Breve memorial para Clóvis Pereira
Compositor, arranjador, pianista e regente pernambucano tem obra diversificada, que vai além da música armorial
TEXTO Carlos Eduardo Amaral
04 de Junho de 2024
FOTO ACERVO PESSOAL
Clóvis Pereira faleceu de causas naturais na manhã desta terça, 4 de junho, no Real Hospital Português, no bairro da Ilha do Leite. O anúncio foi feito por seu filho homônimo, violinista e spalla da Orquestra Sinfônica do Recife, por meio de redes sociais. Em fevereiro passado, sua esposa de toda a vida, Risomar, também havia partido. Já no dia 14 de maio último, Clóvis comemorou seus 92 anos de idade recolhido, sob os devidos cuidados que demandava.
Neste texto não vão ser compilados os dados biográficos principais de Clóvis, porque podem ser encontrados nas notas publicadas pelas principais instituições e personalidades ligadas ao frevo, à música clássica e à cultura pernambucana, bem como nas respectivas matérias publicadas em portais de notícias e emissoras de rádio e TV. E um pouco mais pode ser buscado no livro-reportagem biográfico que escrevi sobre ele, Clóvis Pereira — No Reino da Pedra Verde, publicado pela Cepe Editora em 2015, bem como batendo-se um papo com José Teles, um dos que sabem tudo de história da música na rádio pernambucana.
Resgato aqui algumas anotações importantes, que miram a descoberta de sua obra. Sim, porque as "Três peças nordestinas" são muito tocadas aqui no Recife e em João Pessoa — pela Orquestra Criança Cidadã, principalmente, mas também pela Orquestra Sinfônica do Recife e pelo Quinteto da Paraíba —, e elas são a "obra-prima" de Clóvis. Advogo, inclusive, que elas constem — não por força de lei, porque isso é um método um tanto fascista, mas por chamamento à apreciação artística — no repertório de todas as orquestras sinfônicas jovens e profissionais brasileiras.
Muito sinceramente, as "Três peças nordestinas" já deveriam ter sido gravadas pelas sinfônicas e filarmônicas mais importantes do mundo, mas sabemos que as luzes da ribalta não são para quem leva uma vida comum, do trabalho para a casa e vice-versa. Clóvis, tanto quanto outros nomes ilustres contemporâneos seus, como Maestro Duda, Maestro Formiga — enfim, todos aqueles retratados no documentário "Sete corações", idealizado por Maestro Spok, mas não apenas eles — trabalhou muito para sustentar e criar uma família grande. Destacou-se pela atuação e pelos cargos ocupados em diversas instituições de ensino musical, como nas escolas de música da UFRN, UFPB e UFPE, e no Conservatório Pernambucano de Música, mas não tinha condições para pensar em se lançar ao exterior, a exemplo do que fez Marlos Nobre.
Marlos se tornou o compositor de música clássica brasileiro vivo mais reconhecido no exterior, em dado momento, porque trocou o Recife pelo Rio de Janeiro, em 1960, e o Brasil pela Europa, poucos anos depois. Clóvis, sete anos mais velho, já era casado e tinha uma rotina de regente de orquestra de rádio, professor, pianista e arranjador. Não havia, portanto, como se arriscar a mudar de ares ou a investir em projetos de carreira. Mesmo assim, ele foi.
Instigado pela professora e pianista Ana Lúcia Altino Garcia — que morou nos Estados Unidos do final dos anos 1980 ao início da década seguinte, ao lado de seu marido, o maestro Rafael Garcia (in memoriam), e seus seis filhos —, Clóvis se inscreveu para ingressar no mestrado na Universidade de Boston e foi aprovado. Ela recorda que ele tirou a melhor no exame de seleção, na época. E, assim, Clóvis e Risomar partiram para a capital de Massachusetts, onde ficaram de 1990 a 1992.
Essa estada em território americano boreal instigou Clóvis a se aventurar por caminhos composicionais muitos diversos aos que estava acostumado: os da música atonal e da música acusmática (ou eletroacústica, se preferirem). O resultado dessas experiências, com uma única exceção (uma peça atonal para cordas), não chegaram aos ouvidos do público pernambucano, como não chegaram outras peças de linguagens mais familiares ao Clóvis, pré e pós-EUA, mas nada relacionadas à música armorial ou aos seus sofisticados frevos de rua.
Ciclos de canções, peças para piano solo, obras sinfônicas, e as próprias músicas acusmáticas construídas em Boston — gravadas, estas, em rolos de fita que devem estar guardados no escritório de Clóvis (ou talvez tenham ficado nos Estados Unidos, não sabemos). Lembro-me até de uma partitura para piano que encontrei na Biblioteca do Instituto Ricardo Brennand e que não constava na catalogação que fiz pro livro publicado pela Cepe Editora. Por isso, usei, parágrafos atrás, "descoberta".
Falta tudo isso ser disseminado, inclusive os citados frevos de rua. Não há um álbum que reúna ou promova a execução dessas partituras. Na verdade, o único inteiramente dedicado a Clóvis é o LP com a primeira gravação de sua "Grande Missa Nordestina", de 1978, produzido pela Marcus Pereira (acrescente aqui uma exclamação, estimado leitor). Suas centenas de arranjos escritos nos tempos de Rádio Jornal do Commércio encontram-se depositados na Fundação Joaquim Nabuco (o que não foi incinerado arbitrariamente, como conto no livro).
Clóvis cumpriu os requisitos necessários para colar grau no mestrado, porém, afora as saídas para compras essenciais e para cumprir os deveres do campus, sua vida em Boston foi de reclusão. A distância dos filhos e do Recife o maltratou bastante; além disso, o diploma de Mestre em Composição quase não foi liberado (episódios cujos detalhes deixo para quem ler o livro).
Mestre ele já era, há muito: a maior parte de suas composições camerísticas e sinfônicas partem de fontes folclóricas nordestinas, mas empregadas sob uma expressão universalista, que alcança quaisquer povos; seus poucos frevos de rua são dotados de uma qualidade orquestral e harmônica endossada por maestros, compositores e instrumentistas consagrados do ramo.
Se alguém teria legitimidade para diplomar Clóvis certamente seria César Guerra-Peixe, mentor seu e de Jarbas Maciel, Capiba, Sivuca e Clóvis Pereira — ademais, uma referência que estabeleceu, por meio de algumas de suas composições dos anos 1950 e 1960, parâmetros para as composições que viriam a ser chamadas de "armoriais".
Que a obra de Clóvis Pereira, assim, seja avivada por causas naturais: pelo nosso guiamento para verdadeiras referências artísticas e antimodistas. Escutem o "Concertino para violoncelo", encomendado e gravado por ninguém menos que Antonio Meneses; a "Suíte Macambira", para violoncelo solo, também fruto de um pedido de Meneses e que se iguala em profundidade às próprias suítes escritas por Bach, porque nelas diretamente inspirada; e a sempre imponente "Grande Missa Nordestina", que contém recortes dos melhores temas que Clóvis incorporou a suas peças.
Clóvis escreveu uma missa, percebo aqui, mas nunca um réquiem. Assim estanco agora e lhe ofereço este texto, em sufrágio de sua alma: Requiem aeternam dona ei, Domine. Et lux perpetua luceat ei.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico de música e pesquisador.