanha, quem realmente está ali junto há tanto tempo”, comenta a artista, em entrevista à Continente.

Desde o lançamento de Tropix (2016), seu elogiado álbum anterior, que venceu categorias do Grammy Latino e do Prêmio Multishow, a paulistana não tinha planos de mergulhar em um novo processo de criação. Não é de hoje que seu trabalho estabelece conexões intensas às suas necessidades enquanto artista brasileira, como é o caso de Tropix ou APKÁ. “Tento usar minha sensibilidade, transpondo para o papel, para a música, para a harmonia, para a melodia, para o ritmo, as coisas que vivenciei e me tocaram, o que eu passei. Como eu transponho isso? É um trabalho difícil. E acho que tenho que ser íntima da minha honestidade, porque não dá para ficar fingindo que é outra coisa. O resultado final é sentir aonde estou querendo chegar. A partir desse momento, a música deixa de ser minha e é das pessoas.”

Aos 39, Céu é um dos principais nomes da música brasileira contemporânea. Sua consistente discografia consolidou, passo a passo, uma identidade musical potente que aparece em todos os seus cinco álbuns. De Céu (2005) e Vagarosa (2009) a esse disco de 2019, cada um conta, de forma muito singular, os caminhos estéticos e sonoros que sua trajetória já perscrutou. Esse fio condutor, a propósito, evidencia uma cantora e compositora que, desde o início, busca distintas possibilidades, sempre de uma maneira muito precisa e verdadeira ao que se propõe a fazer. Nunca, porém, encaixando-se em algum gênero musical específico.

“Eu saio da minha zona de conforto, talvez o meu comprometimento artístico passe por esse lugar”, disse, em 2013, numa entrevista ao músico Charles Gavin, do programa O Som do Vinil, do Canal Brasil. Nessa ocasião, ela circulava com o terceiro trabalho Caravana Sereia Bloom (2012), uma espécie de road álbum com mais rock’n roll que os dois anteriores, além de um flerte com a música brega e uma pegada mais lo-fi.

Em 2018, no momento em que se dedicava à gravidez do segundo filho Antonino – com quase dois anos agora –, Céu reservou um período para aproveitar a tranquilidade de sua casa. A fase seguinte seria preenchida pela amamentação e pelos primeiros meses com a criança. O que poderia apenas ser um período de puerpério acabou se tornando interessante também para “criar, escrever e botar para fora”, culminando numa intensa criatividade, sensibilidade e vontade de se comunicar com o mundo. A partir daí, o processo de APKÁ! teve início.



FELICIDADE, SATISFAÇÃO
À primeira vista, o título do trabalho pode soar sem sentido, porém “apká” foi uma palavra que habitou bastante a casa da artista após o nascimento de Antonino, pois foi esta a primeira expressão do garotinho sempre que demonstrava felicidade e satisfação plena. APKÁ! não é, contudo, um álbum temático sobre a maternidade, tampouco traz isso de maneira completamente literal. Quem conhece os trabalhos de Céu sabe da subjetividade que os permeia. Os temas e momentos importantes para a artista costumam ser acolhidos nas entrelinhas e metáforas, das letras às melodias. Nesse novo álbum, portanto, o resultado é muito atravessado por esse período de potência na vida de uma “brasileira, mulher, mãe, compositora e cantora vivendo a loucura que tem sido viver em 2019, no Brasil, planeta Terra”, como ela declarou também em seu perfil no Instagram.

“Acho que vem do mesmo lugar, criar pode ser para filho, letra, tudo. Acho que essa é a minha essência. Tenho uma atitude criadora mesmo. E estar imersa nos hormônios da maternidade impulsionou o meu lado criativo para este disco também”, conta. Uma das 11 faixas é Ocitocina (charged), que remete ao momento do parto, quando o dito “hormônio do amor”, que dá título à canção, é liberado em maiores quantidades para o corpo feminino, transmitindo uma sensação de prazer e amor profundo. Não por acaso, essa foi a primeira música a ser escrita pela artista e traz mais explicitamente a maternidade se comparada às outras de APKÁ!. Do modo que a canção sugere, tal experiência localiza as mães em uma espécie de “livre dimensão, desgeografada de demarcação”, ou na “partolândia”, como também se refere Céu a esse tempo-espaço.

Biologicamente, a ocitocina também responsável pelo aumento da produção de leite para a amamentação – algo que fez parte do processo produtivo de APKÁ! –, sobretudo após partos naturais, nos quais a liberação do hormônio costuma ser maior, já que o corpo, por si só e naturalmente, compreende que o bebê está chegando e precisa de alimento. Com toda poesia, é interessante esse tema ser trazido ao álbum, principalmente no contexto do Brasil, o segundo país que mais realiza cesarianas no mundo. Tocar nesse tema, através de uma criação delicada e subjetiva como a dessa faixa, pode trazer reflexões e conhecimentos a respeito do importante debate em torno do parto humanizado.

Seja nas temáticas, na poesia das letras, nos arranjos ou nos sentimentos que alinhavam as canções, APKÁ! é um álbum de contrastes. A proposta conceitual, aliás, está presente também na maneira pela qual o álbum ganhou o mundo. Completo e de uma só vez, com todas as faixas, ele já nascera contrariando o que tem sido frequente em meio a um mundo de lançamentos musicais; do modo que a geração de Céu costumava ter acesso à música. Tem sido cada vez mais comum artistas lançarem singles, visando às playlists das plataformas de streamings, ou às visualizações e ao alcance de público. Ao disponibilizar todas as faixas, Céu desviou dessa frequência, deixando, assim, a critério de quem escuta APKÁ!, a escolha do modo particular de ouvi-lo – e a possibilidade de escolher é justamente o que nos torna mais humanos.

Na era digital, os seguidores têm bastante acesso aos passos de seus artistas preferidos. Muitas vezes, até em tempo real. É comum, portanto, saberem, com certa antecedência, quando serão divulgadas novidades, ou quais serão as futuras parcerias musicais. Neste mundo hiperconectado, e bastante visual, a cantora paulistana conseguiu com APKÁ!, ainda, a proeza de tornar secretos, até o momento de ganhar o mundo, os processos e o dia de lançamento do mais novo trabalho.



CRIAÇÕES
De Tropix, o disco APKÁ! retoma a produção musical assinada pelo pernambucano Pupillo e pelo músico e produtor francês, radicado em Berlim, Hervé Salters, do projeto General Elektriks. Aí insere-se ainda a própria Céu, que conduziu todo o processo de criação. “Tudo parte muito das ideias dela. Essa é uma vantagem de trabalhar com uma artista que tem segurança no que está fazendo. Ela tem um processo no disco, que é quando ela se sente preparada. Ter essa visão clara de onde pretende chegar é de extrema importância, porque o trabalho do produtor fica muito em cima dessas referências”, afirma Pupillo à Continente.

Em Céu (2005) e Vagarosa (2009), seus dois discos iniciais, as canções percorrem bastante suas primeiras influências musicais, incluindo a Música Popular Brasileira – herança de seus pais, que a puseram em contato durante a infância e juventude –, o jazz, o samba e o afrobeat, além da música jamaicana, sobretudo o reggae. Em Céu, inclusive, ela trouxe uma versão de Concret jungle, clássico de Bob Marley and The Wailers que marcou a memória dos que acompanham a carreira da rtista, pela maneira que, já dali, imprimiu sua personalidade ao hino. Por conta disso, em 2013, ela seria convidada a interpretar o icônico álbum Catch a fire, em comemoração aos 40 anos de seu lançamento, realizando elogiados shows. No disco Vagarosa, por sua vez, há uma interpretação da belíssima Palhaço, composta pelo mestre Nelson Cavaquinho, em que convidou seu pai, Edgar Poças, a participar no violão acústico, já que fora uma composição apresentada por ele em sua vida.

Desde Tropix, no entanto, Céu vem experimentado uma imersão maior na música eletrônica, principalmente naquela originada na Alemanha, a exemplo da banda Kraftwerk e da fase anos 1970 de Iggy Pop, Lou Reed e David Bowie, mais ligadas a Berlim. A cidade, aliás, foi onde parte da pré-produção de APKÁ! ocorreu, já que é também onde o produtor Hervé Salters vive atualmente. O mergulho pela maquinaria de instrumentos elétricos e pesquisas, porém, não a fez abandonar a tropicalidade e a forte relação com a cultura musical brasileira, além das outras influências que atravessam a sua formação.

Os resultados dessas primeiras experiências apresentam-se em hits como Perfume do invisível, Arrastar-te-ei, Amor pixelado e Varanda suspensa, do mencionado quarto disco (Tropix), cujos arranjos eletrônicos são repletos da brasilidade particular que há em sua música. As relações com os beats, timbres sintéticos e programações também são profundas em APKÁ!, só que, desta vez, percorrem outras possibilidades estéticas, sonoras e temáticas, diferentes do trabalho anterior. Enquanto em Tropix uma atmosfera noturna ocupa a pista de dança ao longo das faixas, nesse álbum de 2019, há uma extensão da paleta de cores, mesmo que ainda permaneça na dancefloor.

Esse colorido deságua também no projeto visual de APKÁ!, pois, se antes, eram os brilhos prateados do globo espelhado que predominavam sobre a iconografia de Tropix, agora é a vez de as luzes e os projetores coloridos chegarem para compor. Há também roupas drapeadas, maquiagens de cores fortes e coreografias coletivas à la Saturday night ferver (1978), de John Badham, tomando conta. Tudo isso se apresenta no primeiro vídeo, Coreto, cujo elenco traz o músico cearense Jonnata Doll e o bailarino Jimmy The Dancer, figura icônica da noite de São Paulo, que já estrelou o vídeo Quebra-cabeça, da banda Bixiga 70, em 2018.



Atento aos detalhes, existe um trabalho pleno de referências ao cinema e à fotografia que dá a APKÁ! uma força também audiovisual – o filme Cidade dos sonhos, de David Lynch, a estética do cineasta canadense Xavier Dolan e o tempero das cores do fotógrafo Luiz Braga são algumas delas. No álbum, a disposição das faixas parece explorar um degradê de temas. Começa com inteligência artificial, a partir da primeira Off (sad Siri), seguida de reflexões sobre o meio ambiente e crise política (Forçar o verão), as diferentes formas de amar contemporâneas, a maternidade, até tocar no modo em que estamos nos relacionado com as telas e o mundo virtual, como acontece em Eye contact, produzida pelo duo Tropikillaz, que também fez a produção de Vai malandra, de Anitta.

Mais do que nos álbuns anteriores, em APKÁ! várias canções trazem diferentes camadas de som, sobretudo a partir da potente extensão vocal de Céu. Apesar de a proposta inicial ser explorar os contrastes, os três – ela, Pupillo e Hervé – chegaram a uma identidade sonora para o novo álbum, como havia acontecido em Tropix. Porém, no caso deste, não seria simplesmente trabalhar com opostos – o eletrônico e o acústico, ou os antônimos nas letras, por exemplo. Cada faixa apresenta suas especifidades e uma maneira cuidadosa de explorar esse conceito, mas dialogando com o todo.

Como compositora, Céu nos apresenta o tecnopunk Fênix do amor e a belíssima Corpocontinente, que, como o próprio título sugere, a letra e o arranjo tornam-se praticamente um. Sua poesia territorializa corpos, transformando-os em lugares que, quando separados, experimentam algo tão nosso, tão brasileiro: a saudade. As canções Make sure your head is above e Pardo sãos as únicas assinadas por outros compositores – Fernando Almeida, o Dinho, vocalista da banda goianiense Boogarins, e Caetano Veloso, respectivamente. Essa, inclusive, foi a primeira vez que Dinho compôs em inglês.

Resultado de um pedido de Céu, Pardo é daquelas canções bem “caetânicas”, ou seja, com identidade melódica dele, harmonia sofisticada e muitas, mas muitas metáforas. Embora traga uma relação homoafetiva como temática, a música é cheia de entrelinhas. Possivelmente, algumas dessas alusões sejam à poeta Gertrude Stein, com os versos “A rose is a rose is a rose is a rose”, cuja repetição da rosa aparece, e ao grande Guimarães Rosa, que já permeou outras letras do compositor. Talvez, não por acaso, na obra-prima do escritor mineiro, Grande sertão: Veredas (1956), a personagem Diadorim tensiona as questões de identidades de gêneros e propõe reflexões sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo. Vindo de Caetano, no entanto, é ingênuo tentar definir quais seriam as referências com exatidão. Pardo é repleta de Cores, nomes (1982), Outras palavras (1981), coisas do baiano cuja arte é Bicho (1977) solto no mundo. O que dá para dizer é que, assim como as outras faixas, essa composição é especialmente para Céu e seu público ficarem APKÁ!.

ERIKA MUNIZ está graduando-se em Jornalismo e é formada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco.

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