Brasil é terra indígena
Fotojornalista narra as reivindicações indígenas em Brasília, contra o Marco Temporal e o PL 490
TEXTO E FOTOS MARIA CHAVES
01 de Setembro de 2021
Indígenas, Brasília, 2021
Foto Maria Chaves
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Não ao Marco Temporal. Terra protegida. Demarcação já! Fora Bolsonaro. Mobilização Nacional Indígena. Luta pela Vida. Nossa história não começa em 1988. Resista como um Guarani. Krenak. Clodiodi de Souza presente! S.O.S. Aldeia Katurãmas/Pataxós, vítimas da Vale/Brumadinho. Não ao PL 490. O PL 490 legaliza o genocídio. Juventude indígena. Huni kui, Jaminawa, Kanamari, Apurinã, Jamamadi, Nawa, Madijá, Xingu, Xucuru, Xokleng...
Essas palavras e citações afirmativas ilustraram cartazes e corpos na marcha e na vigília indígena do dia 26 de agosto de 2021, em Brasília. Desde que foi anunciada, pelo Supremo Tribunal Federal, a pauta do PL 490, 6 mil representantes de diversos povos do território brasileiro montaram acampamento em frente ao Teatro Nacional e ocuparam a Praça dos Três Poderes no momento da votação.
O projeto de lei prevê alterações nas regras de demarcação de terras indígenas reconhecidas pela União na Constituição de 1988, sendo a principal delas a criação de um Marco Temporal, que simplesmente desconsidera a ocupação dos povos indígenas desde antes da chegada dos colonizadores ao Brasil. Mas não só isso. A mudança também retiraria o direito de uso exclusivo das terras pelos povos originários, permitindo exploração hídrica, energética, mineração e garimpo, construção de estradas e cultivo de plantas geneticamente modificadas, de acordo com a necessidade do governo.
“Para nós, o PL 490 é um projeto de lei da morte. Vai negar toda demarcação de terras indígenas além de rever processos concluídos.” A frase de Sônia Guajajara, destacada de sua entrevista para a revista Continente deste mês, dá o tom da expectativa dos povos indígenas em relação a esse momento tragicamente histórico, sentimento que também deveria ser compartilhado por todo brasileiro e por toda a humanidade. E por que não é?
Se formos mergulhar no cerne da questão, podemos recorrer a Ailton Krenak. O indígena, protagonista de um inesquecível discurso na Assembleia Constituinte em 1987, apresenta no seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, uma visão lúcida e crítica de que aprendemos a entender a humanidade como algo separado da natureza, enquanto “devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo”.
É fato que o modelo capitalista não tem tido sucesso quando o objetivo é a melhora de nossa sociedade e o bem-estar da coletividade. Podemos enxergar nesta articulação nacional dos povos indígenas um sinal do movimento de resistir ao atual paradigma predatório da economia e de rechaçar os valores modernos como única opção do dito “desenvolvimento”. Ainda nas palavras esperançosas de Sônia, “muitas pessoas estão percebendo que esse modo de vida adotado para atender ao capitalismo não vai mais sustentar a Terra por muito tempo”.
Nesse contexto, é importante estarmos atentos a conceitos como o de uma nova economia, que propõe uma disrupção em relação ao conjunto de premissas que tradicionalmente guiavam o mundo empresarial até o final do século XX e que trazem para o centro da sua nova pauta questões como horizontalidade, diversidade e sustentabilidade.
Outro conceito atualmente presente em debates ainda restritos a ambientalistas é o da regeneração. Trata-se do ponto insistentemente levantado por Krenak sobre a reconexão com o planeta e práticas para o reestabelecimento da relação entre os humanos e a natureza, das quais não podemos mais fugir, como estão provando as consequências devastadoras – na saúde pública e na vida de milhares de pessoas – da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus.
Um terceiro conceito que esse movimento suscita, nasce, na verdade, como uma disciplina acadêmica. Contando com a dinâmica propositiva do design, o design anthropology alarga o horizonte temporal da antropologia, orientado do passado para o presente, ao prospectar imagens do futuro, mas sem negligenciar a memória. Suas narrativas propõem processos construídos com esteio em multivozes, diversos pontos de vistas, uma variedade de ângulos, até chegar a um consenso e em priorizações coletivas. Ou seja, na visão de design anthropology, ações estratégicas devem sempre se ancorar no compromisso de assegurar que vozes de grupos e comunidades marginalizadas sejam ouvidas em processos cujas decisões os afetarão no futuro. Esse é o caso, bem sabemos, da elaboração de um projeto de lei, especificamente o PL 490.
Todos esses conceitos se apoiam na ideia de que, como acontece na natureza, a sociedade faz parte de um ecossistema, que deve ser não só favorável, mas estimulador da fruição e da liberdade de ideias, de acesso democrático para a comunidade e com uma convivência tolerante, de uma gestão mais horizontal, de uma participação coletiva e representativa. Urge estimularmos a capacidade coletiva de imaginar outros mundos, mesmo que não sejam imediatamente viáveis.
No dia 26 de agosto de 2021, a sessão de votação no Supremo Tribunal Federal em Brasília não foi resolutiva, porque foi adiada. E assim segue, como o fim do mundo.
MARIA CHAVES é fotógrafa, produtora cultural e coordenadora do Pequeno Encontro da Fotografia. Atuou como repórter fotográfica no Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco. Atualmente se dedica a projetos de diversas linguagens artísticas e ao estudo de economia criativa e design anthropology.