Ver, admirar e sentir
Centenário do historiador, escritor e professor pernambucano Rubem Franca, um dos maiores especialistas em Camões e autor do livro Monumentos do Recife, de 1977, inspira ensaio fotográfico
TEXTO MÁRIO HÉLIO
FOTOS LEOPOLDO CONRADO NUNES
11 de Setembro de 2023
Ponte da Boa Vista, construída no centro do Recife em 1876
Foto Leopoldo Conrado Nunes
[conteúdo na íntegra | ed. 273 | setembro de 2023]
As fotografias desta matéria celebram o centenário de nascimento de Rubem Franca, que se cumpre neste ano de 2023. Têm como ponto de partida Monumentos do Recife, obra que, publicada em 1977, está há muito a merecer uma nova edição. Atualizada, é claro. Homenageando um livro homenageia-se o autor.
Quem foi Rubem Franca? Um professor. Seria a resposta mais simples e direta. Professor do tipo educador. Peripatético.
Educou alunos de diversas gerações. Desde os dos colégios Padre Félix, Santa Maria e Radier aos do ginásio de Aplicação da UFPE e os da Universidade Católica de Pernambuco.
Antiga Estação do Brum, situada no Bairro de São José
Se apenas professor tivesse Rubem Franca sido bastaria isto para a nobreza, a riqueza e a felicidade de uma vocação. Foi mais: escritor. De talento tão precoce que, mal entrando na adolescência, era visto como um fenômeno no ‘saber de experiências feito’: a interpretação de Camões. No sentido duplo da palavra interpretação, pois cuidava tanto de explicar quanto de dizer os versos de Os Lusíadas em voz alta.
Como entender e apreciar Camões é, entre os livros de sua camoniana, talvez o que, por seu caráter didático, melhor mereceria ser de novo editado.
O prédio da Faculdade de Direito do Recife, inaugurado em 1911,
e o interior do Teatro de Santa Isabel
O seu editor, em 1977, Leonardo Dantas Silva, disse sobre Monumentos do Recife: “Mais do que um livro, Rubem Franca compôs um grande quadro, um hino talvez, uma ode de amor ao nosso Recife preservando, através de descrição em letra de forma e imagens fotográficas, às gerações que haverão de vir o que ainda restou das sucessivas mutilações”. Nelson Saldanha considerou este livro “monumental e encantador levantamento de todos os velhos edifícios, igrejas, placas e lugares que existem na cidade”.
Monumentos do Recife resultou de andanças e caminhadas. Para além desse livro, era o autor um aficionado. Tanto que na época do seu lançamento, propôs-se – e cumpriu – ir a pé (na companhia do seu filho), do Recife às praias de João Pessoa e arredores, na Paraíba. O assunto foi então o tema de uma reportagem publicada no Diario de Pernambuco, em 8 de abril de 1978. O que são 130 quilômetros para um obstinado? Rimbaud, o grande poeta francês, era quase um maníaco por percorrer longas distâncias a pé.
Detalhes do Mercado de São José e da Matriz de Santo Antônio
Rubem Franca foi um exemplo feliz de médico que enveredou pela Literatura, e a esta somou a ventura da História e da Geografia. De tal conjugação de Humanidades nasceu Monumentos do Recife.
O que, porém, dá sentido próprio ao livro não são as palavras e os monumentos tão somente. É o ato de caminhar, de passear pela cidade. Mais do que andar e vê-la. Desvelar no possível o passado no presente.
Todo um gênero literário, um modo de vida, há no ato, no hábito. Peregrinos, vagabundos, walkmans, flâneurs.
Cúpula da Basílica da Penha e teto da Capela Dourada
Há cidades boas para caminhadas, e outras, não. Rubem Franca, como Mario Sette, gostava de conjugar um verbo hoje em desuso tal como o costume: arruar. O Recife já no tempo do lançamento do seu livro parecia não ser um lugar propício a passeantes. Daí a ironia de Valdemar de Oliveira ao mencionar o significado do nome do Recife na explicação franca, de calçada. Calçada esburacada, ele acrescentou.
É talvez um tanto à maneira de D. Quixote que o médico-escritor-professor Rubem Franca faz um convite a uma boa caminhada pelo Recife. Não basta, porém, chamar de quixotesca a proposta (mais ainda era a sua cruzada contra a astrologia). Havia nele também um exaltado Sancho Pança. ‘Armado’ desse realismo, não se iludia tanto quanto se pode imaginar. Cita Charles Darwin que, ao visitar o Recife, afirmou: “a cidade é por toda a parte detestável, as ruas estreitas, malcalçadas e imundas”. Na mesma linha e tempo similar, as palavras do imperador D. Pedro II: “a ignorância que encontro em geral nos pernambucanos da história gloriosa de sua província”. O que diriam os dois se vissem o centro do Recife, hoje?
Notáveis são os monumentos do centro retratados no livro de Rubem Franca. Numa nova edição, certamente, novas imagens e referências seriam acrescentadas, pois, como dizia Baudelaire, a forma de uma cidade se modifica mais do que o coração de um mortal. No entanto, as lições do professor no seu Monumentos do Recife estão intactas e são inspiradoras como há 46 anos:
“Um dos nossos objetivos com a publicação deste livro é tentar incutir no recifense o hábito de perambular pela cidade. Mas caminhar vendo, admirando e sentindo as casas e os rios, as igrejas e as estátuas. Ora sentando-se aqui, num banco de praça, ora lendo as placas e dizeres de nossos monumentos e locais históricos.
Estátua de Ícaro, no FórumThomaz de Aquino, e convento franciscano de Santo Antônio
“Andar é esporte que dá prazer e proporciona emoção. A marcha, aliás, ao contrário do sedentarismo, faz bem à saúde física e mental. Caminhar – olhos abertos e sentidos atentos – é costume que também desperta a sensibilidade e o sentimento cívico. É a pé, e não motorizado, que a gente se integra na cidade, articula-se com a natureza, vive a vida, percebe a história, o povo, o mundo.”
O livro de Rubem Franca antecipou em quase meio século a moda atual dos livros-convites a passeios e caminhadas pelas grandes urbes. Exemplos recentes são os de Francesco Careri e Annabel Streets (sobrenome, aliás dos mais apropriados para a arte de caminhar que propõe).
Portões da Assembleia Legislativa de Pernambuco, no Bairro
da Boa Vista
Defendem esses autores uma autêntica estética e filosofia implícita no andar, no caminhar, no percorrer as ruas. Rubem Franca faz mais. Convida a ver. A ver e a ver-se na cidade, como uma forma de pertencimento:
“Todos sabemos que o turismo é indústria e cultura. Envolve educação, arte e tradições. Se realmente desejamos que o Recife seja um centro turístico, devemos começar cuidando da educação e da cultura do nosso povo. Precisamos conhecer-nos a nós mesmos.”
MÁRIO HÉLIO, jornalista, historiador, escritor e editor.
LEOPOLDO CONRADO NUNES, jornalista, fotógrafo e músico.